São João

24 de junho de 2025

Noite de festa. Desde pequena, aquela menina gostava de economizar. Guardou metade das estrelinhas para o dia seguinte, pois a mãe lhe assegurara, a ela e à irmã, sua melhor companheira de brincadeiras, que o dia mais importante ainda estava por vir. Era o dia seguinte, dia mesmo do santo, São João. Então as duas, sob a supervisão dela, rigorosa nas contas, guardaram parte daqueles fogos para o dia seguinte, como se estivessem amealhando moedas de ouro.

As estrelinhas eram os fogos preferidos pelas duas. Eram os mais lindos, os mais delicados. Palitos finos feitos de papel de seda de todas as cores do arco-íris, com pólvora dentro. Os papéis de seda que envolviam a pólvora eram encimados pelas tiras do papel abertas para cima, formando como folhas de uma plantinha colorida, onde a gente segurava para acender a parte de baixo. Aí, milagre, sem precisar mexer, rodar, nada, só segurando com firmeza, começavam a aparecer as estrelinhas de baixo para cima, sem barulhos, silenciosas como as estrelas do céu. Nossos braços ficavam esticados para frente, para que as estrelinhas que nasciam de nossos dedos não viessem a cair em nossos sapatos ou nosso vestido e nos queimassem.

Naquele junho de 1953, a festa foi na fazenda de um amigo do pai. Os convidados deveriam chegar para o almoço, pois também se comemorou  bodas do casal, com uma buchada e muitos outros pratos numa mesa farta: carne de sol, carne de porco, galinha, carne de bode, pirão, feijão verde, farofas…  Uns meninos mais afoitos acompanharam os pais num copinho miúdo de cachaça, antes de iniciar o banquete. Depois se bebia de tudo, ao gosto de cada um.

Ela observou que, à mesa maior da sala, sentaram-se os homens e alguns rapazes mais velhos. Em outras mesas – a sala era enorme –, as mães com os filhos, as moças, os rapazes mais novos. Ela quase não comeu no almoço, de olho nos doces de sobremesa, que já vira quando fora junto com a mãe e a irmã até a cozinha. Ah! Aquele doce de goiaba em calda com queijo de manteiga… O doce de leite…

Até a hora do almoço foi um tumulto danado, com meninos correndo dentro de casa. Continuava chovendo, chuva grossa, de relâmpagos e trovões. Falava-se de um raio que teria caído em uma Baraúna da fazenda vizinha. Já o carro do pai ficara atolado na lama, na subida da serra até o casarão do Seu Vitor. De galochas, capa de chuva e guarda-chuva, chegavam os convivas. Para nós duas, aquilo, que para nossos pais era um transtorno, para nós já era parte da animação da festa.

Depois do almoço estiou. Nas redes armadas nos alpendres que arrodeavam as salas e os quartos, nas camas postas, alguns homens fizeram a sesta, enquanto muitas mulheres cuidavam das vassouras, da louça, dos filhos, que corriam pelo terreiro, que não sujassem a roupa da festa mais tarde. As duas irmãs se juntaram com umas meninas que brincavam de roda, e depois de pega, também com os meninos.

Aos poucos, a festa ia se anunciando. O sol se punha quando acenderam a fogueira. Foi somente nessa hora que a meninada parou de correr. Uma fogueira enorme, que ainda teria brasas para assar milho verde e batata doce no dia seguinte. Acenderam-se os lampiões e candeeiros na casa toda. Com pouco, iam chegando os músicos. Era uma banda de pífanos, e mais uma de forró com sanfona, zabumba e triângulo, que se revezaram num canto da sala. A princípio nós ficamos olhando a música e a dança, cada uma segurando na mão do pai. A nossa irmã mais velha dançava com o filho de seu Vitor, e meu pai não tirava os olhos dela.

Mas logo nos cansamos de ficar ali paradas. Nossa mãe nos levou para nos servirmos das comidas da festa: pamonha, canjica (que os sulistas chamam de curau), munguzá (que os sulistas chamam de canjica), milho cozido, milho assado, bolo Pé de Moleque, bolo Souza Leão, bolo de macaxeira, cachorro-quente, amendoim cozido, amendoim torrado… Pegamos nossos traques de massa e estrelinhas e fomos ao terreiro, com nosso irmão mais velho, que lá segurou um tição em brasa para a gente ir acendendo as estrelinhas. Ouvindo a música ao fundo, as vozes, vendo outros fogos, ouvindo estrondo de bombas e rojões, balões subindo ao céu estrelado, nossa atenção se concentrava nas nossas estrelinhas, que nos faziam rir, comparar com as outras já queimadas para dizer: esta foi a mais bonita, não foi, Pingo? Era o clímax de nossa noite de São João.

No dia seguinte, excitadas por ser aquele o dia mesmo de São João, madrugaram. Todos na casa ainda dormiam. De chinelos e camisola, encolhidas de frio, foram para o terraço acender com fósforos o restante das estrelinhas. Escondidas de todos, pois sabiam muito bem que não podiam brincar com fogo sozinhas. E viram, desoladas, que, à luz do dia, as estrelinhas já não tinham o brilho da noite. Foram para a despensa, que não tinha janelas. Fecharam a porta, e o cheiro de pólvora aos poucos abafou o das barras de sabão. Lá foi melhor. Mas nada que chegasse nem perto do terreiro com bandeirolas, as nossas estrelinhas tão brilhantes quanto as do céu.

Hoje, tão distante no tempo e no espaço daquela noite de São João em Garanhuns, a Mulher do Sétimo Andar pensa numa velha lição: nunca deixe para amanhã o que pode fazer hoje.

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