Diário do Pina

Roçado – 03 de junho de 2020

O prédio ainda dorme. Acorda primeiro pelos elevadores, que, desde ontem, cada um, no último andar onde parou. Dois nas áreas sociais, dois na área de serviço. Começam a se movimentar pela área de serviço. O porteiro da noite entregando os jornais. O ruído das máquinas, ainda que preguiçoso, é insuportável a seus ouvidos, que se confortam em cada volta junto à janela da sala, onde ouve o quebrar das ondas. Este também é perturbado, aos poucos, pelo ruído de outras máquinas, ainda mais poderosas que os elevadores: os motores dos automóveis.

A mulher do sétimo andar esquece a visão enquanto caminha no corredor. Só espia com prazer a aurora, quando dá a volta na sala com a janela aberta de par em par. Aurora que se anuncia na madrugada, mas hoje tarda a clarear o dia. O sol só apareceu às seis e meia, por entre nuvens que logo o cobriram com cobertores pesados, cinzentos. No lado sul não se anunciavam chuvas.

Escuta, no corredor do sétimo andar, como um rastreador escutaria animais na floresta. Os elevadores das áreas sociais ainda dormem; os ricos acordam mais tarde. Bom dia, Jameson. Ele afasta-se, para dar passagem àquela mulher, que faz a volta defronte à porta da área social do setecentos e três, a única do andar que recebe o matutino.

Quando aquela Mulher do Sétimo Andar ainda saía para caminhar na rua, deixava a chave do apartamento na portaria. Jameson tomava conta dela. Um dia, recomendou, A senhora não saia agora não, ainda está escuro, é perigoso. E regava as plantas do jardim do prédio, que não fazia parte de suas obrigações. Jameson é um homem bom. Negro retinto, cabelos e dentes brancos.

Enquanto caminha a passos rápidos, aquela mulher se concentra, agora, menos na audição do que no olfato. Sente os primeiros cheiros da manhã. O cuscuz no fogo sai pela porta do setecentos e um. O café coado, pela do setecentos e quatro. O dia está amanhecendo.

Quando morou na Serra da Mantiqueira, aprendeu a plantar milho e feijão. Com as sementes crioulas num saquinho amarrado na cintura, ia distribuindo, de três a quatro, em cada cova rasa cavada com a ponta do pé e coberta sem grandes cuidados. O trabalho de transformar uma daquelas sementes em um pé de milho, ficaria a cargo da natureza de chuvas e sóis por sobre a terra mãe. Nos dias de colheita, meses depois, o milharal verde, bonito, o milho na boneca, descobriu que só nascera uma espiga em cada pé. E soube, somente então, que as “vinte espiga em cada pé” não passava de um desejo de bom inverno, cantado pelo rei do baião.

Comer o que se planta é um prazer dobrado. O roçado de milho e feijão, casamento perfeito. Casamento na Serra da Mantiqueira. As espigas verdes, cozidas, às dentadas, passadas em manteiga que se derrete ao bafo quente do milho. E as espigas, secas? Lembrara do tempo de estudante no colégio das freiras. O despertador, às seis e meia da manhã, para dar tempo de tomar banho, se vestir, pentear os cabelos, tomar café, escovar os dentes, era a cozinheira ralando as espigas de milho seco, chec, chec, num ralador grande por sobre um pano de prato branquinho. Pediu então um ralador de milho ao artesão, que tudo sabia fazer com as mãos, acostumadas a tratar o bambu desde o corte, até tochas para alumiar noite escura, cadeiras e camas onde descansar o corpo e fazer amor, terraços sombreados. A mulher explicou o que era um ralador de milho seco, fez tosco desenho, suficiente para o artesão tomar de uma lata sem uso, parti-la ao meio, e, com prego e martelo, furar os buraquinhos, pregar uma talisca de madeira em cada lado e, finalmente, fazer a forma, encostando a lata furada e debruada com madeira à curvatura de um tronco de árvore.

A mulher tentou se lembrar como se fazia um cuscuz, daqueles que herdamos de nossos índios: sem salamaleques, somente uma pitada de sal e o pó do milho, úmido em água. Deixa descansar um pouco em uma vasilha, coberto com pano fino. Depois, será cozido ao vapor de uma cuscuzeira. E estará pronto quando o cheiro se espalhar porta afora.

E chega de conversa fiada, assunto predileto dos cronistas, para que os leitores se distraiam um pouco das notícias do dia. Saborear agora um cuscuz ensopadinho com leite de coco, uma boa rodela de inhame cozido, com queijo de coalho assado, uma xícara de café preto, uma baforada, que ninguém é de ferro, e enfrentar mais um dia de quarentena.

DIÁRIO DO PINA

Museu Borodino – 28 de maio de 2020

Para José Hamilton

 

A cada volta da caminhada madrugadeira, saindo do corredor do sétimo andar e passando pela janela da sala aberta de par em par, a Mulher de Sétimo Andar espiava a jangada saindo para o mar. Um espetáculo que se repete sem cobrança de ingressos aos expectadores do sol nascente. Hoje, observou que os pescadores não tomaram o caminho ao norte, como fazem costumeiramente no verão, mas ao sul. Terão suas razões. Conhecem as ruas e avenidas desse imenso oceano de onde tiram o sustento da família. Sabem onde os melhores peixes em cada época do ano.

Sentia saudades do verão. Mesmo que confinamento não houvesse, aquela mulher seguia religiosamente a recomendação dos homens do mar, que só aconselham o banho salgado a partir de setembro. Como toda sabedoria popular, isso tem uma razão: a partir do mês de março, o mar principia a receber águas doces mais volumosas, carregadas de tudo que os rios trazem em sua viagem ao tempo das grandes chuvas do inverno. Eles chegaram a sugerir ao governo fazer do dia Sete de Setembro a comemoração da abertura oficial das praias. É uma beleza ver nesse dia uma verdadeira festa. Houve até um prefeito que fez isso de bom: domingos e feriados, transportes mais baratos, para que ninguém, menino nenhum, deixe de ter seu divertimento, para o qual também não pagam ingresso.

Houve um Sete de Setembro em que estava no Recife uma amiga de São Paulo, Neide. Viera para um congresso e estava hospedada em um hotel no Pina. Combinaram praia no dia da inauguração. Na véspera, a Mulher do Sétimo Andar dormira em casa com o namorado. Como ela, ele adorava as barracas cheias de gente, a alegria colorida de uma manhã de sol. Naquele dia, além de Neide, de Denis, também vieram ter com eles Sílvio e Carmen, que moram nas proximidades.

Saíram de casa no caminhar leve e descontraído de quem vai tomar sol, banho de mar, uma cervejinha bem gelada. Ao passarem em frente a uma das barracas, ouviram Sílvio ser chamado pelo nome. Era seu Wilson, pintor de paredes. Seu Wilson era um homem negro, magrinho, ágil, um pintor de mão cheia. Chegava ao trabalho sempre acompanhado de seu radio de pilha e ouvia os programas favoritos enquanto trabalhava. Nunca tinha pressa, que sabia inimiga da perfeição. Mas sempre cumpriu os prazos.

Na casa da Mulher do Sétimo Andar, às vezes era o dia de Edinha na cozinha, com quem ele proseava enquanto tomava o café fresquinho que ela acabara de coar, antes de pitar seu cigarro. Ela, ocupada nos afazeres domésticos, discretamente ouvia seus telefonemas. E sabia, pelo tom da voz de seu Wilson, quando era a mulher que estava no outro lado da linha, quando era a namorada. Naquele Sete de Setembro, não carecia ser detetive para saber que era com a namorada que ele comemorava a abertura oficial das praias do Recife.

Um dia, a vizinha, que acabara de se mudar para um apartamento no sétimo andar, pediu a referência do pintor. Serviço concluído, veio agradecer a indicação, dizendo-se surpresa em sabê-lo também especialista em arte. A Mulher do Sétimo Andar também se surpreendeu. E a vizinha, “Pois é, em dúvida onde colocar os quadros na casa nova, seu Wilson logo se prontificou, dizendo que isso fazia parte de seus serviços. Ele quem escolheu o lugar de cada quadro, onde ficavam melhor com a mobília, com a iluminação da casa”. Na verdade, como quem conta um conto acrescenta um ponto, seu Wilson efetivamente era quem pregava os pregos nas paredes das casas pintadas por ele.  Porém, depois de marcados os lugares.

Naquele Sete de Setembro, a trupe dos amigos escolheu uma boa barraca com cinco cadeiras e duas sombrinhas, para protege-los do sol ardente das onze horas da manhã. A conversa ia animada, regada à lourinha geladíssima e amendoins torrados e cozinhados. O comércio ambulante ia passando na frente deles, oferecendo caldinhos de todos os sabores, cachorro quente, bronzeador, pipas colorindo a brisa… (No verão da passagem do milênio, Zé Hamilton contou quase uma centena de produtos vendidos nesse comércio ambulante à beira mar). O mesmo conforto do Museu Militar de Borodino, onde o visitante não carece cansar as pernas para ver as cenas da Guerra Patriótica de 1812 na Rússia, que vão passando na sua frente.

E eis que ouvem uma música de Núbia Lafayete ao longe, chegando, chegando devagar. Esbarra bem defronte à barraca onde estão. Semelhava um carrinho de sorvete, de cachorro quente, com uma roda resistente à areia fofa na frente e duas pernas de madeira atrás, para apoiá-lo quando parado. Feria ouvidos acostumados a Mozarts e Beethovens. E como conversa de praia é mesmo para ser levada junto com a brisa, um deles imaginava um carrinho desses a circular entre as barracas tocando música clássica.

Qual o limite entre a vida e a morte? Pois não estão aqui juntos, ela própria, Sílvio, Carmen, vivos bulindo, e os outros, que já se foram? Neide, Denis, seu Wilson, Hamilton.

Diário do Pina

Outono tropical – 19 de maio de 2020

Andava cansada de escrever sobre a quarentena. A bem da verdade, cansada de ficar trancafiada em casa. Já não saía às caminhadas nem no calçadão nem na beira da praia. Conformara-se em fazer os mesmos quarenta e cinco minutos entre sua sala de porta aberta e o corredor do sétimo andar. Mas infeliz não. Seria chorar de barriga cheia, quando tanta gente era obrigada a espaços apertados, em ruas estreitas, sem saneamento básico, sem o prazer dos livros que saiam das prateleiras das estantes e vinham lhe fazer companhia, sem músicas que andavam adormecidas e passaram a visitá-la, como faziam os bons vizinhos de antigamente.

Já não carecia correr a dormir cada dia mais cedo para acordar cada dia mais cedo, para chegar antes dos policiais ao calçadão. Espiava-os de cima, e tinha até pena de vê-los com roupas tão inapropriadas para o calor do Recife. Houvéssemos sido colonizados por ingleses, como os indianos, estariam eles de bermudas e camisas brancas, bonés protetores do sol que, aqui, o calor não obedece a inverno.

O final de semana, quando costumava escrever o Diário do Pina, havia sido chuvoso, cinzento. Era como se o sol fosse seu aliado na escrita. Como escrever sem o beijo matinal de seu amante esplendoroso, que podia tardar, mas não faltava? Porém, já na segunda feira, descobriu que acima do Equador também existe Outono. Não o do hemisfério Norte, da Nova Inglaterra, onde apaixonara-se perdidamente pelas cores vermelha, amarela e marrom das Maples leaves. Descobriu o Outono tropical em cima de uma esteira de palhas secas de bananeira comprada por doze reais no Mercado de São José.

Depois das chuvas intermitentes na sexta feira, no sábado e no domingo, eis que, ao primeiro dia útil da semana, o sol voltou a dar o ar da graça. Ainda fraquinho, ameaçado por nuvens ao longe. Sua legítima esposa em azul marinho e verde esmeralda estava com as cores esmaecidas. Até o debrum em renda branca não realçava, sem o verde a lhe contrastar um colorido vivo.

Com a janela da varanda, chamada pelos vendedores de cortina de vidro, aberta de par em par, a Mulher do Sétimo Andar deitou-se na esteira para fazer seus costumeiros exercícios e alongamentos. Deitada, não via o mar, apenas o céu. Foi então que descobriu o Outono: num céu limpo pelas chuvas invernosas, não vislumbrado no verão porque as cores vibrantes das águas do mar lhe tomavam a cena. Um azul reluzente, igualzinho a letra do Hino Nacional brasileiro. Nesse azul de anil, as nuvens eram brancas de Primeira Comunhão. Do mar, ouvia apenas o murmúrio intermitente das vagas. La mer, la mer, melhor nomeada no feminino. Nesse Outono Tropical, amiga, você passou a atriz coadjuvante do nosso céu risonho e límpido.

 

 

Ó Pátria amada, idolatrada, salve! salve! – 23 de maio de 2020

Para Haidée Camelo

 

Léo, desde menino, adorava jogar bola. Adulto, segundo grau completo, nunca lhe faltou emprego. Porém jamais deixou de jogar futebol nos campos improvisados de Barra de Jangada. Era sua paixão. Viu no sobrinho, Leandro, o mesmo gosto. Juntou mais meninos da redondeza e passou a treiná-los aos sábados ou domingos pela manhã, quando coincidia com sua folga de trabalho. Via nisso um meio de afastá-los da tentação que amedronta todas as famílias pobres que moram nos bairros de periferia: as drogas. O que era uma diversão, foi tomando vulto.

A mãe de Léo, Janeide Maria Palmeira, era uma mulher sem estudos e que aprendera somente a se assinar para tirar os documentos e votar; e aprendeu a fazer contas para não ser enganada no salário nem no troco. Ria desse gosto do filho caçula em ajudar os outros. Era da natureza dele, desde menino. E ela colaborava como podia. Com a patroa, com uma antiga patroa, com uma amiga da antiga patroa, ia conseguindo ajutórios: um botijão de água para mitigar a sede depois do jogo, chuteiras para os que jogavam de pés descalços, camisetas para distinguir um time do outro… No Dia das Crianças, o campinho de Barra de Jangada virava uma festa: cachorro quente que a dona Janeide preparava, refrigerantes conseguidos com uns e outros, até frutas.

Leandro se destacava. Na escola pública onde estudava, chamou a atenção do professor de Educação Física, que lhe propôs estudar no colégio particular onde também dava aulas, mediante uma bolsa de estudos, para que ele participasse do time de futebol da escola. Leandro entrava na adolescência. Melhorava cada dia, sobressaindo-se no time do colégio em competições. Mas, para manter a bolsa de estudos do colégio, a condição era passar de ano. Aí que o bicho pegava. Seu forte não eram os estudos, mas a bola. Porém, se arrastando, conseguia, ficando sempre em segunda época.

Morava, ele, a irmã e o pai na casa da avó. Quando os pais se separaram, Leandro tinha apenas dois anos. Sua avó foi a mãe que não teve. Um dia, depois de horas trancado no banheiro, apareceu com o topete dos cabelos pixaim coloridos de amarelo por água oxigenada e um brinco na orelha. Desconfiado, perguntou à avó o que ela achava. Janeide olhou para o neto, nem chegou a repreendê-lo nem a tirar o chinelo que tão bem conhecia aquela bunda. “Olhe, Leandro. Brinco e cabelo pintado em moleque rico é enfeite. Em pobre, é malandro, maconheiro”. Leandro desde pequeno sempre foi levado, briguento com a irmã e os primos. Uma psicóloga teria possivelmente diagnosticado uma criança hiperativa com dificuldade de concentração. Em família pobre, aquilo se resolvia na surra e no castigo. Mas não era respondão. Sempre respeitador. Voltou ao banheiro, raspou a cabeça máquina zero e nunca mais usou o brinco comprado por qualquer tostão.

Um dia Leandro chegou em casa eufórico com uma novidade: aparecera um senhor muito bem vestido no colégio, assistira ao jogo de uma competição, e mandou um recado para o pai. Queria levar Leandro, com todos os estudos a serem pagos em bom colégio, para ser treinado na Toca da Raposa, em Minas Gerais. Seus olhinhos miúdos brilhavam, pensando num sonho que acalentava, como a milhares de garotos de sua idade na ampla periferia de nosso país: ouvir e cantar o Hino Nacional, vestido com o uniforme de um grande time, antes do jogo de um campeonato. Conversa vai, conversa vem, o pai ponderou ao tal senhor que para ele, que aprendera o valor do estudo com a persistência da mãe, que deu escola a todos os filhos com o ganho de empregada doméstica, seria melhor esperar Leandro terminar o ano. Ele cursava o primeiro do Segundo Grau.

Naquele ano, Leandro não conseguiu ser aprovado. Perderia a bolsa. E foi então que a avó, cuja autoridade era respeitada e obedecida por todos, deu o seu veredicto. “Meu filho, Leandro ainda não criou juízo, é um meninão que só pensa em futebol. Ele tem que aprender a dar valor aos estudos em primeiro lugar. Vai para o colégio do governo, onde a irmã estudou e deu pra gente. Pois não é enfermeira?” Disse. Estava dito.

Esse é o país de Leandro, de sua família em Barra de Jangada. O mesmo dos moradores de Paraisópoles, uma cidade encravada no Morumbi, na imensa São Paulo, onde policiais não ousam entrar durante essa quarentena, como não o faziam antes, e no qual os bailes Funk rolam soltos nos finais de semana. Para esse Brasil, cujos valores passam ao largo dos nossos, que formamos apenas uma parte da sociedade, cujo sentimento republicano se melindra ao horror de uma reunião ministerial de baixo calão escancarada ontem no Jornal Nacional, o limite entre a vida e a morte é também diverso do nosso, assim como outra é a significação do trabalho. Decifrar esse Brasil, os poucos que o fizeram, não levaram o barco adiante. Um, porque deu um tiro nos miolos; outro porque, depois do exílio, sucumbiu à engrenagem perversa da máquina do Estado para se perpetuar no poder; outro ainda porque, mesmo sabendo na pele que país é esse, igualmente esbarrou de encontro à engrenagem dessa poderosa máquina, igualmente para se perpetuar no poder.

Diário do Pina

07 de maio de 2020

A mulher do sétimo andar, confinada desde o início da quarentena, preservava duas exceções ao seu isolamento. Continuou a fazer as costumeiras caminhadas. Na areia da praia, quando o mar seco; no calçadão (ou no meio da rua, ao avistar alguma barreira policial), quando a maré cheia. E toda sexta feira saía de carro até a feira orgânica, a cerca de quinhentos metros de sua casa, onde Adriana e Mauro, seus jovens velhos fregueses, já deixavam suas compras acondicionadas em sacolas para colocar no porta-malas do carro.

Mas para ela, quando na maré alta, as barreiras policiais passaram a ser um tormento. Talvez nunca tenha superado o trauma de ser perseguida por policiais, quando fazia agitação estudantil na Avenida Guararapes e adjacências, no tempo em que o bairro de Santo Antônio, no centro do Recife, era local de comércio, negócios, terminais de ônibus, muita gente na rua. Não era exatamente os jovens e respeitosos policiais das barreiras do calçadão que temia. Era seus fantasmas. O medo de voltar um sonho quase pesadelo, tirando da bolsa as bolas de gude e jogando fora antes de enfrentar a cavalaria. Pois, por onde caminhava hoje, até cavalaria, motos, e carros da polícia que, de longe, avistando algum contraventor, já mandava uma sirenada.

Nessa quinta feira sete de maio, percebeu que as barreiras haviam diminuído. Ela até chegou a pensar: será que resolveram ser mais inteligentes e passaram a vigiar apenas se estão todos de máscara? Mas causou-lhe sobressalto, quando ouviu ao longe o soar da sirene do carro da polícia. Saiu do calçadão e passou a caminhar no cimentado feio da avenida, arriscando ser atropelada por motos e automóveis. Pelo menos era plano. Na calçada, o risco de queda, para quem anda no passo rápido que faz bem ao coração, seria o mais temerário de todos os lugares. E ficava pensando com seus botões: se algum prefeito tivesse a coragem de obrigar os condomínios da avenida, onde só moram ricos (aos prédios compete, lhe parecia, a atribuição da construção dos passeios em frente aos respectivos espaços por eles ocupado. Disso quem sabe é Francisco Cunha), obrigasse-os a fazer calçadas segundo um padrão definido pelo poder público? O que foi feito das pedrinhas, que diziam portuguesas, quando as substituíram, uma troca tão boa para os caminhantes, por pedras ecológicas de um suave colorido? Se não jogaram fora, poderiam muito bem ser reaproveitadas nas calçadas. Faria gosto aos conservadores. Dá um prazo, senhor prefeito. Não faz? Multa pesada, que será rateada entre os condôminos. Taí uma multa proveitosa. Ah, se houvesse prefeitos corajosos…

Mas hoje ela observou outra coisa. Lá vinha a mulher do sétimo andar caminhando sossegadamente pelo calçadão, quando ouve o barulho da sirene do carro da polícia. Um pouco à sua frente, um no calçadão e outro na pista de ciclismo, dois caminhantes proseando à distância. Também ouviram a sirene da polícia e olharam para trás, como ela. O que caminhava no calçadão, foi para outro local proibido, a pista de ciclismo. Os policiais abordaram a mulher, que estava no asfalto, com as recomendações de sempre. Aos homens, nada disseram. Ela pensou, Mas será que até aqui?

Porém a experiência mais inusitada do confinamento foi quando, pela urgência de um remédio que não estava conseguindo por telefone, foi até uma drogaria, sua velha conhecida. Essa é uma das primeiras coisas que aprende o velho: onde ficam as boas casas do ramo. Foi o primeiro dia em que fez um percurso mais longo de carro. Saiu do Pina, atravessou pontes e viadutos, e chegou à Avenida Agamenon Magalhães. Que emoção! A quanto tempo não via a cara dessa larga avenida, cortada ao meio pelo Canal do Derby! Ainda havia vendedores de pipoca e água. Poucos. Só uma pobre menina, que não alcançaria a altura de sua Pajero, oferecia serviços de limpeza de vidro. Todos, com raras exceções (a menininha era uma delas), usavam máscaras. Aos sinais fechados, a Mulher do Sétimo Andar observou ainda que, grande parte das máscaras era de tecido, feitas em casa, com cores variadas. Uma mocinha, muito elegante, usava uma combinando com as cores de seu vestido.

Já vira essa cena quase às centenas, nas telas, desde o princípio da quarentena ao redor do mundo. Ao vivo, era a primeira vez. A cena remetia a filmes de ficção. Para ela, contudo, trazia uma lembrança de menina. Quando seu pai, médico de província, sempre que não havia uma parturiente em dias de dar à luz, enfiava no Ford 51 mulher e filhos a caminho da fazenda do pai dele, em outro Agreste, que hoje, com as estradas asfaltadas, seria perto. Naquele tempo, era uma aventura digna de filmes do cowboy. A começar pela poeira, que saía das estradas esburacadas e entrava carro adentro. Foi quando o pai se informou do endereço da costureira que fazia as máscaras para o Hospital Dom Moura. Encomendou para todos em casa. Um dia, ele mesmo ouviu no consultório o comentário de um cliente, de que, a polícia rodoviária quase havia parado, para verificar se haviam saído do hospício, um homem, uma mulher, e meninos de várias idades, todos usando máscaras brancas cobrindo o nariz e a boca, só os olhos de fora.

Quando parou o carro em frente à drogaria, o nome Dom Moura já havia levado aquela mulher devaneadora a outra cena, não mais pelas estradas poeirentas no verão ou lamacentas no inverno, mas ao bispo. Não aquele, Dom Moura, que devia de ter sido importante porque nomeava o hospital e a praça mais florida da cidade. Mas outro, com cara de bonachão, baixinho, gordo. Quando esse novo bispo foi nomeado, a cidade o esperava em clima de festa, quase uma cerimônia medieval, quando a Igreja Católica era o centro dos acontecimentos, em lugarejos onde mal chegava a presença do rei. Os alunos do colégio do padre e as alunas do colégio das freiras, vestidos com uniformes de gala, esperavam a cerimônia de recepção ao novo bispo, organizados em filas, como fosse um Sete de Setembro. As mocinhas em flor, em discretos cochichos, só tinham olhos para os alunos internos do colégio do padre. E eis que chega o bispo, ao palanque improvisado em frente à Igreja Matriz de Santo Antônio. Com a batina preta abotoada de cima abaixo por botões roxos, da mesma cor do cinto largo em torno de seu largo ventre e do chapeuzinho grudado no cocuruto. As freiras redobravam os cuidados com a disciplina. Houve hinos, discursos, o sol quente em cima das cabeças buliçosas das moças, cobertas por boinas de lã. O bispo foi o último a falar. Deve ter dito muitas coisas sobre a Santa Madre Igreja, a Diocese, mas, de tudo, restaram seis palavras: Saí de Caicó; vim cair cá.

Na volta pra casa, não resistiu a pinhas, caquis e laranjas cravo vendidas na esquina da rua Joaquim Nabuco com a rua das Creoulas. São tantos a serem homenageados por ruas e pontes e viadutos, que os nomes antigos vão desaparecendo. Um dia, um prefeito de Salvador, na Bahia, baixou uma lei para voltar a valer os nomes antigos das ruas. Assim, da noite para o dia, Monsenhor Teodolino se viu destronado em favor do nome rua da Mouraria. Não Mouraria trazida pelos portugueses da metrópole, mas rua de ciganos mouros, que ali e no entorno faziam sua morada e seu comércio. Cada vez que aquela mulher passava pelo lado decadente do bairro da Boa Vista, no Recife, temia pelas ruas da Glória, do Jasmim, dos Prazeres…

Antes das pontes e viadutos para sair do Recife e chegar ao Pina, acionou o waze no celular. Não para saber o caminho, que conhecia de cor e salteado, mas para ouvir a gravação avisando, Seguir em frente na direção do viaduto Encanta Moça. Algum cronista da cidade já contou desse encanto e dessa moça.

 

09 de maio de 2020

Dormira mais tarde na véspera para ouvir a boa música dos Antiquarianos. No isolamento do coronavírus, sem o prazer do bar às sextas feiras, organizaram-no virtualmente. (Quanto dinheiro devem estar ganhando os que inventaram as traquitanas para os grupos se verem e se ouvirem sem sair de casa! E muito mais vão ganhar, porque essa moda veio para ficar). Quando olhou para fora, tomando a maçaranduba do tempo, a cavalaria passava pelo calçadão bem defronte de sua janela. Foi aí que pensou no que tinha sugerido seu filho budista, quando soubera dos fantasmas que lhe despertavam os policiais. Mãe, por que você não tenta a área da piscina do prédio? Demorou a seguir a sugestão de quem hoje vê o mundo com mais sabedoria do que nós, que somos levados por hábitos arraigados.

Desde que morava naquele condomínio, há treze anos, a Mulher do Sétimo Andar só deve ter ido àquela área de lazer umas quatro vezes, se muito. Para ela, era um espaço inútil. Não iria se contentar com um tanque e uma área confinada, quando havia a seu dispor o imenso Oceano Atlântico.

Foi uma descoberta. De seu apartamento, da sala, do escritório e do quarto, o mar se lhe oferecia quadros mutantes no decorrer de um dia, a cada dia, a cada estação do ano. Porém, do espaço aberto do décimo quinto andar, foi como se lhe abrissem novos horizontes. Viu de cima, em voo rasante de avião, ao fundo de seu prédio, o verdadeiro Pina. Aquele que levou o judeu aventureiro de sobrenome Pina, chegado ao tempo dos holandeses, a atravessar a Ilha do Recife para vir comerciar com os primeiros moradores do que hoje virou a favela do Bode. Viu do alto, à sua esquerda, o bairro de Brasília Teimosa, onde já caminhara, nas madrugadas, em quase todas as ruas, observando as moradias em casas, como antigamente. E viu, à sua direita, o quanto os arranha-céus feriam a paisagem.

Diário do Pina – Primeiro de Maio de 2020

Querida Sevy,

Por causa de um sonho, vim te escrever. Ao lado do computador, fiz como um altarzinho: três flores roxas num vaso improvisado; meu caneco de flandre com água fresca; e uma vela acesa em castiçal. Fecho as cortinas para propiciar o recolhimento das igrejas.

As flores, amiga, trouxe de minha caminhada de hoje. Essas florezinhas, de uma cor entre lilás e roxo, nascem numa plantação rasteira dos morrinhos de terra à beira mar aqui no Pina. Elas marcam no calendário praieiro o principiar do inverno, a nossa estação das chuvas, do plantio dos roçados no Agreste e no Sertão. Você sabe precisamente do que estou falando. Pois bem, ao passar pelas flores lilás, que deixei na intenção de colher na volta da caminhada, ainda não sabia que iria fazer o altarzinho. Talvez elas tenham me levado a isso. Ficaram tão mimosas na taça de vinho do Porto … Será que irão perdurar até eu terminar de te escrever? Pois, mais do que as papoulas, são frágeis, delicadas, e morrem ligeiro.

Você partiu e não alcançou esse tempo de trevas e luto. Estarás em lugares de luz, querida, pois foi assim que soube ontem de tua morte numa mensagem de whatsapp. “Sevy tornou-se uma luzinha que nos acompanhará estrada afora …”

Aproveito a missiva para te dar notícias da terra. Ontem chovia muito. Talvez tenhas ouvido o barulho da chuva. A sedação leva a alma do moribundo para tempos e lugares que a medicina até hoje não decifrou. Ouvias, quiçá, o barulho da chuva de quando eras menina, água molhando e fazendo cheirar a terra mãe. Para onde retornas agora.

Não sei se posso te nomear propriamente amiga. Na verdade, sabíamos uma da outra por amigas comuns nossas. Eu sempre te vi à distância, como num carnaval em que, de longe, me acenaste com um sorriso. Estavas com um vestido de melindrosa todo bordado de lantejoulas. Feito sob medida para teu corpo magrinho de pele morena cor de jambo do Pará, o rosto iluminado por olhos verdes que davam a tua marca brasileira. De você, ouvia histórias. Como da vez em que pediste Edinaldo emprestado a Lucila para chegar de braços dados com ele no bar O Bêbado e o Equilibrista. Você, para mim, era como a atriz criada pelo narrador de Proust no primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido. Uma figura legendária de nossa Província.

Até o dia em que fui à tua casa, na rua que faz oitão com a Igreja de Casa Forte. Nessa tarde, me passaste a chave para abrir a porta da África, através do país mais pobre daquele continente, a Guiné Bissau. E me deste o único escrito que tinhas de teu, que não os burocráticos relatórios da FAO. “Faça disso o que quiser, Teresa. Eu não tenho mais tempo de vida para escrever nada”. Você também já não teve tempo de ler o destino que dei àquelas nove folhinhas de papel ofício. Foram-me de muita serventia, Sevy. Cheguei até a província de Bula, na região de Cacheu, onde já não encontrei mais vivo Chefe Lucas, Régulo Central das comunidades locais, para quem tu me fazias portadora de um abraço. Mas ainda fotografei o mesmo Quimbo, com um novo Chefe e suas várias esposas; e, nessa família grande, a mesma descrição tua do local: a cozinha coletiva no centro do terreno, onde preparam a comida as mulheres, enquanto os filhos pequenos brincam soltos no terreiro.

Naquele dia de nosso encontro em Casa Forte conheci de perto outro lado teu: uma imensa generosidade. Para você, amiga de tuas amigas era amiga.

Saber ontem de tua morte me doeu muito. O mistério da morte, quando chega perto de nós, mexe em lugares desconhecidos de nossa alma. Pensei nas sábias palavras que ouvi um dia de meu marido, “na nossa idade, não podemos mais nos dar ao luxo de perder nenhum amigo em vida, porque a morte está próxima de nós”. É isso. Já contamos nos dedos de uma mão os parentes da geração dos pais e tios. Somos a bola da vez. E pensei também numa amiga querida, das mais queridas, que corro o risco de perder em vida, por causa de uma quase arenga de crianças, que mordem uma a outra e depois ficam se acusando mutuamente de quem mordeu primeiro, enquanto a ferida está ali, sangrando pela distância uma da outra. Não a distância física, que esta não separa amizade. Mas a de almas.

Finalmente, Sevy, chego ao sonho. Vou te contar a parte dele que, para mim, não é material de análise, mas me chegou como os sonhos aos povos primitivos: uma parábola, aportada ao mundo onírico com a beleza e a suavidade de um recado de quem já não está mais entre nós.

Haverá uma festa. Estamos numa sala grande, uma espécie de galpão, onde dormiremos todas. Esse galpão comporta uma cozinha e um quarto, sem separação dos ambientes. O clima é de alegria, até uma certa excitação nos preparativos da festa. Além das amigas, estão também nesse espaço duas empregadas domésticas vestidas com uniformes.

Sydia é quem primeiro chega aos preparativos da festa, cuidando de arrumar algumas peças que estavam espalhadas sem ordem, em cima do tampo de um guarda louça de antiquário. Faz um sorriso de quem está achando toda aquela invenção uma graça. Sei que Lucila está presente, mas ela não aparece. Quem aparece é Clara, vinda de um corredor que conecta aquele galpão com outras partes da casa. Chega também muito sorridente, trazendo nas duas mãos uma travessa grande, que parece pesada e contendo uma comida quente.

Há uma conversa constante entre as muitas pessoas que circulam naquele ambiente. Não vejo todas. As amigas passarão a noite comigo. Eu já estou acomodada na cama de casal e elas improvisam colchões pelo chão. Ao chegar do corredor, Clara anuncia, com um tom de organizadora, “Gente, é a festa do batizado de Teresa”. Deitada na cama, não faço nada, só observo a movimentação de todas, sentindo-me imensamente feliz em estar sendo festejada. E não falo nada, mas penso, “De agora em diante, farei uma festa de batizado todo ano”.

De repente, entro também naquela faina bem feminina de arrumar casa e fazer comida. Aí vejo uma criança de uns dois anos circulando no meio das cozinheiras, correndo o risco de ser atropelada por alguma pessoa grande. A menininha está de chupeta na boca e fraldinha pendurada no ombro. Pergunto a uma das empregadas, supostamente a que toma conta da menina, Por que está aí essa criança? Não deveria estar na cama dormindo? E ela me responde que sim, mas que ela não quer ir para a cama. Eu nada falo. Baixo-me na altura da menininha, tomo-a nos braços e levo na direção de uma porta fechada, uma porta sem pintura nem verniz, como estivesse inacabada. Quando abro a porta, lá está minha mãe, muito velhinha. Sei que é minha mãe, embora suas feições não sejam as dela. Vejo somente a cabeça. O resto do corpo está coberto com o lençol.

Ela se acorda. Não quando entro, mas quando coloco a criança junto. E diz, “Dormi muito. Só faço dormir. É um sono …”. E eu replico, “Durma, mãe. Dormir é a melhor coisa do mundo”. E ela acolhe a seu lado aquela menininha, já adormecida.

Freud ou Jung iriam pintar e bordar em cima desse sonho. Para mim, Sevy, foi apenas a despedida de tuas amigas, numa grande festa, como você merecia. E como em sonhos tudo é simbólico, é você quem está deitada na cama do galpão, observando as amigas, sem nada falar, apenas feliz pela festa; é você a menininha acolhida pela avó, representada ali como teus ancestrais.

Diário do Pina – 26 de Abril de 2020

“O Homem é o nosso verdadeiro e único inimigo. Retire-se da cena o Homem e a causa principal da fome e da sobrecarga de trabalho desaparecerá para sempre.” (George Orwell)

 

 

– Hoje, camarada, conseguimos nosso troféu: quase tiramos a velha das pedras coloridas que margeiam o mar. Mas foi preciso mobilizar a turma da Lambreta.

– A turma da Lambreta?

– Você ainda não sabe? – Admirava-se Zeca. Magrinho, ágil, era dado a muita prosa – De uns anos para cá, os boys ressuscitaram essas motonetas, das quais ninguém mais recordava que existiram um dia e percorriam em grande velocidade as ruas estreitas de Roma. Lili, que, sem sombra de dúvida, é a mais inteligente e sagaz de nós todos, foi quem armou todo plano.

Zeca, nesse momento, tirava uma folga de sua incessante luta pelas ruas desertas de humanos. Conversava com seu maior comparsa, Monet, que lhe ouvia com admiração. Ambos fizeram parte da equipe que escreveu a Constituição com os princípios gerais da democracia, recém-criada em praça pública com pompas de festa e até bandeira.

– Pois é. Foi assim. Naquele tempo, Lili tinha uma dona, já meio velhota, que dormia cedo. A princípio queria que Lili dormisse com ela no mesmo quarto. Mas Lili tanto perturbou, que ela deixou que ficasse no terraço coberto, onde o filho de sua dona guardava a Lambreta, pois no prédio dele não havia garagem. Logo Lili ouvia o ronco da velha, depois da cachacinha que tomava todo dia antes de dormir,

– A velha era cachaceira?

– Para todos ela se apresentava como uma lady. Mas nunca dispensou seus goles. E não era bebida de rico que ela apreciava não. Era cachaça mesmo. Depois que caía no sono, o mundo podia desabar que ela não despertava. Era então que Lili saía, pés ante pés, e ia treinar na lambreta do boy filho de sua dona. Nesse tempo, as ruas já estavam praticamente esvaziadas dos humanos e ela tinha carta branca para circular à vontade. Tomou algumas quedas, chegou a arranhar o lombo, mas não sofreu fratura. E aprendeu a pilotar. Lili, amigo Monet, além disso, era chefe de uma turma grande. Começou a mobilizar as camaradas para fazerem o mesmo. Em reuniões secretas, traçaram estratégias especiais de furto de Lambretas de boys, que elas faziam questão de não chamar de roubo, mas desapropriação. Ela, Lili, ainda continuou por um tempo morando com sua dona. Mas então, já como parte de uma nova estratégia de luta: infiltrar-se entre os humanos. Era amável com sua dona. Aguentava o bafo de cachaça dela. Deixava que lhe afagasse a cabeça, até que beijasse sua boca, que, depois, disfarçadamente, corria ao quintal para lavar bem e tirar os micróbios.

– Eita, Zeca, que você é mestre em fazer arrodeios. Volta o fio à meada, camarada. E como foi que tiraram a velha das pedras coloridas que margeiam o mar?

– Calma, Monet, que você nem ouviu ainda a história toda e já está aumentando um ponto.  Pois bem, estava lá a velha. Noventa e três anos. Já não havia humanos nas pedras coloridas e os automóveis na avenida estavam reduzidos aos serviços essenciais para os confinados. Os passarinhos cantavam como nunca dantes nos pés de Castanhola. E a velha lá. Todo santo dia saía para caminhar. Nossos camaradas já não tinham meios de convencê-la a voltar ao confinamento. Usassem qualquer violência, seria um risco. Sabíamos todos muito bem do que era capaz aquela mulher. Tá vendo aquele prédio bem ali defronte? É lá que mora a velha, no sétimo andar. Acho que é a mais antiga daquele condomínio. Os do tempo dela, todos já morreram. Quando começou o nosso movimento, isso há quase duas décadas, nesse tempo essa velha ainda estava na casa dos setenta anos, ainda serelepe. Pois estava ela no sossego de seu apartamento, ora lendo um livro, ora escrevendo, ora ouvindo música, ou simplesmente tomando a maçaranduba do tempo na janela, observando um navio parado em alto mar desde o início do confinamento,

– Sim, mas chega de lero lero, Zeca. Como foi que tiraram a velha das pedras?

– Mas quanta impaciência, santo Deus! Como eu vinha dizendo, ela estava no sossego de seu lar, quando principiaram a quebradeira do piso de um dos apartamentos do prédio onde ela mora. Ela ligou então para o síndico, que tirou o time, dizendo que as leis do condomínio não proibiam obras, desde que dentro dos horários permitidos. E ela argumentou, Sim, mas estamos em uma situação especial, todos confinados. Quando viu que daquele mato não ia sair coelho, sabe o que ela fez? Tomou de um livro de capa dura, livro de arte, que serviu como uma prancheta de antigamente, uma caneta, duas folhas de papel ofício, e se sentou numa cadeira colocada num lugar nunca frequentado por cadeiras: junto ao interfone, que ficava numa prateleira acima da área molhada do balcão da cozinha, onde ficava o escorredor de pratos. Afastou este, enxugou o lugar e fez dali um improvisado escritório. E começou a interfonar para os habitantes daquele edifício de quatorze andares com quatro apartamentos por andar. Gastou quase uma manhã inteira nisso. Com cada vizinho, gente que ela não conhecia, pois, você sabe, né Monet? Esses humanos são muito estranhos mesmo. Moram em caixinhas separadas uma das outras por paredes, pisos e elevadores e ninguém conhece ninguém. Com cada um ela conversava sobre a obra. Quando estava pelo meio dos andares, de cima para baixo, já deu para fazer uma estimativa: metade daqueles moradores eram velhos. Os que ainda estavam na ativa, como uma professora que trabalhava em casa (como faziam todos naquele tempo, era o tal do home office), com essa proseou mais, que a jovem mestra era cheia de ideias. As sugestões de providências de todos foram as mais variadas.

– Puxa, vida, como você é impaciente, camarada! O fato é que a velha terminou descobrindo que existia um decreto, feito especialmente para aquele tempo de confinamento, que dava substrato legal para parar a obra. No dia seguinte, efetivamente, voltou a imperar o silêncio no prédio. Ficou provado que a velha sabia fazer agitação social, é ou não é? Agora você imagine se fôssemos comprar briga com ela, mais velha, mais encrenqueira … Foi aí que Lili entrou na jogada para tirar a velha das pedras coloridas que margeiam o mar.

– Finalmente, Zeca. E o que fez Lili?

– Mobilizou as lambreteiras. Antes, já haviam até tentado amedrontar a velha com a Cavalaria. Mas os cavalos, recém-chegados à nossa causa, muito embora fortes e trabalhadores, não são donos de grande inteligência, você sabe disso. Ainda não haviam se libertado dos humanos. Sorte que nós temos muitos humanos aliados, os que nada tinham a perder e ficaram de nosso lado. Os cavalos espalharam cocô de montão nas pedras coloridas, chegando ao ponto do cheiro daquela bosta suplantar o da maresia. Não adiantou. A velha se desviava do cocô e continuava sua caminhada diária, lenta, distraída. Num dia combinado, o esquadrão de Lili madrugou nas pedras coloridas que margeiam o mar. A velha já estava lá. Em grupos de quatro, cinco, as lambreteiras passavam bem próximas dela, tentando assustá-la com o barulho ensurdecedor daquelas máquinas. Mas a velha, já meio surda, nem ligava.

– E então, Zeca?

– E então? Lili se deu por vencida, com uma frase definitiva: Deixa essa velha em paz. Um dia ela morre.

 

Diário do Pina

Segunda feira, 13 de abril de 2020

A Mulher do Sétimo Andar estava envergonhada de confessar em público. Como que, no meio de uma Pandemia, que andava matando tanta gente, ela, no recolhimento de seu lar, estava vivendo umas felicidades? E isso simplesmente porque, há muito tempo, não se sentia cuidada. Por circunstâncias da vida, até aquele momento, com setenta e cinco anos a completar talvez ainda trancafiada em casa, ela quem sempre cuidara dos outros.

Um dia, seu filho mais novo, quase a título de reclamação, perguntou-lhe, Mãe, quando é que você vai ser velhinha? A conversa era pelo telefone e não dava para ver no rosto do filho a expressão um pouco de brincadeira, um pouco na vera. Era como se ele estivesse dizendo, Mãe, quando é que você vai se aquietar, deixar de inventar moda? Ela lhe respondeu, sem pestanejar, Só no caixão, meu filho.

Era dona de uma inquietação interior que lhe impulsionava para todos os pedaços de vida que se apresentassem à sua frente. Nas comemorações dos setenta anos, em viagem com amigos pelas cidades históricas de Minas Gerais, conheceu, numa praça de Tiradentes, um artesão de bambu que acabara de arrematar a venda de umas tochas, ainda acesas enfeitando a praça. No outro dia, largou os amigos no hotel e subiu a Serra da Mantiqueira com esse senhor, com quem viveu uma intensa história de amor que durou o tempo de uma paixão, três anos.

E não parava de inventar moda, aquela mulher. Depois da Mantiqueira, foi difícil ficar longe da natureza. Então, na Serra da Borborema pernambucana, em pleno Brejo de águas e cachoeiras, ela alugou uma casa e lá viveu em um quase monastério por seis meses, o tempo de parir uma outra história de amor, agora com canetas e cadernos e computador.

O confinamento no Pina, foi como chegar ao porto seguro de seu lar, aquele que vinha sendo construído palmo a palmo, em cada espaço onde coubesse retalhos de sua vida pretérita nos objetos de artesanato, nos quadros e nos móveis. Da Borborema, ela trouxe o monastério para o apartamento no sétimo andar, aberto ao mar, à imensa claridade do sol que invade toda a sala desde o seu nascer, na madrugada, até o meio da manhã, pelas dez e meia. Escancarou para sol e chuva o terraço virtual da sala, de onde já retirara os tapetes, deixando nu o chão de pedras que o artesão do Várzea já não faz.

Só que agora, na quarentena, sozinha em seu monastério, as sextas feiras sem a prosa da empregada de dia e a música no boteco de noite (toda sexta feira é dia de festa), ela se alongou em espaços insondáveis em sua própria casa; como um hóspede que, chegando a um apartamento alugado para passar um par de semanas, sai especulando cada lugar da casa, onde ficam os pratos, os talheres, as panelas. E arruma o espaço à maneira mais cômoda para desfrutar o melhor possível das coisas que serão suas naquelas duas semanas. A Mulher do Sétimo Andar rearranjou à sua maneira cada material de limpeza, jogando fora uns inúteis e outros vencidos; a despensa ficou mais inteligente, com os menores na frente e os maiores atrás, ao contrário dos colegiais em desfile de Sete de Setembro, num tempo e num lugar em que não eram os quartéis, e sim os colégios das freiras e do padre que punham seus estudantes de todas as séries para desfilar ao som das respectivas bandas de música pela principal rua da cidade, comércio fechado, a prefeitura com a bandeira do Brasil hasteada e as autoridades municipais e o bispo diocesano postados na ampla varanda do primeiro andar. Ali, no desfile, a ordem era dos maiores aos menores. Na despensa, dos menores aos maiores, para que, num só golpe de vista, ela vislumbrasse o que estava guardado.

Ao fazer tudo isso, até então entregue ao que a dedicada funcionária arrumava segundo a lógica de outra classe social, foi como se se apropriasse de um espaço de sua casa que até então não lhe pertencia. E gostou. No começo. Depois, foi sentindo saudade daquele conforto do tempo em que não existia o confinamento e a sexta feira era um dia especial, como se o convento nesse dia da semana se abrisse para visitas. E sentiu saudade da empregada, que trazia para dentro de sua casa uma prosa do outro lado da vida, onde os vizinhos se conhecem. E trazia também uma cumplicidade que ultrapassava a casa limpa e a roupa arrumada nos armários. As vezes era um feijãozinho caseiro que fizera de véspera na sua casa para a marmita do filho, e que sabia com que gosto a patroa iria saborear aquele feijão bem temperado com carne de charque.

E quando, depois de semanas de confinamento, o filho da empregada, a caminho do trabalho, de moto, desviou a rota para lhe trazer uma marmita com o feijãozinho temperado com charque, foi nesse dia que a Mulher do Sétimo Andar se deu conta de que, mais do que a roupa limpa, mais do que a casa limpa, mais do que a comidinha preparada para aquele dia, o que havia entre ela e a empregada era uma cumplicidade feminina. Era na hora do almoço. A empregada, por hábito aprendido em muitas casas de família, onde fez impecável curriculum vitae, sabia que seu lugar ali era para servir e não para ser igual. Porém, sem infringir seu hábito da distância devida, naquela casa, com aquela patroa, quando sozinha, sem hóspedes nem visitas, entre servir a salada, a comida quente e a sobremesa, proseavam. Ela, a empregada, postada em pé à soleira da porta que separa a cozinha da sala. Os netos, uma vez perdida que viessem com a avó, estes sim, sentariam à mesa da patroa e seriam igualmente servidos por ela.

(Sérgio Buarque de Holanda classificaria a isso como uma manifestação de nossa Cordialidade – o Homem Cordial –, donde ele deduziu o impasse da nação brasileira: seria essa a sua contribuição ao mundo? Ou teria que perder a intimidade que dilui o público e o privado, para assim chegar à universalidade da democracia?)

Com o confinamento, voltou à lembrança da Mulher do Sétimo Andar aquela prosa que tivera com o filho, havia anos. Pegou do celular e mandou uma mensagem, Filho, estou velhinha. Os filhos, nessa Pandemia, estão tomando conta dos pais, mesmo à distância. Beijo da mãe.

E, talvez pela primeira vez na vida, sem que precisasse ficar doente, era velha. E saboreou, sem se sentir coitada, o gosto de se sentir cuidada; como as crianças que, ainda sem saber como é ser adulto, se entregam aos que cuidam de si e sentem que aqueles gestos lhe chegam carregados de amor.

 

Sexta feira, 17 de abril de 2020

Havia encomendado na feira orgânica o de sempre, e mais: “todas as frutas que houver”. Parou o carro, botou a máscara, desceu para dar uma verificada no que estava separado para ela, botou um rabo de olho nos outros produtos expostos e verificou que lá estavam pitombas. Uma frutinha tão besta que nem sequer havia sido ali considerada na categoria de fruta. Vendidas não por peso nem por unidade, mas por cacho. Os galhos secos amarrados por embiras, sem conter um cordão, um elástico, nada que houvesse passado por indústria. Exatamente iguais as de todas as feiras e até dos sinais de trânsito da Avenida Agamenon Magalhães.

Sábado era o dia da feira. O dia em que tudo acontecia. Ali pelos quinze, dezesseis anos, saía do colégio antes dos demais dias, depois da terceira aula. E riam, riam por tudo, ela e Luci. Poderia ser com Vera Lúcia, com Auxiliadora, ou todas de uma vez. Andando sem pressa. O tempo dos horários ficara no colégio. Lá iam elas de uniforme de saia de pregas azul marinho, blusa branca de mangas compridas, um lacinho ridículo no colarinho, arrancado fora e escondido na bolsa logo saiam de vistas vigilantes. Caminhavam pela calçada do lado nobre da cidade, pois nela havia um palácio. O palácio do Bispo. Quando já haviam alcançado a frente desse palácio, encoberto por frondoso jardim que não deixava ver a casa antiga, semelhavam duas crianças, uma andando com os pés pra dentro, a outra com os pés pra fora. Charles Chaplin rindo delas mesmas, vermelhas de tanta risada, felizes por não ter a freira para repreender, Muito riso é sinal de pouco siso. Depois do palácio do Bispo, passaram defronte do prédio da prefeitura, um prédio sóbrio de dois andares com pé direito alto, sem jardim, aparecido na sua republicanidade cinzenta. Até finalmente chegarem à feira propriamente, já afastada dessa calçada oficial e nobre, misturada às lojas de tecidos, farmácias, bodegas, bares, bêbados. E contaram o dinheiro. E continuaram com uma felicidade distraída, cada uma com seu cacho de pitomba, retirando dele, uma a uma, cada pitomba, cuja casca cor de terra cede a uma leve dentada e, com perícia, os mesmos dentes retiram de dentro da casca o caroço branco, viscoso, que vai derretendo na boca um azedinho, deixando a língua brincar voluptuosamente com aquele caroço indo de um lado ao outro da boca, sem carecer usar as mãos. Até que a cobertura macia que nasceu naquele brincar vai perdendo o gostinho, enrugando-se, envelhecendo e se transformando em uma espécie de nata sem gosto. Os mais avarentos ainda podem tirar com os dedos o caroço da boca, do tamanho de uma bola de gude, para roer até o último milímetro. Agora não mais brilhoso, mas recoberto por outra textura, aquela natinha, prazerosa ainda ao tato da língua e dos dentes. Caroços e cascas eram displicentemente jogados às ruas de paralelepípedos, mais tarde varridas com zelo pelos funcionários da prefeitura, que também lavarão com potentes mangueiras os cocôs de cavalos, de potrinhos e de galinhas vendidas vivas, levando junto o cheiro bom de estrume dos bois de carga, que farão o caminho de volta carregados de trocas nos carros de madeira rangentes feito violoncelos.

 

Sábado, 18 de abril de 2020

Às 4:30 a Lua Nova clara, clara, anuncia a madrugada. Às 5:00, nuvens cinzentas ameaçadoras. Já passava das 5:40 quando irrompeu o sol furando o último obstáculo, já com olho esperto, sem permitir mais nenhum minutinho de intimidade.

 

Diário do Pina 12 de abril de 2020 Domingo de Páscoa

A Mulher do Sétimo Andar andava acordando cada dia mais cedo, para dar tempo de lavar o rosto, lambuzar a cara de protetor solar, se vestir de papangu e tomar o caminho proibido do calçadão. A maré não colaborava, ainda transbordando restos da lua cheia, sem deixar espaço para os caminhantes. O jeito era enfrentar as barreiras.

Desobediência civil. Já fizera isso em mil novecentos e sessenta e oito, em nome de uma causa. Quando passou a pensar com seus próprios miolos e não dos companheiros de luta, deu para pesar e medir aquela causa. Uma mocinha magricela, óculos grandes, cabelos castanho claro, soltos ao vento, usava o que era quase uniforme: uma sainha na altura dos joelhos, blusa abotoada, soltinha o suficiente para esconder a sensualidade, uma bolsa à tiracolo, uma cesta de palha do mercado de São José, tamanho ofício, carregada de textos mimeografados.

Saiam às ruas, vigiadas por viaturas, cavalos e policiais armados, depois de calorosas assembleias. Numa dessas, no pátio da antiga Faculdade de Filosofia, logo ali, na Soledade, perto da Fratelli Vita, um companheiro da Engenharia chama-a à parte, para avisar que aquele rapaz alto, de cabelos da mesma cor dos dela, bonito, bem vestido, destoando um pouco das vestimentas dos demais, que estava a seu lado, desconfiava-se que ele era dedo duro, pois não participava das assembleias da Escola, não fazia parte de nenhum dos partidos que estavam na luta, e só aparecia em passeatas. Ela nada disse. Fez um sorriso de quem sabia das coisas e voltou para aonde estava. Depois, perdeu de vista o moço bonito.

Naquele dia, a ordem era a de sempre. Bolas de gude escondidas nas bolsas ou nos bolsos para jogar nas ferraduras dos cavalos, caminhando disfarçadamente de dois em dois, três, nunca aglomerados. Alguns passariam pelas ruas avisando o local. Poucos sabiam, questão de segurança. Praça Dezessete. Um disfarçou tanto que apenas dizia, baixinho, Macaco, como se todos soubessem o número dos bichos do jogo. Lá, na Igreja do Espírito Santo, em frente a essa praça, foi celebrada a missa em memória do estudante Edson Luiz, morto em manifestação de rua no Rio de Janeiro. Naquele dia, foi muita pancadaria de cassetete no lombo dos que corriam desabalados pelos corredores estreitos das duas portas de saída da igreja. E lá estava ele, sem palavras, com a segurança de quem não tinha nada a ver com aquilo tudo, o braço acolhedor no ombro da assustada moça. Brigavam tanto em meninos … Irmãos são assim mesmo, porque, no fundo, querem a mesma mãe ou o mesmo pai só para si. Passaram incólumes pelo corredor polonês. A memória não reteve como aquilo tinha se dado. Mas guardou a lembrança de logo adiante, na rua Duque de Caxias, onde continuava a perseguição, ela protegida sob seu braço, ele altivo, suspendendo no ar o cassetete do policial a um simples gesto e palavras ditas com convicção, O que é isso? Estou aqui fazendo compras com minha mulher! O policial baixou o cassetete. Desculpe, doutor.

Quando a Mulher do Sétimo Andar saiu para caminhar, às cinco horas da madrugada, o dia mal começara a clarear e as luzes dos postes, sensíveis à luz do dia, ainda estavam acesas. Dia de domingo. Mesmo não fosse o confinamento, poucos automóveis na avenida. Já cruzara o limite do Pina com Boa Viagem, quando o sol nasceu, inglês na pontualidade, muito diferente na claridade esfuziante. Ela parou para saudar o amante arisco, olho no olho, o que ele só permitia no descuido do acordar, ainda se espreguiçando no meio das nuvens, até recuperar o poder de sua majestade, que não permite mais o olhar dos súditos.

Aos poucos, foram chegando. Pickups com faróis piscando, policiais formando barreiras, motos e cavalos circulando na areia da praia, uniformes feitos para o frio da neve e da geada e não para o calor do Recife, coitados. O cheiro de cocô de cavalo, trazido pela brisa, se sobrepunha ao perfume doce da maresia. Os cavalos do Central Park, em Nova York, enfeitados como se todo dia fosse Terça Feira Gorda, usam fraldas descartáveis. Em sua elegância rica, puxam carruagens que um dia embalaram um romance de dois ministros de estado brasileiros, não nesses tempos de confinamento em casa, mas em outro, de confiscamento das poupanças de ricos e pobres.

Dois dias antes, na Sexta Feira da Paixão, a Mulher do Sétimo Andar havia cruzado apenas com dois velhos conhecidos de caminhada do calçadão, um, que havia sumido por tempos e quando reapareceu foi magro, sem cabelos, triste, puxando uma cachorra pela coleira, envergonhado de dar bom dia para quem já o vira cheio de vida; e o outro, em andrajos, menos velho que alquebrado, seu vizinho no outro lado do calçadão. No Domingo de Páscoa, nem esses. Perigo de assalto, que retornará logo acabe esse confinamento provisório e principie o costumeiro, não havia, a área estava vigiada. Perigo de cassetete ou tiro ou fumaça, também não.

Carregava sua arma, usada nas áreas comuns da fortaleza onde morava e embainhada no cós do short, logo ganhava a rua. Criou as próprias palavras de ordem. Ao ver se aproximar o pseudo inimigo, puxa da máscara na cintura, coloca no rosto e ataca primeiro, Cadê sua máscara? Como que o governo bota vocês na rua, para lidar com o público, sem a máscara de proteção? Minha senhora, colabore com o trabalho da polícia, é proibido circular nessa área. Vocês estão enganados, é proibido para todos, menos para os velhos. Esse é o único privilégio dos velhos nesse confinamento.

E aquela mulher ainda dava graças a Deus de tudo isso não fazer ressurgir um pesadelo de antigamente, ela correndo dos policiais, esvaziando da bolsa as bolinhas de gude que nunca teve coragem de usar, em ruas as mais inusitadas de várias partes do planeta, pois o mundo onírico não tem fronteiras, e acordava, naquele tempo, suada, aliviada de que a ditadura militar acabara e ela já não carecia mais fugir da perseguição policial.

Diário do Pina, 29 de janeiro de 2020

Meu querido Gilberto Freyre,

Hoje, na minha caminhada pelo calçadão (o mar estava cheio), me lembrei de você e resolvi te escrever. Pessoalmente, só te vi uma única vez, em uma palestra. Foi em 1969. Eu era recém-formada na Escola de Sociologia e Política. Fui até o Instituto Joaquim Nabuco andando a pé. Morava lá perto, no Poço da Panela. Fui à procura de emprego. Pretendia trabalhar como pesquisadora.

Quem me recebeu, muito caseiramente, sentados nós dois num banco de jardim da entrada do casarão na Avenida Dezessete de Agosto, foi um homem que tinha idade para ser meu pai. Meu sobrenome levou-o a perguntar se eu tinha algum parentesco com Antônio Sales. Sim, meu tio, irmão de meu pai. Haviam sido colegas de turma na Faculdade de Direito do Recife. E Mauro Motta me contava o que eu já sabia pela crônica familiar. Que esse tio era gago e, na tribuna, era famoso pelo discurso fluente, brilhante, onde não gaguejava. Enquanto discursava, tomava xícaras de cafezinho que, sabiam os íntimos, vinham batizados com conhaque.

Enquanto Mauro Motta falava, eu me lembrava de meu tio Toinho, eu menina. Palavras ouvidas, cenas. Morreu tão novo, deixou Jônia com um de um ano e outro na barriga. Cada viagem de Garanhuns a Bezerros, uma longa e empoeirada viagem no Ford 51, a gente entrava na cidade por um bairro de casinhas juntinhas umas das outras, de portas e janelas pintadas em verdes e rosas. Já chegando ao centro da cidade, passava-se pelo muro lateral do cemitério. E ouvíamos sempre a mesma ladainha do pai, Reza, reza todo mundo. E meus primos, filhos desse tio, usufruíam de regalias na casa dos avós, porque eram os meninos de Toinho.

Que me lembre, naquele banco de jardim do Instituto Joaquim Nabuco não se falou de emprego de pesquisadora, o motivo que ali me levara. Muitos e muitos anos depois, a recepcionista do Cebrap liga na minha sala para eu resolver o que fazer com uma moça que chegara procurando emprego. Naquela época, qualquer estudante, dos mais brilhantes e inteligentes das Ciências Sociais ou da Filosofia da USP, estaria pagando o dinheiro, que seus pais não precisaram gastar para eles estudarem na melhor universidade do país, para ter o privilégio de ser um simples estagiário naquele prestigiado centro de pesquisa. Porque eu? E ela, Maristela, a recepcionista, foi simples e direta. Professora, aqui, só a senhora ou o professor Francisco quem sabe lidar com imprevistos. E eu pensei com meus botões, que não era coincidência sermos nós dois nordestinos. A moça era estudante de um curso particular pouco referenciado, negra, possivelmente de família pobre. Subi com ela à minha sala e, depois de uma rápida entrevista, pensei, A moça tem uma qualidade: é corajosa. Talvez tenha me identificado com ela. Calhou que eu estava naquele momento prestes a fazer nova seleção de bolsistas para minha pesquisa. Resolvi contratá-la. Teve um desempenho apenas razoável. Acabado o estágio, Elza Berquó, a maior descobridora de talentos que conheci, estava principiando uma pesquisa pioneira, como todas que fez, sobre a questão racial brasileira. Cristina entrou na equipe de Elza e fez bela carreira, mestrado na PUC, entrou para movimentos sociais, assumiu-se uma negra bonita.

Mauro Motta ainda falava sobre meu tio, quando passou, a alguma distância de nós, você, Gilberto Freyre. Estava se dirigindo a um auditório onde faria uma palestra. Você não quer assistir? perguntou-me meu interlocutor no banco do jardim.

Fomos. Você me causou enorme impressão. Seu porte de senhor, seu sorriso quando passou por mim, sentada no auditório ao lado de um de sua roda. Mas você me impressionou muito mais enquanto falava. Como caiam gostosas aos meus ouvidos aquelas palavras bem pronunciadas. Sobre o que falaste? Não guardei nada do que disseste naquela tarde de um verão muito quente. Apenas a tua despedida: sintam-se todas beijadas e abraçadas.

Esse foi nosso único fortuito encontro. Eu te vi. Você quase não me viu. Vi também, naquela tarde, uma cena que achei linda! Ainda a semana passada, lendo a passagem de Guerra e Paz de Tolstói, em que ele descreve uma cena magnífica de um salão da aristocracia czarista, vi na princesinha Helena, que acompanhava a conversação de todos com suas mãos ocupadas com agulhas e linha; vi dona Madalena naquela tarde, no salão de palestras do casarão da Dezessete de Agosto.

Depois dessa tarde, saíste de minha vida. Não eras compatível com a teoria marxista em voga nas universidades. Mas terminaste voltando, num desses acasos de encontrar um velho amigo a quem não se via nem falava há muito tempo.

Aconteceu no ano em que fui contratada pelo Departamento de Sociologia da Unicamp, em 1985. Faria parte do quadro docente do novo Doutorado em Ciências Sociais, que não era, ao modelo da USP, por áreas disciplinares – Sociologia, Antropologia e Ciência Política – mas por áreas temáticas. Fui para a de Agricultura e Questão Agrária. À primeira reunião de departamento, ainda desabituada às manobras de uma reunião decisiva para a distribuição das disciplinas do semestre entre os professores, foi-me atribuída a disciplina de Introdução à Sociologia para alunos do primeiro ano do Curso de História. Eu havia entendido que esse curso de Introdução à Sociologia seria para o semestre seguinte, já que durante aquele, trabalharíamos na estruturação da Área Temática, critérios de seleção dos doutorandos, preparação dos programas, enfim, tudo.

Não, Gilberto, não perdi o fio ao novelo. Vou chegar ao nosso reencontro.

Bem, estou em casa, fazendo umas leituras preparatórias à próxima reunião de nossa Área Temática, quando a secretária do Departamento de Sociologia me liga, Professora, os alunos estão em classe esperando. A senhora não vem? Já não daria tempo de chegar em Campinas saindo de São Paulo. Dois dias depois, entro em sala de aula com uma proposta de programa do curso de Introdução à Sociologia.

Há mais de dez anos, estava afastada das atividades docentes, trabalhando somente em pesquisa social no Cebrap. Acho que já nem lembrava do que ensinara a meus alunos da Universidade Católica de Pernambuco em 1971. Foi aí, Gilberto, que te reencontrei. Fui na minha estante, peguei Casa Grande & Senzala. E cheguei em sala de aula na quinta feira com uma proposta que não careceu nem papel escrito nem lousa. Leríamos apenas um livro, o semestre inteiro. Naquele livro, com algumas explicações da professora, aprenderíamos um jeito de olhar a sociedade.

Na biblioteca haviam poucos exemplares, insuficientes para uma turma de quarenta alunos. Eles teriam como primeira tarefa, procurar o livro com parentes velhos, um avô, um tio avô … Apostei naquele momento que Casa Grande & Senzala, empoeirados nas estantes da biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, não era um livro da academia, mas da cultura brasileira. E olhe, Gilberto, que estávamos em Campinas, São Paulo.

Ah, foi um curso delicioso! Nessa época, eu ia a congressos e seminários na minha área de pesquisa para apresentar e discutir trabalhos. Num desses, encontrei Dirceu Pessoa, que trabalhava no que, já então, era a Fundação Joaquim Nabuco. Contei a ele desse curso e algumas anedotas a ele relacionadas. E sei que chegaram aos teus ouvidos, Gilberto, porque Dirceu me disse depois. Você vê, como voltamos às boas em 1985? Mas vamos às anedotas.

Um dos alunos, ainda lembro a figura dele, alto, mais para gordo, gaiato, alegre, chegou um dia em classe, todo animado, com o livrão debaixo do braço e, de seu lugar, levantou-se, quase em cumprimento aos colegas e a mim: esse livro é bom, professora, porque agora a gente nem precisa mais comprar a revista Playboy.

A outra anedota foi com meu filho caçula, Pedro. Ele tinha então cinco para seis anos. Um dia, fazendo a lição de casa a meu lado, na mesma mesa em que eu lia e fazia anotações em um caderno, espiou para mim, com aquela carinha curiosa de menino que está aprendendo a ler na escola, descobrindo o primeiro horizonte amplo das letras, Mãe, você vai ler esse livro todinho? Estou preparando aula, meu filho. Seus alunos também vão ler esse livrão? Escuta aqui, meu filho, um pedacinho desse livrão. E li um parágrafo, justamente do capítulo que estávamos lendo em classe, o mais telúrico, sobre os índios. Li com a mesma entonação dos livros de histórias de trancoso que ele ouvia toda noite, nós dois no quentinho das cobertas dele, até ele adormecer. Parece que esse livro é bom mesmo, mãe.

Daí por diante, nunca mais saíste de minha vida. Passaste para o programa de um de meus cursos na pós-graduação, sobre as raízes da sociedade brasileira. E, não faz nem um ano, sentei-me numa mesa de bar à beira do rio São Francisco com você, Sérgio Buarque de Holanda e Francisco de Oliveira, e ficamos a prosear sobre os assuntos mais variados. A morte, o amor, “Viver o amor é sereno, sem os arroubos da paixão. E foder com amor é a grande ventura dessa vida”. O fetiche do pau duro que carrega todo homem, o câncer de próstata, o viagra, a reposição hormonal. Foi uma prosa filosófica, existencial. E tratamos também das classes sociais, pela pista que tu, Gilberto, nos deste, e eu te repostava, “Temos uma carência vital, que vem desde a sociedade de brancos da casa grande e negros na senzala, de termos alguém abaixo de nós. Até o mais miserável dos pedintes de esmolas, carrega junto de si o cão vira-lata que lhe obedece.” E ainda trocamos ideias sobre a moda do politicamente correto, sobre a maconha. Fizemos jus a uma boa mesa de bar. Só faltou Antônio Cândido, mas agora é tarde, porque Cheiro de Velame já está na praça e não dá mais para acrescentar na epígrafe do capítulo XIII da Segunda Parte.

Mas são horas, Gilberto. Preciso encerrar essa missiva, que ficou maior do que tencionava escrever. Espero que você não fique zangado com o que vou te dizer agora. Deixei de propósito para o final, como uma confissão de amiga, que fala de peito aberto e diz até o que a outra pessoa não gostaria de ouvir.

O teu pecado, Gilberto, foi ter vivido demais. Uma pessoa como Antônio Cândido, por exemplo (nunca esqueças que foi ele quem conseguiu furar o cerco da Academia para colocar Gilberto Freyre no lugar que merece, um dos fundadores da nação brasileira), esse mereceu viver até o último dia de sua vida, recolhido, curtindo a essência da sabedoria velha. Mas você, Gilberto, você glorificou-se em vida. Essa glória que deve ser reservada para depois da morte.

Você não teve culpa, Gilberto. A culpa foi de quem te deixou viver tanto. E ainda dizem que Ele é infalível. Com isso, você deixou um traço cultural com raízes no massapê da cana de açúcar. Uns glorificando os outros. Esse traço é mais forte do que patriarcal. É macho, o instinto do macho do reino animal. A mesa das mulheres, a mesa dos homens. E botam o pau na mesa para medir qual o maior.

Desculpa, Gilberto, uma carta que principiou tão leve e termina assim, rude, mostrando a cru um dos lados do teu testamento.

Despeço-me à tua maneira. Sinta-se beijado e abraçado.

Diário do Pina, 14 de janeiro de 2020 – As papoulas

Querida amiga,

Finalmente, quase boa do dedão do pé, dei-me alta. Sabe quando chega uma hora em que a gente não aguenta mais o resguardo? Caminhei pouco na areia, há que retomar devagar. Mas um banho salgado me fez um bem danado.

Agora, deitada na rede, queria continuar a prosa que principiamos ontem ao telefone. Pudesse voar, pousaria na varanda sombreada de tua casa e tomaríamos café juntas. Como ainda não aprendi, contento-me com uma carta.

E aí? Vou ter que me levantar da rede? Dessa modorra boa? O caderno e a caneta estão bem aqui, ao alcance da mão, em cima do banco envelhecido, do tempo em que não se matava porcos em frigoríficos. Ele tem serventias várias. Em festas, como banco propriamente, para as pessoas altas. E no todo dia, é meu auxiliar de leitura, onde vou deixando os livros lidos e ainda não guardados, os que estou lendo… é só espichar o braço, os alcanço. Às vezes vira uma bagunça. Pois não é que o caderno e a caneta, em vez de estarem na escrivaninha, vieram parar em cima desse banco? Coisas de faxineira.

Por que não? Pego o caderno, escoro-o na coxa direita, por sobre a perna dobrada. A perna esquerda, estirada, impulsiona levemente a rede com a ponta do pé, para que não pare de balançar. E é daqui, amiga, dessa rede balouçante quase à beira do mar, que te escrevo. Inauguro assim uma nova serventia para ela, a rede.

Essa carta, como disse, tem a ver com o assunto de nossa conversa de ontem. Nunca canso de agradecer a Deus e Nossa Senhora eu ter na vida amigas assim, de alma. Com quem posso falar de peito aberto, sem carecer vestir nenhum ornamento de falsidade. A vida social, querida, você sabe disso tanto quanto eu, para qualquer seu humano nessa terra (a não ser os loucos e os artistas), a vida é um teatro. Desde a mais tenra idade, aprendemos o nosso lugar na sociedade; e esse aprendizado nos recria para os valores e as regras de nosso entorno social. Mesmo estando longe de casa, como os imigrantes brasileiros que entrevistei mundo afora, mesmo esses, carregam seu lugar aprendido, primeiro que tudo, em casa.

Tem pessoas que vivem a peça que lhes foi atribuída sem se questionar, às vezes até alegremente, a vida inteira. Talvez somente à hora da morte avaliarão a vida que não viveram, travestidos nos desejos e projetos de outros. Mas nós fazemos parte dos que são inquietos, quase rebeldes. Para estes, o teatro pode ser opressor. E os amigos? Ah, querida, os amigos são a ilha onde podemos ser nós mesmos, sem adornos, despidos dos papéis sociais. Por isso te digo, não é exagero, agradeço à vida que construí, ter amigas. Hoje são poucas. Posso contá-las nos dedos de uma mão.

As vezes uma delas se afasta. Fico triste. Mas, por serem todas velhas amigas, sei que vai voltar. E sempre haverá alguma outra com quem eu posso conversar sem reservas. Ontem calhou ser você, que me questionava por eu assumir aberta e cruamente (seria também cruelmente?) minha condição de velha. Sim, querida, sou velha. Não ainda na fila da TAP, que estipula oitenta anos. Mas velha.

Por que relutamos tanto em assumir a velhice? Talvez por ser ela a ante-sala da morte. E em ambas a gente nunca se vê. Mas os outros vêm. Outro dia mesmo, minha irmã, que é avó, esperava a neta na saída da escola. Chegou aquele magote de meninos, com bolas de borracha na mão, vindos de um aniversário em classe. Ao pipoco de um balão estourado, todos se assustaram, rindo. E uma delas comentou, Até a velhinha tomou um susto! E minha irmã ficou procurando onde estava a velhinha…

A gente fica se iludindo, olhando para trás e pensando: não, eu não sou igual a minha mãe quando tinha minha idade e se vestia assim e assado, e era dona de casa, submissa ao marido. Será? E as debilidades de nosso corpo, por mais que a medicina ajunte recursos? O horizonte pela frente, não será o mesmo? Talvez apenas com alguns anos a mais, como fez a companhia aérea portuguesa.

E ficamos a brigar com a senhora velha, em vez de acolhê-la no colo, como fizemos com nossos filhos pequenos. Somos mais frágeis, sim senhora. Não brigar com a velhice, querida, é cuidar do corpo. No decorrer de cada dia, dedicar a ele muito mais tempo do que no tempo em que ele era novo.

Estou aqui deitada na rede espiando bem de pertinho as minhas papoulas. Mesmo elas, vegetais, não as posso dizer minhas, pois são rebeldes, obedecem a seu ciclo e não à minha programação. E a gente faz isso até com gente, não é mesmo? Meu filho, meu marido … Na casa de meus pais, em Garanhuns, o muro baixinho que separava o jardim da calçada era encimado por uma cerca viva de papoulas de todas as cores. Quando passava em frente de casa enterros de anjo, vindos da rua do Sossego, o bairro dos pobres logo atrás da rua dos ricos, minha mãe costumava recomendar, Dê papoulas, flor que nasce muito e morre depressa. Não as minhas rosas.

Acompanho o nascimento diário de minhas papoulas na safra desse verão. Uma delas estava em êpa para desabrochar no sábado passado. Mas não. Somente no domingo se abriu em pétalas brancas e delicadas como seda da China. Do caule verde, saíam em vermelho sangue, para se abrirem leves e claras como plumas. No meio das pétalas, um grelinho saliente. Vejo-as agora, dançando ao ritmo da brisa suave que vem do mar. Essa que se abriu domingo, hoje, terça feira, já começou a murchar. Amanhã estará morta. Três dias de vida. Essa outra, que nasceu ontem, hoje está em plena beleza da maturidade do segundo dia. No outro vaso nasceu a primeira flor cor de laranja.

A vida, minha amiga, são esses três dias de uma papoula. E é preciso estar atento e forte, para quando a seiva da terra, a água e a luz do sol, já não mais sustentarem a vida de uma papoula.