Banhos de mar

Domingo, 10 de novembro de 2024

Esse é o título de uma das mais belas crônicas de Clarice Lispector. Outro dia alguém me mandou essa crônica pelo Whatsapp, recitada por Maria Betânia. Depois recebi de mais duas pessoas. Assim são as redes sociais. E os entendidos, quando isso acontece, dizem que viralizou. Acho tão horrível dizer isso! Vírus não é nada bom. E a crônica de Clarice Lispector, se já é linda lida no silêncio de uma manhã de domingo ensolarado do Recife, fica maravilhosa pela voz de Maria Betânia.

“Eu não sei da infância alheia. Mas essa viagem diária me tornava uma criança completa de alegria. E me serviu como promessa de felicidade para o futuro. Minha capacidade de ser feliz se revelava.”

Crônica, essa literatura fugaz como as ondas do mar, captura cada leitor a seu modo. Cada um vai buscar um pedaço da própria vida onde calhar fundo as palavras e as cenas da crônica. Ou deixa passar a onda porque tem mais o que fazer. Com as redes sociais, inexistentes ao tempo de Clarice Lispector, o escritor de crônicas de hoje em dia, às vezes recebe um brinde (uma palavrinha do leitor), a que ela, Clarice, só teve direito pelos raros leitores que mandaram mensagens ao Jornal do Brasil, de agosto de 1967 a dezembro de 1973.

A leitura dessa crônica me captura a cada vez que releio. Talvez porque o pai de Clarice Lispector acreditasse na cura dos banhos de mar pela presença do iodo. Lembro de meu pai dizendo que, em anos que se seguiam a meses de veraneio, meus irmãos tinham menos crises de inflamação da garganta. Mesmo assim, todos foram operados das amígdalas pelo dr. João Suassuna. Menos eu. E, em vez de achar isso bom, lembro que, na época, eu tinha ciúme de minha irmã caçula, quando ela ficava de cama, sem ter que ir à escola, com cuidados especiais do pai médico. Logo sabia-se doente, exigia: uva, maçã e guaraná. Refrigerantes não entravam cotidianamente na minha casa. Uva e maçã eram produtos especiais, que não se vendia na feira, onde minha mãe comprava todas as outras frutas, que eram muitas, variadas e muito cheirosas (um predicado inexistente nas uvas e maçãs). Aquelas da feira, eram as frutas que João Cabral diz em poema: melhor comer na cama que na mesa. As frutas da lírica de Alceu Valença “Morena Tropicana”.

Naquela época, os profissionais da saúde tinham a nobreza de não cobrar dos colegas. Assim, meu pai fez todos os partos (um a cada ano) da mulher do Dr. Walderedo Veras, que, em contrapartida, não cobrava pelas obturações dos dentes dos filhos do Dr. Zé Sales. O Dr. João Suassuna também não cobrava as cirurgias de meus irmãos. Porém, como morava no Recife, não tinha nenhuma contrapartida em serviços, mas em produto. Todos os anos, tirava uma semana de férias em meados de dezembro e se hospedava no Hotel Tavares Correia em Garanhuns. Na volta das férias, parava defronte de nossa casa, abria o porta-malas do carro e recebia, vivo, um peru de Natal. Nessa época do ano, eram muitos no quintal de nossa casa; presentes pelas consultas, pelos partos gratuitos de quem não podia pagar.

De tudo isso se lembra a Mulher do Sétimo Andar, quando chegou hoje do banho de mar na Praia do Pina, sem ter escrito ainda uma linha de sua crônica. Gosta dessa rotina domingueira. Geralmente, terá escrito fragmentos no decorrer da semana, e o domingo é o dia de organizar, rever, rever, rever, e, finalmente, despachar a correspondência, com o sentimento de quem está numa agência dos Correios e Telégrafos, com um monte de envelopes selados. Com as tais redes sociais, nem precisa gastar com selos nem ir até a agência dos Correios e Telégrafos na Avenida Guararapes, que, de resto, estaria fechada hoje, e está tão sem uso, quanto tudo o mais que já teve tanta vida nessa linda avenida do centro da cidade.

Lembra a aventura que era o veraneio na praia, para quem morava numa cidade encravada na longínqua região do Agreste Meridional de Pernambuco. Alugava-se uma casa sem móveis. Um caminhão transportava móveis básicos de Garanhuns para a modesta casa da praia. Em seguida, no carro com o motorista, Seu Gonzaga, ia a mãe, uma empregada, os cinco filhos, e, às vezes, também a avó por parte de mãe. Como cabia tantos no Ford 51? O pai não ia, sempre tinha parturientes em véspera de dar à luz. Mas, hoje ela sabe, era para ele umas merecidas férias.

O primeiro veraneio foi na praia de São José da Coroa Grande. Foi lá que ela conheceu o mar. O primeiro alumbramento. Depois, Rio Doce, em Olinda, ao tempo em que para lá só se ia por estrada de terra, e as casas eram esparsas no meio de imensos terrenos de coqueirais. Naquele tempo, uma menina lourinha de rabo de cavalo, que às vezes deixava secar, sem shampoo nem sabonete, os cabelos duros de água salgada. Ah, as praias daquele tempo…

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