06 de outubro de 2024
Nas cidades do interior, aí pela primeira metade dos anos de 1950, dia de eleição era dia de festa. Vou contar para vocês como era a minha festa. Era assunto de gente grande. Lembro do lugar de votação. As urnas eleitorais. Os santinhos dos candidatos. As toadas (Na hora H, H, Agamenon). Íamos vestidos com roupas domingueiras. Onde seria aquele colégio eleitoral onde votavam meus pais?
Torcíamos pelos candidatos do pai. Sempre. Tenho duas lembranças vivas do dia de eleição em Garanhuns. Sentada ao lado de minha mãe, num banquinho, escutando conversas que não entendia, devaneando em outros planetas. Minha imaginação sempre foi um refúgio precioso. Fez boa companhia àquela menina lourinha e bem-comportada. Continua boa companheira, passado sete décadas.
Meu pai falava. Minha mãe ouvia com um sorriso aquiescente. Estaria, tanto quanto eu, em outros planetas? Uma vez esqueceu o sorriso da última estória no rosto, e minha irmã caçula, a tudo atenta, lembrou: mamãe, a graça já passou.
A outra lembrança, é um dia de eleição na fazenda de um cliente e amigo de meu pai. O cheiro de carne assada. Matara-se um boi. O terreiro cheio de gente, gente chegando, parecia movimento de feira. O alpendre da casa enfeitado com bandeirolas com as cores do santinho. Um sol quente de outubro. Ali era bom de correr, brincar com outros meninos, tomar guaraná.
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O calçadão em dia de eleição tem menos gente do que teria num belo domingo de sol como hoje. A Mulher do Sétimo Andar saiu cedo para caminhar. Nenhum time organizado de corredores de fim de semana. Poucos dos caminhantes da madrugada. Talvez seja esse o único dia feriado para os tijolinhos do calçadão.
Desde quando retomou as caminhadas, a Mulher do Sétimo Andar tem visto personagens de crônicas passadas, como o pintor das madrugadas, o lutador, Biu da venda, o negro luzidio dos dois cachorros… Outros foram ondas passageiras. Como uma mulher que instalou-se, de mala e cuia e sete cães vira-latas, no lugar onde os pets dos ricos fazem cocô. Foi também num período eleitoral. Acabada as eleições, só demorou alguns dias, para ela ser expulsa não deixando rastros.
São tolerados os que usam os novos quiosques de coco como refúgio para dormir à noite. Eles se recolhem cedo, deixando apenas o odor de corpos sem banho impregnado nos tijolinhos ecológicos. Mas alguns ousam ultrapassar essa barreira. Ai deles!
Foi assim com uma família inteira, que se arranchou recentemente, na sombra aprazível da proteção de um equipamento esportivo em reforma, na altura do predinho azul Oceania (que se chamava Aquarius no filme de Kleber Mendonça). Estavam tão à vontade, que a Mulher do Sétimo Andar presenciou, ainda esta semana, a dona daquela inusitada casa varrendo as folhas secas da castanhola do calçadão na frente de “sua” casa. A casa consistindo numa madeira do tamanho de uma porta, em pé na horizontal, escorada entre a parede de alumínio de proteção do equipamento em reforma, e o lado de dentro dos bancos do calçadão, coberta com papelões.
A dona da casa, que certamente numa pesquisa do Censo Demográfico, seria mais uma a engrossar a quantidade dos domicílios chefiados por mulheres, deixa, ainda dormindo embaixo de papelões e trapos, o marido, o filho e o cachorro, e vem prosear com o vigilante da prefeitura sentado numa cadeira junto à porta de entrada. Ele terá dormido dentro, certamente para cuidar de objetos ali guardados, que seriam motivo de cobiça para a horda de miseráveis que roubam à noite cabos de tvs nas ruas para usar em casa.
A Mulher do Sétimo Andar quis saber desse guarda qual serviço estava sendo feito ali dentro. Faz parte do projeto da prefeitura de revitalização da orla. Que ela entrasse nas redes sociais para saber detalhes. Ela não entrou nas redes sociais ainda. Mas já sabe o fundamental: o projeto da orla se renova a casa período eleitoral. O calçadão melhora, fica mais bonito, mesmo que tenha sido um serviço inacabado nos detalhes. Ah, os detalhes… Ficam para a próxima obra.
Novo projeto, a cada quatro anos, perpetuando no poder quem tem a caneta da vez, para bancar a obra e o troco para as campanhas eleitorais. Aquela família, a mulher, o marido, o filho e o cão, com quem não se mexeu até ontem (em nada se mexe em período pré-eleitoral), hoje, já voltou para qualquer outra freguesia, deixando a porta largada no chão e os trapos espalhados dentro do antigo lar.