Diário de um infarto

Quarta feira, 09 de julho de 2025

3 horas – Acordo com dor na caixa dos peitos, que repercute no braço esquerdo. Não! Puta merda! Três da matina? Por que diabos tudo acontece comigo ao primeiro galo da madrugada? Nessa mesma hora, num distante 14 de julho, eu acordei para ir ao banheiro, e o líquido que escorria não era xixi. Corre, corre pro hospital, que foi o líquido amniótico.

Naquele frio inverno de 1976 em São Paulo, transportada numa maca para uma cesariana, perguntei à enfermeira: que dia é hoje? E a moça estranhou quando ouviu de minha boca: que maravilha! meu filho vai nascer no dia da Queda da Bastilha.

Às três da madrugada deste julho, aos oitenta fresquinhos, anunciava-se outro desfecho. Estou só em casa. A dor no peito se espraiando para o braço esquerdo, martelando no meu juízo: infarto do miocárdio. Poderia ser gazes… Tomei um copo d’água, fui até o armário pegar o tensiômetro: 21X11.

Há menos de um mês, eu havia tomado todas as informações sobre um tal  reloginho para velho que mora sozinho. Deixei o assunto para depois. Aí o depois chegou antes.

Na emergência do hospital Esperança da Rede D’Or, a cardiologista de plantão toma as providências de costume: o comprimidinho embaixo da língua, um Rivotril e, com pouco, um analgésico para a dorzinha de cabeça que, depois fiquei sabendo, era efeito colateral do milagroso cachete que dissolve na boca embaixo da língua. Juliane, a motorista de Uber que me socorreu, liga para meu cardiologista, para minha irmã, meu filho, minha sobrinha.

8:20 – Bom ver a cara de Denize chegando apressadinha. Peço para ela acertar com Juliane, que, só aceita receber, a conta do estacionamento. Não quis cobrar o tempo que ficou comigo nem o preço da corrida. Muito menos o que não tem preço: às três horas da manhã atendeu minha chamada de telefone ao terceiro toque, e, com menos de dez minutos, estava a postos na garagem do meu prédio.

Troco a roupa por uma bata e sou transferida para a uti humanizada. São 10 cubículos, cada cá com a cama do paciente e, ao lado, uma poltrona reclinável. Na parede de trás, a parafernália de equipamentos barulhentos, que aparafusa fios ao peito do paciente e mostra, num monitor, todos os sinais vitais. Esses cubículos não têm portas, mas cortinas, que sempre ficam semiabertas, para que os que circulam no centrão possam espiar de vez em quando os tais sinais vitais.

Deitada no novo leito, o braço esquerdo com o acesso trazido da emergência, o braço direito passa a ficar também ocupado pelo tensiômetro, que infla a cada hora para aferir a pressão arterial. Pelo menos só ouço, e não vejo, os gráficos coloridos do monitor, em constante dança com o que vai no trânsito do meu sangue, passando pelo velho e atrevido coração, que deu o primeiro sinal de cansaço.

Médicos. Fisioterapeutas. Uma técnica em enfermagem para cada dois pacientes… É muita gente proseando e dando risada. Minha TV está desligada, mas ouço a dos vizinhos. A aparadeira resolve o xixi. Para o número dois, carece ir ao banheiro. A enfermeira desabotoa os parafusos do meu peito, tira o medidor de pressão do braço direito, e sigo com os fios do acesso na veia do braço esquerdo pendurados. A enfermeira me conduz caminhando devagar e me espera à porta do banheiro.

À noitinha, Luciana chega para render minha irmã. Dormirá no sofá reclinável e será rendida por Denize no dia seguinte.

Quinta feira, 10 de julho

Entre Luciana sair e minha irmã chegar, houve um espaço de tempo em que fiquei sem acompanhante. A técnica em enfermagem que cuidava de mim, assegurou que ali eu teria sempre atendimento e poderia ficar sozinha sem problema. E ela estava certa.

Chega a hora do banho. Banheiro ocupado. É o único para todos os leitos. Alguns pacientes não se levantam da cama. Outros, como eu, têm condições de usá-lo. Estou em terceiro lugar na fila. Espero deitada (que em pé cansa). Enquanto espero, com a cortina aberta, impaciente com os barulhos, veem-me à lembrança as filas dos banheiros da rodovia Rio-Bahia, nas viagens pela Itapemirim. Espanto a lembrança e digo a mim mesma: paciência, dona moça, aqui o banheiro é limpo. Se eu pudesse ter dado uns três ou quatro tragos da boa erva, teria imaginado, em devaneios, que a conversa no centrão era a feira de Bezerros, e o barulho das máquinas eram passarinhos cantando nos pés de pau. Mas a seco?

Enquanto espero, a cortina aberta, vejo o movimento no centrão: a faxineira, num fazer de conta com um rodo, passando apenas pelo corredor onde circulam todos. Aí me dei conta de que estava naquele cubículo desde a véspera de manhã, e até aquele momento nenhuma faxineira passara por lá.

“Enfermeira, quem é a pessoa responsável por essa uti?” Chega uma médica. Faço minucioso relato de uma observação de campo e concluo: “Ou me transferem para um quarto, ou saio daqui”. “Sim, assino qualquer termo, me responsabilizo. Mas aqui não fico mais”.

Chega a turma do deixa disso. Que ainda preciso estar sob os cuidados de uma uti, mas que hoje mesmo vão me transferir para um único cubículo naquele andar que tem porta, com a parte de cima de vidro, e banheiro privativo. Foi lá que passei a segunda noite.

Sexta feira, 11 de julho de 2025.

Finalmente no quarto, depois de amargar dois dias de uti humanizada. Tomei um café da manhã reforçado, porque essa será minha única refeição até a hora do exame.

O maqueiro chega para me levar à sala de exame às cinco horas da tarde. Começo a ser acomodada na cadeira de rodas, recomendando a manta e o casaco porque aquelas salas são tão frias.

Logo adentra o quarto, inicia-se uma prosa entre o maqueiro e a enfermeira. Como se ali eles estivessem atuando em dois palcos ao mesmo tempo. Tenho ímpetos de dizer, com ar professoral, “aqui não é lugar de conversa, prestem atenção à paciente”. Lembro-me dos corredores do Hospital Dom Moura em Garanhuns, onde meu pai foi o diretor por uns anos, e íamos assistir lá, na capela do hospital, a missa aos domingos. Existia em todos os corredores a foto enquadrada de uma freira, com o dedo indicador sobre os lábios, em sinal de silêncio. Mas estou com a raiva da uti humanizada ainda presa na garganta, e não é justo que descarregue neles a minha raiva. São apenas atores de uma engrenagem poderosa que inclui hospitais, planos de saúde, grandes laboratórios… Melhor calar. Afinal, eles executam até com certa maestria os dois papéis ao mesmo tempo. 

No elevador estamos apenas eu, minha irmã, a enfermeira e o maqueiro. Nessa hora, no silêncio de um elevador, pude ouvir o restante da prosa dos dois: “Eu tou é morto. Desde cedo não tive um minuto de fuga. Num vejo a hora de chegar em casa, tomar um banho e cair na cama.” “Tu acredita que aquela uma veio de novo pedir emprestado o meu carregador do celular?” “Oxe! E por que tu num diz a ela que tu também esqueceu o teu em casa?” “Eu tive pena dela. A coitada precisava chamar um uber.”

Sábado, 12 de julho de 2025

Finalmente, o exame do túnel da assombração revelou o diagnóstico: Minoca – infarto do miocárdio com artérias coronárias não abstruídas. Margareth rendera Teresa ao meio da manhã. É quem está comigo na hora da alta, e me leva de volta pra casa. Já tínhamos almoçado no hospital. Em casa, antes de entrar no chuveiro, tiro do congelador o último pedaço do bolo de noiva da festa dos oitenta anos. Depois do banho, preparo um chá para nós duas.

Ela é rendida por Miguel no hall do elevador do sétimo andar. Meu filho se acomoda no quarto de hóspedes. Pedro, meu caçula, chegará de São Paulo na semana seguinte e teremos de volta, por alguns dias, a alegria da família reunida.

Deitada, de volta ao romance de Elena Ferrante que deixara pela metade, dei um longo cochilo na minha cama forrada com lençóis brancos e macios. Quando acordei, fui jantar com Miguel o que sobrara de uma bela moqueca de peixe, que eu mesma havia preparado para receber Guilherme e Beth, e que também fora minha homenagem prévia ao dia de Nossa Senhora do Carmo/Oxum, em 16 de julho.

Daquele jantar, sobrara o equivalente a duas taças de vinho branco. Brindamos à Vida! Afinal, danificou apenas 2% do velho coração cheio de segredos. A maioria está preservado, guardados, os segredos, a sete chaves. Vida que segue.

***

Aqui vai um agradecimento à turma que cuidou de mim no hospital, pela ordem de entrada em cena: Juliane, Denize, Luciana, Teresa, Margareth.

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