Milu Caramela
18 de outubro de 2024
Milu Caramela? Quem te viu, quem te vê. Será que ganhou na loteria? Saiu da Vila do Ipsep e veio morar na avenida. No sétimo andar de um apartamento à beira mar, onde existe uma mulher que te dá comida à cada vez que se levanta da rede, a cada vez que se levanta da cadeira do computador, e segue para a cozinha. Tua comida é servida antes da dela, junto com palavras suaves.
Milu ouve calada. Não é mal-agradecida. Gosta mais que tudo do jardim suspenso, que aquela mulher preparou para habitat exclusivo dela, nas horas de recreio. Encomendou até um pedaço de tronco de Algaroba, para eu roçar minhas unhas. Ela fica debruçada na janela espiando a rua, e eu subo no meu jardim de cobertura. Daqui, vejo o lado pobre do Pina, grudado com o shopping Riomar, que lhe roubou muito casebre e muito mangue de caranguejo. Os meninos do Bode passam aqui pela rua Ondina a caminho da praia e do campo de futebol. Se espio para o outro lado, está o mar, a areia, os coqueiros, as castanholas e o calçadão.
Minha dona sempre viveu confinada em moradias seguras. Não sabe o que é a rua, como eu sei. Ela é tão inocente, a bichinha…
Espio agora aquela mocinha que atravessa o sinal para chegar ao calçadão. Shorts jeans justinhos na medida certa. O boné de marca, vermelho, não está na cabeça de cabelos esvoaçantes com mechas douradas, mas atado ao passador de cinto do short, bem no meio da bunda. O boné se mexe sutilmente a cada passada sem pressa da mocinha. Um soutien de biquini cor de rosa mostra o início dos seios. Carnes duras. Não quer saber de garotos sarados, lisos. O calçadão é sua sala de estar, para atrair caminhantes que usam loção de barba francesa. A bisavó dela circulava pelas ruas noturnas em torno do porto, no Recife Antigo.
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Flashes
25 de outubro de 2024
Km. 600. Vestígios da noite. Uma moça e dois rapazes, com as duas portas do Gol estacionado junto à ciclovia abertas, aguardam com impaciência e piadinhas, o casal sentado no banco do calçadão numa infindável DR.
Km. 800. Um rapaz negro corre do Pina em direção a Boa Viagem, na pista dos automóveis, beirando a ciclovia. Distribui as palavras de Deus ouvidas no culto da véspera. Aleluia, irmão.
Km. 1.700. Atrás do banheiro público construído ainda outro dia, que tem um cano estourado, um buraco no chão e cheiro de urina (dos homens que usam o calçadão quando o banheiro está fechado à noite, ou mesmo que estivesse aberto), duas mulheres sentadas no banco do calçadão. Na volta da caminhada, 10 minutos depois, a Mulher do Sétimo Andar ainda ouve pedaços de uma mesma conversa ao celular, a toda altura: Tu tem que ver por que Gabriel conseguiu estar solto, de tornozeleiras, e tu continua aí. Domingo eu quero saber disso direitinho.
Km 1.000, no caminho de volta. Um jovem pai carrega o bebê de poucos meses num suporte tipo canguru, na frente do peito. A jovem mãe puxa pela coleira dois cães de raça pequena. Estão passando em frente aos policiais do calçadão, postados à sombra da frondosa castanhola que separa Boa Viagem do Pina. Coitados, com esses uniformes quentes, botas pesadas, nesse calor… O bebê cruza o olhar com a mocinha uniformizada, que certamente lembrou o filhinho que deixou aos cuidados da avó. O casal se aproxima dos policiais. Proseiam. O bebê, rindo, espalha uma alegria no mundo. Bebês no calçadão são raros. A Mulher do Sétimo Andar, ao passar pela cena, ouve o português com sotaque dos jovens pais.
Na volta da caminhada, ao entrar no prédio onde mora, a Mulher do Sétimo Andar encontra uma babá, as gorduras esparramadas no sofá do terraço do prédio, que não ouve o seu bom dia. A mão esquerda fala ao celular, ouve, ri. A direita balança o carrinho do bebê para frente e para trás. Depois, ao entrar no elevador, ela cruza com as menininhas gêmeas, que têm uma babá para cada uma.
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Domingo na praia
27 de outubro de 2024
Domingo de verão é dia de festa na praia do Pina. Armam-se barracas coloridas; se a maré está baixa, campos de futebol se improvisam. Enquanto caminha, cedinho, a Mulher do Sétimo Andar assiste à preparação da festa.
De repente, na altura das jangadas, avista ao longe um boné conhecido. Ela gosta é muito quando reencontra personagens de suas crônicas. E foi exatamente em frente às jangadas, parados para ver a saída de uma delas, que ela ficou conhecendo aquele senhor que vai se aproximando, sempre caminhando descalço, de bermuda, camiseta, e boné vermelho. Há quanto tempo não cruzavam caminho na areia da praia? “Tava sumida?” Para encurtar a conversa no curto tempo de passar um pelo outro, ela responde: “Viajando”. “Bom dia, escritora”.
Continuou pensando no bom dia de Biu da Venda. Um estado de alegria inundou sua alma. Escritora.
É muito simples para pessoas simples saber o que é uma escritora. É alguém que escreve livros. E livro a gente sabe o que é: vê, folheia. Mesmo que não leia. Já socióloga…