14 de setembro de 2025
Ela estava passando o verão na rua dos Médicis, não propriamente de férias, mas numa espécie de tratamento. Poderia até ter desentortado a escoliose com os exercícios do doutor Bosch, não fosse a burrice da Ortopedia naquele longínquo 1960.
Todos os dias, na companhia de dona Elvira, uma velha amiga de sua bisavó, que empobrecera e costumava frequentar a casa nas horas de almoço, todos os dias, de segunda a sexta, saíam de casa antes do café da manhã, para chegar às 6 horas na academia de um velho magro e caladão, que sua tia Mariana havia recomendado. A “academia” do doutor Bosch era uma parafernália de equipamentos, semelhante ao que é hoje uma sala de Pilates. Ali, ela passaria uma hora fazendo uma sequência de exercícios individuais sob a tutela do velho, que falava um português arrevesado com sotaque alemão. Se fecha os olhos hoje, ainda vislumbra o janelão de onde avistava, enquanto se alongava no espaldar, a fonte da praça.
Da rua dos Médicis até a praça Maciel Pinheiro (onde um dia morou Clarice Lispector e onde ficava a academia do Dr. Bosch, no primeiro andar de um prédio velho de esquina com a rua da Conceição), caminhavam pela rua Manoel Borba. Para essa mocinha, o Recife tinha o encantamento das ruas arborizadas do bairro da Boa Vista, da brisa que se espalhava do mar e dos rios por ruas sombreadas e casarões antigos, com calçadas destruídas por raízes tortas de Mangueiras e Castanholas centenárias.
Janeiro corria ameno. Puro deleite no resto do dia, depois de cumprida a obrigação dos exercícios matinais. Na redondeza, a casa da tia Mariana, da tia Nininha, da tia Lenira. Lena, Dora, tanto primo… Até o dia em que o pai, numa de suas viagens de Garanhuns ao Recife, resolveu perguntar sobre o Dr. Bosch ao colega de profissão e dos tempos de faculdade. “É um charlatão, Zé, tira a menina de lá”. Indicou uma professora de ginástica que ensinaria exercícios para fazer em casa; e fabricou no corpo da mocinha o molde para uma forma de gesso, na qual ela passaria a dormir, obrigatoriamente de costas.
Um dia, a mãe viu que ela dormia à sono solto virada de lado dentro daquela estrovenga, que o irmão logo apelidou de cuia. “Amarra a menina”, foi a recomendação do ortopedista. “Mamãe, vem me amarrar!”. E a mãe, chegando apressada ao quarto da moça: “Psiu, menina, tem visita na sala, vão pensar que tem doida em casa.”
Fazer esse molde ao vivo no hospital Centenário de então, foi uma sessão de tortura. As lágrimas escorriam pela face da pobre, espichada por cordas e sem poder levantar os pés firmes no chão, enquanto dois enfermeiros moldavam com gesso a sua coluna vertebral mal coberta por uma camiseta fina, como fossem pedreiros cimentando uma parede de tijolos, sob o olhar severo do ortopedista.
As prescrições do Dr. Bruno Maia (outro dia a Mulher do Sétimo Andar teve ímpetos anarquistas de pichar a placa de rua com o nome dele), só serviram para piorar a escoliose da moça. Até ela descobrir a Fisioterapia, a Reeducação Postural Global, o Pilates. Dos quais, diga-se de passagem, aquele “charlatão” da Praça Maciel Pinheiro foi certamente um dos pioneiros no Recife. Teria sido ele discípulo do próprio Joseph Pilates, tendo emigrado ao Recife em fuga dos nazistas?
A rua dos Médicis não tem mais de duzentos metros. De um lado, termina na rua Dom Bosco. Do outro, na rua Manoel Borba. Do lado da Manuel Borba, a obrigação matutina da moça na academia do Dr. Bosch. Do lado da Dom Bosco, férias, sorvete na Frisabor, a festa dos primos. Foi quase dobrando da rua dos Médicis para a Dom Bosco, que aquela mocinha teve uma experiência oposta ao susto com o tarado do Colégio Salesiano dias antes. Dessa vez, uma experiência luminosa!
Estava ela distraidamente caminhando pela calçada da esquerda, quando ouviu uma discussão acalorada no terraço da penúltima casa do lado direito da rua. Diminuiu o passo e olhou na direção das vozes. Braços se levantavam junto aos argumentos, era ver um filme de Fellini. O que estariam discutindo? Eram uns moços bonitos! Quatro ou cinco… Como se tivessem captado o olhar da moça, pararam a discussão, olharam a calçada do outro lado da rua, e assobiaram um fiu fiu quase em uníssono. Talvez, junto ao sorriso acanhado, ela tenha corado, como ainda aconteceria tantas vezes na vida, até dirigindo assembleia estudantil. Mas logo seguiu em frente e dobrou à esquerda, na direção da casa de alguma das tias, sentindo-se bonita, sentindo-se mulher.
Décadas depois, chegou às suas mãos um artigo escrito por uma jovem militante feminista, uma verdadeira cruzada contra o fiu fiu. Como já vivera a experiência de morar em Boston, onde o simples olhar de um homem na direção de uma mulher já poderia ser caracterizado como sexual harassement, pensou com seus botões: Céus, será que aqui também, nesse fogo dos trópicos, sem a religião puritana, mas sim o ibérico catolicismo permissivo, será que também aqui vão conseguir castrar os homens, coitados?