Sexta-feira, 29 de novembro de 2024
Vem mais eu por aqui, moça. O banheiro é logo ali. / Da donde o senhor é? / Do Piauí.
Depois de assistir à peça “Prima Facie” no último domingo, em São Paulo, saímos quatro amigas à busca de um restaurante. Sugeri o Due Cuochi, no Itaim. Fechado. Na rua Jerônimo da Veiga, tão florida de bons pastos, a maioria, fechado. Ora, dona moça, tenha dó. Domingo à noite é dia de pizza. Resistimos à pizza e encontramos, finalmente, dando voltas de carro, um respeitável restaurante italiano, na esquina com a João Cachoeira.
Baixinho, magro, ágil, feio, na casa dos 60 anos. Algo terei dito, para ele se sentir à vontade: “vem mais eu”. Nesse caso, o verbo no modo imperativo, normalmente impositivo, toma-se de uma quase intimidade. A intimidade conterrânea, que, por minutos, pula a barreira das classes sociais, da formalidade profissional dos bem treinados garçons nordestinos de São Paulo, para adocicar a linguagem, virando pelo avesso o imperativo do verbo.
Perto do Cebrap, em São Paulo, nos meus tempos de pesquisadora naquela casa, às vezes saíamos em final de expediente, Chico de Oliveira, Vinícius Caldeira Brant e eu, para um chopps e dois bolinho de bacalhau. O bar se chamava Jabuti, em frente ao Instituto Biológico. Muitos anos depois, já fora daquelas paragens, o sinal de trânsito nos parou no cruzamento da rua Joaquim Távora com a Rodrigues Alves. Zé Hamilton ao volante. Eis que vejo Magrão, o garçom que sempre nos atendia no Jabuti. Com o vidro do carro aberto, falei alto o suficiente para ele ouvir de onde estava, em pé, parado na porta de entrada, como a fazer hora. “Magrão!” Ele olhou pra mim, me reconheceu, e respondeu sem titubear, com um sorriso limpo estampado no rosto: “Teresa Sales”.
Foi Vinícius quem um dia nos chamou a atenção, a nós dois. “Como vocês tratam mal os garçons! Nunca pedem por favor?” Não sabia ele que isso era também uma espécie de código de conterraneidade, para os que moram acima do rio São Francisco. Magrão, baiano, entendia perfeitamente.
É o tal sotaque. De onde vem? Quiçá uma porção maior de sangue nas veias da África e dos Povos Indígenas. O trópico, o calor, muitos banhos, banho de rio, de mar, de chuveiro, até de chuva, quando meninos. Maurício Carrilho me contou uma história sui-generis de Canhoto da Paraíba. Indo fazer uma visita à casa dele em Olinda, ao descer de um taxi sem ar-condicionado, naquele calorão do meio-dia, cansado, suado, qual a primeira frase do anfitrião? “Você quer uma toalha pra tomar um banho?” Ah, nada seria melhor naquela hora… E Maurício atribuía essa delicadeza à informalidade do nosso violinista. Não, Maurício. Isso não é apenas Canhoto da Paraíba. É mais um código dos que moram acima do rio São Francisco. A água tem um valor… Talvez por ser tão sofrida nos sertões das grandes estiagens d’antanho.
No Chorinho, Paulinho da Viola também descobriu um sotaque, depois que ouviu Canhoto da Paraíba, no primeiro sarau na casa de Jacob do Bandolim em Jacarepaguá, subúrbio do Rio de Janeiro, em outubro de 1959. “São choros em semicolcheia de cabo a rabo, onde é importante a presença de outro violão para acompanhar. A gente não pode afirmar que existe um choro tipicamente nordestino. Em muitas músicas, o que a gente pode ver é um fraseado, que tem muito a ver com a sanfona, a sanfona dos forrós. Eu acredito que isso influenciou os compositores do choro. Fica difícil dizer: isso é um choro nordestino; isso é um choro de músicos do Sul. Essa fronteira é difícil de delinear. Mas a gente sabe das músicas que a gente ouve e diz: isso aqui tem a alma dos músicos do Nordeste. O sotaque, né?”
Maurício Carrilho diz outra coisa. Essa marca identitária do choro nordestino, especialmente o pernambucano, vai além de um sotaque. É mais que isso, é uma linguagem diferente. “O sotaque pode ocorrer quando eles tocam repertórios de outros. Mas no caso do trabalho autoral dos compositores de lá, do Canhoto, do Henrique Annes, Luperce Miranda, e tantos outros, o paralelismo na harmonia é uma coisa que é usada por todos eles.”
(Querido leitor. Desculpe a intromissão, mas me permita um comercial: Se quiser saber mais detalhes, compre na Amazon, ou diretamente na editora Autografia, “Personagens do Choro Pernambucano – Canhoto da Paraíba e João Pernambuco”)
Marco César diz de outra característica dos compositores e das performances dos chorões do lado de cá: os choros não embalam apenas uma audiência que se balança discretamente ao ritmo da música, que nem no jazz. Embala todo o corpo na dança.
Enquanto eu ouvia Toninho Carrasqueira à flauta e Heloísa Fernandes ao piano na Praça das Artes na av. São João em São Paulo, pensava nisso. Céus, que apresentação magnífica! Auditório lotado. Tocaram nada menos que Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Moacir Santos, Dominguinhos, Egberto Gismonti, Maurício Carrilho, Guinga, Radamés Gnattali, Cristovão Bastos, João Dias Carrasqueira… Atrás das cadeiras, havia um espaço vazio no amplo auditório. Fiquei com uma vontade danada de ir lá dançar um pouco. Causaria estranhamento. Não fui. Aqui, seria natural e muitos outros fariam o mesmo. Ao próprio Toninho, grande mestre da flauta e da teoria da música, tão bonito no balanço do corpo enquanto tocava, sei que não causaria espécie. Ele, que, num gesto espontâneo, ao ver um jovem pai saindo do auditório com o filho impaciente no braço, avisou que deixassem as crianças na plateia, que ruído de meninos não atrapalha. “Criança é alguma coisa de sagrado, como sabem os nossos Aimorés”. Um tapa na minha cara, que, no íntimo, teria achado ótimo que se retirassem todos. Uma lição.