Diários do Pina – 23 de outubro de 2019

Há uns dois anos, se tanto, comecei a publicar nesta mesma ‘revista será?” uma sequência de crônicas nomeadas inicialmente Diários do Pina. Aos poucos, as crônicas saíram do Pina, chegaram ao carnaval e passearam pela cidade, de formas que achei mais apropriado nomeá-las “Crônicas Sociais”. A febre escrevinhadora era tão forte, que criei um blog, “momentear”, de curta duração.

As crônicas, qual ensaios, deram lugar a um outro escrito muito mais trabalhoso. As madrugadas do Pina, um de meus cenários privilegiados, foram ficcionadas na nova empreitada.

Depois de botar um filho no mundo, a gente carece de resguardo, até esquecer o trabalho que deu parir, após o prazer de gerar. Pois bem, hoje volto ao diário do Pina no seu formato original de crônica. Estou de resguardo. Só trabalhinhos leves.

Retomei as caminhadas, que andavam um tanto esquecidas por quase todo primeiro semestre deste ano, que passei morando mais no Brejo de Gravatá do que no Recife. Inicialmente, no calçadão. A estabilidade do solo é melhor para minha pobre coluna vertebral, que andou reclamando da vida ultimamente. Hoje, porém, às 4:50 da madrugada, vi que o mar estava secando. Embora o sol ainda não houvesse nascido, já trouxera o início da claridade da manhã. Em passos lentos, atravessei a Avenida Boa Viagem, com a sensação de quem sai de uma área conflagrada para um território de paz.

Gosto de caminhar observando os outros, o bom dia de quando acontece o encontro de olhares. No calçadão, isso é menos frequente. Às vezes porque a conversa está animada, quando são duas ou mais pessoas. Pego fragmentos dessas conversas. Se são homens, caminham na mesma prosa de uma mesa de bar, assuntos do mundo fora de casa: futebol, política. Já as mulheres, assuntos de mulher: os filhos, os netos, as intrigas – a conversa miúda, da casa, da vizinhança. Será por isso que as mulheres vivem mais do que os homens?

O fato demográfico da maior longevidade feminina não é novo. Analisando-o em um árido artigo com tabelas e gráficos, Elza Berquó o nomeou com um belo título: “Curva da Solidão” (Desculpem, não vou citar o artigo,como manda o figurino. Com a internet, encontra-se tudo. Ou quase).

Desviei de rota. Retomo. Enquanto caminho, sozinha, sem música, sem conversa, gosto de espiar os outros. Do bom dia de desconhecidos. No calçadão, esse cumprimento não chega a trinta por cento das pessoas com quem cruzo. Ou estão entretidas na prosa, ou concentradas na atividade de caminhar ou correr, seguindo prescrição médica. O rosto contraído. Às vezes até o corpo, os braços contidos, como quem toma um remédio para a saúde, por obrigação. (Estou exagerando de propósito).

Mas hoje, atravessando a avenida, o calçadão, o jardim de Coqueiros e Castanholas (metade plantados pelos moradores dos prédios) e plantas rasteirinhas próprias das areias salobras da beira-mar, chego, primeiro, à terra fofa, e, depois, à terra batida, com marcas do trator que limpou a areia na véspera e dos primeiros pés de gente, de cachorros e de pombos. O Pina é privilegiado. Com o mar seco, semelha terras de um deserto. E acontece o milagre, que não é da multiplicação dos peixes: o mar é tão soberano que faz sumir o trânsito, o barulho dos motores. E os caminhantes, poucos, às cinco da madrugada, todos, cem por cento, se dão bom dia. Mesmo os que correm.

Caminho na direção das jangadas. Lembro cenas de “Cheiro de Velame” como se tivesse acabado de ler um romance de outrem (Ops! Um merchandising saiu sem eu querer, no calor da escrita), com os pescadores nesse mesmo cenário, em 1954. Por uma feliz coincidência, sai uma jangada ao mar. Com o mesmo ritual daquele de1954. E de antes. E de antes … A diferença são as velas, que vão deitadas, suporte de segurança, assim como os remos, que impulsionarão apenas os primeiros movimentos da embarcação, antes de entrar em cena o motor à diesel. Aquela jangada levará os pescadores às mesmas ruas e avenidas do mar que conhecem de pai para filho.

A segunda feliz coincidência é que, logo parei para os primeiros alongamentos, próxima às jangadas, aparece, saindo de dentro do mar, a bola vermelha, poderosa. Bebê, inocente, sorrindo, ainda nos permite, por não mais que dez ou quinze minutos, olhar sua cara frente a frente. A aurora. Feminina. Antes que feche a cara, incandiandoquem quiser encará-lo. Os de Vidas Secas sabiam disso.

Num dos alongamentos, o mais eficiente, viro de costas para o mar, para a jangada empurrada pela equipe de terra, e vou dobrando a coluna vertebral, puxada pelos braços, desde o pescoço até o cox, até as mãos encontrarem o chão. Vejo então o mar, as ondas, a jangada, os pescadores, de uma ótica inusitada e bela: de baixo para cima. O caminhar das pessoas toma outro ritmo, como dançassem. Depois desenrolo a coluna no sentido inverso, do cox à cervical, alongo os braços. Pronta, alinhada para continuar o passeio. Sim, porque caminhar na areia da praia, mesmo a passo rápido, mesmo correndo, é passeio e não obrigação. Até os cães estão mais felizes, sem coleira.

O único som que chega da avenida é a voz de tenor do motoqueiro evangélico das 5:30, pontualmente, todos os dias úteis da semana; pregando a palavra de deus em hinos de igreja. Fosse em New Orleans, os hinos seriam mais bonitos. Cumprimenta efusivamente, com o braço levantado, todos os que fazem o mesmo para ele, do calçadão. Poucos. Esse homem certamente terá um dia de trabalho melhor do que os colegas de labuta que terão enfrentado a guerra diária do transporte público, correndo o risco do assalto às carteiras e aos celulares. Da areia da praia, não distingo a letra, apenas a melodia de tenor pobre.

Pronto, meu dia principiou.

PS: 24 de outubro, antes de remeter a crônica ao conselho editorial, acrescento. Seguindo hoje a mesma trilha de ontem, ao passar pela castanhola Emília e pelo coqueiro Josué, que plantei em 2017, quando já estavam definidos o primeiro perfil dos dois personagens principais de Cheiro de Velame, que então se chamava Emília, quis que assim fossem batizados, tal como os outros, com o nome escritocom tinta preta num pneu vazio pintado de branco. Os demais terão os mesmos nomes de quem os plantou. Pois bem, vi que tinham jogado um plástico amarradinho, cor de rosa, dentro do pneu onde cresce Emília, que já está uma mocinha, maior do que eu. E até já dá sombra. Que merda! Era merda mesmo, de cachorro, cadela por certo, pela cor rosa. Proteção do meio ambiente, da limpeza das praias? Antes deixasse a bichinha fazer suas necessidades ao pé da planta. Não é o melhor adubo, mas sempre serve. Na volta, bastou atravessar a avenida e já encontrei uma lixeira para colocar. Mas a culpa é de Bolsonaro. Como antes era de Lula. Ah, como é reconfortante ter um bode expiatório…

Diário do Pina 29 de outubro de 2019

“Tudo o que nele existia era velho, com exceção dos olhos que eram da cor do mar, alegres e indomáveis.” 

Ernest Hemingway, O velho e o mar. Civilização Brasileira, 1992.

 

Teresa Sales

 

Daqui a cem anos. Das praias do Recife e Jaboatão, terá sobrado o Pina e Barra de Jangada. Da grande castanhola que separa o Pina de Boa Viagem, até Piedade, Candeias, o mar terá sido cercado de pedras para conter o oceano. Os tubarões reinarão absolutos. O valor dos imóveis terá baixado. Alguns, abandonados, símbolos de uma civilização.

E os estudantes de Ciências Sociais escreverão teses sobre o século XXI. Os cineastas farão filmes, alguns de terror; sobre o confinamento dos ricos e a miséria dos pobres. As pegadas do edifício envidraçado em Rayban que não recebe a brisa do mar, terão avançado nas ruínas do que um dia foram casinhas feias em ruas desordenadas, teimosas. Terão sobrado algumas, preservadas como museu histórico dessa mesma civilização.

Todos nós, leitores desta revista, estaremos mortos. 

Havia nesse tempo um velho que morava no calçadão. Seu nome de pia era Elias. Magro, altura mediana, corpo firme para seus sessenta e cinco anos. Magno, o empregado da barraca de coco, a segunda barraca na direção das outras praias, tratava-o simplesmente por velho. Já ninguém se lembrava, nem o próprio velho, do ano em que ele veio morar no Pina, chegado de Belém do Pará.  

A mulher do sétimo andar, que gostava de acordar de madrugada e observar a vida pela janela de seu apartamento, caminhando nas ruas e no calçadão, anotou no dia 28 de março de 2017. Era um sábado. A noite dasexta feira se despedia preguiçosamente às 4:15. Vestiu-separa sair: biquíni, shortinho, tênis. O chapéu e os óculos escuros na mão. Saiu com a única certeza de que, naquelamadrugada, em algum momento, o dia ficaria claro. O sol poderia se atrasar um pouco, a depender das nuvens que haviam trazido a chuvinha fraca da madrugada, quando elaabriu a janela do quarto.

A essa hora, atravessou tranquilamente a avenida. Anteviuque o velho ainda dormia na sua cama, recebendo a mesma brisa fria da madrugada que jogava seus cabelos para trás. Seus passos não o despertaram. Depois de curta caminhada pela areia do mar, a mulher do sétimo andar sentou-se na última jangada, depois do bom dia aos pescadores. E ali presenciou a luta diária do sol com as nuvens que querem espichar a noite. 

O mar ainda estava misterioso, escuro, sem suas cores em azul marinho e verde esmeralda. No quebrar das ondas, via o rendado branco que elas bordam na areia. Chegavaaos seus ouvidos, mais alto que a conversa dos pescadores, a melodia do quebra mar e do vento menino, que não sossega em sua azáfama de correr e levar recados.

Sete madrugadas após esse dia, a mulher do sétimo andar observou, da janela de seu apartamento, a rotina do velho. O calçadão ainda estava deserto, a avenida silenciosa. O teto do quarto era um plástico negro, do mesmo tipo que os militantes do MST usavam em seus acampamentos. Com uma diferença: a cobertura era baixa, da altura de dois carrinhos de supermercado que amarravam o plástico de um lado, o alambrado do campo de futebol do outro. Os colchões, papelões dobrados, juntos, semelham uma cama de casal. Não são. Dois homens dormem debaixo de um teto improvisado pelo plástico preto. Um deles, mais novo,sai primeiro de baixo do teto.

Está vestido de bermuda, camiseta preta desbotada e um casaco de malha surrado por cima. Sandálias havaianasgastas. Atravessa a avenida sem pressa. Leva na mão um copo de plástico. Enquanto isso, o velho sai de baixo do mesmo teto, segurando na mão um saco de plástico verde. Pelo alongado do saco, são roupas. Seu guarda roupa é móvel fácil. Pendura o saco verde de plástico num toco de galho do pé de castanhola, sua sala de estar.

Espreguiça-se. Traz então do chão as folhas de papelão que serviram de cama. Agora, serão almofadas na sala de estar, em sua cadeira sem recosto. Aqui passará o dia.Terra é a cor de sua bermuda e camisa. Por isso ele se mistura, como aquelas esperanças nas folhas verdes, com as cores dos tijolinhos do calçadão, do banco de cimento, dos troncos dos três pés de castanhola que lhe darão sombra durante o dia. Para os passantes do calçadão, em passo rápido, em corrida, conversando, ele é parte dessa natureza construída pelos urbanistas. Para alguns poucos, é alguém.

O negro  ele é negro  que havia atravessado a avenida com um copo de plástico na mão, retorna com o mesmo copo. Entrega ao velho. O copo esvaziado vai para trás do banco em que o velho está sentado. As raízes das castanholas lhe servem de balcão para guardar louça e comida. Com menos pressa do que bebeu, o velho acende um cigarro – o primeiro do dia, depois da primeira branquinha. O melhor. O estômago vazio, o trago, o sonho. A essa hora, o calçadão ainda é escasso de gente. O velho está sentado na ponta do banco, com o pé esquerdo bem pousado no calçadão e o direito em cima da parte mais baixa do cimentado, junção entre os bancos que formam um contínuo ao longo do calçadão. Escora o cotovelo no joelho da perna direita e segura o queixo na mão. E pensa.

Não olha para o mar, o velho. De onde está, avista Brasília Teimosa. Seu dia acaba de começar com dois prazeres: a bebida e o fumo. O resto, a vida proverá.

O negro, com quem compartilhou o mesmo teto para dormir, já saiu para trabalhar de catador de latinhas. Para isso servem os carrinhos de supermercado. Deixou o velho ao primeiro gole. E deixou também a cama por fazer. São 6:30 da manhã, o calçadão cada vez mais cheio doscaminhantes, vizinhos do outro lado da avenida, das ruas de trás da avenida, de Brasília Teimosa e até de outros nortes. Lentamente, o velho caminha de volta para o quarto. Desamarra, com cuidados para não rasgar, as pontas do plástico que lhes serviu de teto. Dobra em dois, em quatro, em oito dobras bem feitas. Guarda em um dos carrinhos, que já contém outras peças de seu guarda roupa e as últimas latas recolhidas à noite. Leva o carrinho para embaixo dos pés de coraçãodenegro, o outro nome que se dá às castanholas. Busca o outro carrinho e traz para a mesma sala de estar. Acende mais um cigarro, enquanto no calçadão vai crescendo a procissão, que naquele dia começara mais tarde, porque hoje é sábado.

Um rapaz sai da pista de ciclismo e, pedalando, vem em sua direção. Apeia-se, arrodeia com a bicicleta em volta dos bancos, pela areia batida, ajeita-a junto aos dois carrinhos de supermercado. Volta a se sentar junto ao velho. A posição do corpo dos dois não indica uma conversa, mas um confessionário. Ou melhor, um consultório de análise. O moço fala. O velho ouve e mantém seus olhos distantes, na direção de Brasília Teimosa. Vez em quando fala palavras em monossílabos. Ou assente com a cabeça em aprovação. Da  janela, a mulher do sétimo andar acompanha a sessão que dura o tempo certo: quarenta e cinco minutos. Depois da consulta, o jovem deixa, junto à bicicleta, a bermuda, acamiseta e as sandálias, enquanto vai dar um rolê pelaspraias. Receberá, o velho, um trocado pela guarda das roupas e bicicleta. A consulta foi de graça. Assim, o velho terá sua primeira refeição, um salgado do barraqueiro, que acaba de abrir a barraca de coco. Quiçá, a segunda dose.

Passa uma carroça retardatária. O condutor para. Um dedo de prosa. Outros já passaram, “bom dia, velho”, sem tempo para conversas. O tempo esquenta. Às 10:30 o velho tira a camisa de botão, guarda no saco plástico verde e fica só com a camiseta de dentro, amarela, listas verdes dos ombros à manga, número 10 da seleção brasileira. Sem medo de ser roubado, deixa a sala de estar e os carrinhos, ao ouvir o grito do barraqueiro, “veeeelho!”. Anda, quase correndo. Terá um mandado e, quem sabe, um prato de comida em paga. A hora do almoço está chegando.

Por estar no rés do chão e não ter nada a perder, o velho carrega consigo um tesouro: está fora das duas pragas que tomaram conta daquele século: o Medo e o Sistema. Não terá contas a pagar nem objetos a comprar. E nunca ouvirá um atendente lhe responder: “Agora não, meu senhor, que o sistema está fora do ar. Volte outra hora.” 

Uma moça branquinha, de cabelos tingidos de louro, leva o cachorrinho de raça para passear todas as tardes, quando larga do trabalho. Deixa frutas e algo mais que faça as vezes de um jantar. O velho faz uma graça com o cão. Um jeito de agradecer à moça, que talvez volte no dia seguinte. Ela encontrou assim, no seu caminho para passear o filho de quatro patas na praia, um jeito de cumprir o mandato de amar ao próximo como a si mesmo.

São 20:40 quando o velho e o dono do outro carrinho de supermercado armam o quarto de dormir. A barraca de coco ainda está aberta, a bola rolando no campo de futebol, e alguns passeando pelo calçadão, que se transforma em praça de lazer, “porque hoje é sábado”.

PS: O velho e os pombos na próxima.

 

Diário do Pina 02 de novembro de 2019

Todos, um dia, têm alguém querido que morre,
entre ser ou não ser
foi obrigado a escolher o segundo.

Wislawa Szymborska (1923-2012). Tradução: Eneida Favre

 

Hoje, dia de finados, comemorei com festa, como fazem os mexicanos. Não costumo comemorar dia das mães, dia dos pais, dia das crianças, dia dos namorados... Talvez tenha levado muito a sério a lição aprendida em casa com meus pais, que esses são dias inventados pelo comércio para vender. Um dia, os meninos ainda eram crianças, chegando à adolescência, cansei e decretei: “De agora em diante, quero sim, ganhar presente de loja no dia das mães, e não apenas os desenhinhos da escola”. Mas já era tarde. Miguel, com o seu humor inglês, revidou: “E o dia das crianças, que ficamos esse tempo todo sem presente? Ah, não, agora é tarde”. 

Depois que perdi o primeiro afeto, ainda fui um ano, acompanhando minha mãe, ao cemitério de Bezerros no dia de finados

Sozinha, sem tristeza, mas com a alegria da vida que segue, preparei a receita de pasta que era o carro-chefe da culinária do Hamilton. Abri um bom vinho espanhol da região La Rioja, usei um pouco no preparo do molho ao sugo e que ademais também vai na receita, e tomei uma boa taça enquanto preparava a receita e no almoço às duas da tarde.

Aqui, onde o quadro mais bonito da casa continua sendo o mutante oceano Atlântico, feriado, a praia estava lotada. A peste negra, que invadiu as praias do Nordeste, não aportou no Pina. E o povo até esqueceu os tubarões e muitos entraram no mar. Eu não posso ainda porque estou tratando de uma rosácea no rosto (problema de pele branca, em situações de stress; e a viagem à Europa foi um stress só) e não posso ainda tomar sol. Mas, quase boa,  volto a visitar meus amigos tubarões. Por enquanto, caminho de 4:30 às 5:30 com protetor solar e chapéu, e vejo o sol nascer, no verão que finalmente chegou. 

 

Birth-day

28 de maio de 2018

Setenta e três anos. No Agreste, o povo da roça diria, “entrou para os setenta e quatro”. Comemoro sozinha, por gosto, coincidindo a data com um feriado em homenagem aos que lutaram e tombaram nas guerras desse país bárbaro que se sente à vontade para invadir terras alheias. Amanhece um friozinho seco. No hemisfério Norte já recebo esse brinde de graça: meu dia sai do outono para a primavera florida. No Brasil, esse dia sempre se pareceu comigo, geminiana; oscilando entre o verão de sol e o inverno de chuva. Maio é um mês indeciso.

Aqui, claramente primavera. Na mesinha do Central Park onde escrevo, de ferro pintado de preto, não se vêm as flores, mas uma variação de tons em verde. Na minha primeira primavera nos  Estados Unidos, encantou-me o milagre das flores dos jardins públicos de Boston. Num dia, ainda cobertos de serragem (esse é o cheiro da primavera daqui), após meses de neve. No outro, a serragem recobre-se de flores, tulipas, rosas, flores miúdas, coloridas, tão mimosas. Surgiam todas de uma vez. Tão diferente de meus alunos de alfabetização do Instituto Capibaribe, onde ensinei meninos da classe média intelectual do Recife a ler e escrever. Dona Rachel, a sábia diretora, dizia-me: você carece apenas de ser paciente. Essas crianças têm tanto estímulo no lar e na escola que, até o final do ano, todos estarão lendo e escrevendo.

Um dia, mal acabada de chegar a São Paulo, num concurso para professora do Departamento de Ciência Politica da PUC/SP, o mestre da banca que me entrevistou (não passei nesse concurso) perguntou-me por que a professorinha entrava no curriculum vitae para uma cátedra universitária. Não me lembro o que respondi. Mas sei bem, até hoje, que esse é meu mais nobre legado profissional, que dali por diante manteria no curriculum vitae por puro orgulho. Essa foi a primeira memória quando vi nos jardins de Boston as flores surgindo da noite para o dia, todas ao mesmo tempo, como se programadas em computador. Bem diferente daquelas crianças, florescendo em letras cada uma a seu ritmo. Ali, meu primeiro aprender, aos dezoito anos.

Na véspera, chegara ao aeroporto JFK às 7:30 da manhã. Até pegar a mala, que já saíra da esteira e estava separada das outras, precisei responder ao senhor da alfândega que não, nada trazia de plantas ou alimentos dentro da mala. A uma segunda pergunta, insisti na negativa e segui adiante empurrando-a em suas quatro rodinhas, com meu passaporte de branca rosada e com essa cara de rica que Deus me deu. E hoje, comemoro meu aniversário momenteando no Central Park.

Parte do breakfast foi nessa mesma mesa onde escrevo, deliciando-me com um imenso copo de suco comprado num quiosque que vende qualquer suco com qualquer fruta, pois essa cidade abarca o mundo todo. O meu foi singelo: laranja, banana, morango. Abri a mochila e tirei o caderno com urgência de escrever. Nessa hora, vários casais e solteiros na minha faixa de idade ou pouco menos, com roupas coloridas, foram chegando com suas bikes sofisticadas. Nativos todos, à vontade no feriado nacional. Ah, esquecimento imperdoável: trouxe o caderno, mas não a caneta. O hotel está perto. Para lá chegar, atravesso o Columbus Circle. Tiro uma fotografia – uma self que tardiamente incorporei aos meus parcos dotes tecnológicos – junto à parte do Mapa Mundi que mostra a América do Sul. Entro num dos edifícios monumentais cortando caminhos pelas suas lojas coloridas em luzes, passo pelas imensas esculturas em bronze de um homem e uma mulher gordos, que me levaria à parte Oeste da Oitava rua.

O dia da chegada, ontem, foi uma prova de fogo que deixou minha coluna vertebral reclamando. Depois de horas numa van que vai despejando hóspedes pelos vários hotéis, um almoço com Tarcila do Amaral e Adrian Piper no MoMa, na companhia da amiga Estrella Alves, que viera de Boston para os últimos dias da conterrânea paulista dos anos 20 do século passado no museu. A escolha da Van, além de mais barata que um taxi, havia sido proposital: o primeiro contato com a imensa e poderosa cidade fundada por um punhado de judeus pernambucanos (ah, não poderia deixar passar essa: Pernambuco falando para o Mundo!).

A caminho do hotel para buscar a caneta … será que não encontro para comprar em alguma loja desse magnífico shopping, cujo sub-solo é um mercado de produtos “naturais”, alguma que venda uma simples caneta? Por outro lado, o suco já pedia o complemento de algo quente para encerrar o café da manhã. Eis que surge na minha frente uma mocinha em trajes de guarda e me indica a escada rolante que desembarca diretamente na Bouchon Bakery, onde comi um croissant com creme de morango acompanhado de hot chocolate. Ocupo uma cadeira alta num balcão de mármore. No outro lado das escadas, no mesmo andar, avisto as vitrines e o entra e sai de clientes da Amazon.com. Nice to meet you em carne e osso, senhora das vendas virtuais.

A meu lado direito, duas estudantes de antropologia, cada uma com um copo de suco e o respectivo laptop. Preparam um texto para apresentar depois do feriadão. Imagino uma delas aluna da cátedra Ruth Cardoso na Columbia University. Seu inglês é inconfundivelmente paulistano. A meu lado esquerdo, um negro retinto, bem vestido, nada consome e ri de vez em quando mirando solitário seu celular. E junto dele um brasileiro, com o fone do celular no ouvido, diz palavras soltas suficientes para reconstituir o diálogo com um conterrâneo no outro lado da linha. “Você é amigo do governo?” … “Só sei que não sei de nada.” … “Está tudo errado, Oswaldo. Quem tem mais renda deveria pagar mais impostos”. As estudantes de antropologia já fecharam seus computadores, chegam outras barulhentas e perco o fio da meada, ouvindo apenas palavras soltas do brasileiro: Cadeia, Governo, Parasitas, 4:95 é caro? O dólar subiu, a bolsa baixou.

O negro se levanta e se senta a meu lado esquerdo uma mocinha magricela, branquinha de dedos finos e delicados, cabelos castanhos claro presos num discreto coque, tênis, calças e camiseta justinhas de caminhar, casaquinho. Como pode essa moça assim tão delicadinha, chupar uma manga madura comprada no mercado do andar de baixo, com mãos e boca com tal sofreguidão de prazer?

Pois no mesmo shopping, voltando para tomar outra escada rolante, não é que encontro uma loja dos cadernos e agendas de meus sonhos? São caríssimos. Porém mais baratos do que os importados pelas boas casas do ramo do Brasil. Dou-me de presente, nada seria melhor. Suas folhas, papiros. E a caneta? Dessas nunca vi nas papelarias do Brasil. Seu deslizar nas folhas, uma pena da Idade Média dos monges escrevedores.

Volto ao Central Park. Passo em frente à bilheteria do Jazz Lincoln Center onde, em outra primavera, vi uma apresentação de Wilton Marsalis. O que me faz lembrar que aqui esteve, a convite deste, o nosso genial Maestro Spock e toda sua big band, tocando nosso frevo pernambucano mais sofisticado.

São Paulo, coração do Brasil

25 de maio de 2018

Voltei, meus leitores. Fiquei ausente do blocomomentear por mais de uma semana porque estava em viagens interiores. Estas não resultam em crônica social.

Estou em São Paulo, como quem visita uma velha amiga. Caminho pelo Parque Trianon, que se renovou em relação ao tempo em que morei aqui. Com vigilância, fica aberto ao público. Um oásis no meio da avenida Paulista. Esta, no final de semana, vira uma grande festa. Caminhar por essa avenida é melhor do que pela Quinta Avenida de Nova York, para onde viajo nesse sábado. Pois a Paulista é menos comércio e mais cultura, teatros, museus, manifestações públicas.

Gente na rua. Não apenas na grande avenida, coração do Brasil, farol das bandeiras de lutas sociais, como no entorno. A mesma sensação de estar nas ruas seguras de Lisboa. Primeiro dia, à procura de um mercado que entregasse as compras em casa, ainda amedrontada, deixei o celular em casa, como faço quando caminho a pé nos meus arredores recifenses. Porém logo me descontraí. Aqui, como nos lugares frequentados pela ampla classe média do Rio de Janeiro, Copacabana, Ipanema, caminha-se pelas ruas. Os artesãos expõem seus trabalhos em coloridos panos nas calçadas. Os músicos deixam os chapéus na mesma calçada para algum trocado. Uma festa. A rua, meus amigos, é a festa maior da democracia, da liberdade. Os gregos sabiam disso.

Mas o melhor mesmo de São Paulo é reencontrar velhos amigos. Montaigne soube como ninguém, nos seus Ensaios, o valor da amizade, que atinge sua plenitude na maturidade da idade e do espírito.

Quando morava em São Paulo, durante trinta e três anos de minha vida, nunca deixei de ir ao Recife.  De férias, a trabalho, sozinha, com a família construída, para estar com a família dos velhos laços de sangue ancestrais. Porém, além da família, nunca deixei de estar com os amigos. Os amigos que nos acompanham na vida são joias raras.  Escolhemo-nos sem nenhum outro interesse que não o prazer da companhia.

Hoje inverto essa equação. São Paulo passou a ser, para além da festa da Avenida Paulista, para além dos teatros, dos cinemas, da mais nova aquisição, o Instituto Moreira Salles, onde tive a ventura de poder assistir a todos os filmes da mostra “Carta Branca a Ismail Xavier”, passou a ser o encontro com a amizade. Aquela que ultrapassa o conhecimento primeiro no trabalho e perdura pela vida. A temporada foi curta para estar com todos. Fica para a próxima.

Quando a gente migra, o tempo cuida de se transformar numa peneira que deixa em cima apenas as pedras preciosas, descartando a areia passageira, as pedras miúdas sem valor que mereçam ser guardadas.

A viagem para encontrar amigos principia antes de entrar no avião. Os e-mails e whatsapps nos comunicam. Marcam-se almoços, jantares, programas.

A Rosário queria homenagear Hamilton, que já não habita entre nós. Resolveu fazer um bacalhau. E me pediu a receita. Já havia comprado os ingredientes. “Deixa, Rosário, que eu preparo quando chegar na tua casa”. E lá ficamos na cozinha. Tem lugar melhor para ficar, preparando uma comida, tomando uma taça de vinho? Fazer uma comida a dois, ou entre amigos, é mais prazeroso do que qualquer restaurante.

Ao chegar (viramos grupo quando principiamos a leitura semanal de Don Quixote, pelo puro prazer da leitura, há dez anos. E o grupo cresceu depois que voltei ao Recife. E se desmanchou. E permanecemos esse núcleo original: o grupo dos cinco), ao chegar, dizia, percebi que Daniel não havia ficado muito convencido de um bacalhau que vai ao fogo sem nenhum acompanhamento que não a água do cozimento. A travessa já estava arrumada para ir ao forno com um belíssimo bacalhau à portuguesa. Humildemente fiz apenas o molho, que seria para o outro, espanhol, mas que casou bem com o português. Afinal, a península é a mesma. E que dia agradável!

Depois do almoço, o casal anfitrião, com a intimidade de velhos amigos, foi dar um cochilo. O Zelito, com uma aura de sabedoria que lhe deu a velhice, voltou para a casa dele. E ficamos na sala a Flora e eu em nossas conversas infindáveis. Ainda completaríamos o dia as três mulheres, indo assistir ao filme Todos os Paulos do Mundo na rua Augusta e encerrando a noite com conversas que só as mulheres sabem ter, comendo o famoso Beirute do Frevinho.

PS: Minto. Não assisti a todos os filmes da mostra de Ismail. Mas é como se tivesse, tão familiares, do tempo dos cinemas de arte de nossa juventude. E fecho com chave de ouro a curta temporada paulistana, depois do memorável “Hiroshima meu amor”. Deixo os amigos esperando taxi e volto a pé, sozinha, do final da Paulista até a Alameda Casa Branca, onde me hospedo. Meia noite. Uma caminhada de quinze minutos a passo rápido para espantar o frio. Uma bela despedida de minha segunda cidade (Recife, a primeira), antes do almoço marcado com Tarcila do Amaral no MoMa nesse final de semana.

A Lady

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Para Priscila

(em memória)

28 de abril de 2018

A minha janela no sétimo andar tem sido plateia para muitos palcos. Os Diários do Pina mal principiaram a reproduzir peças que jamais se repetem de um dia para o outro. Já apresentei o velho, meu vizinho da frente, os ambulantes das carroças humanas, os pescadores, os caminhantes, Brasília Teimosa. Há muito mais escrito. Deles direi em crônicas sociais, quando assuntos mais urgentes não aparecerem na frente.

Como hoje. Com o sol, mesmo encoberto, ameaçando chuva vez por outra, é um prazer voltar a caminhar. Retomo aos poucos, seguindo a maçaranduba do tempo. Hoje a peça foi vista e escutada. Pois de minha janela é sempre um teatro de surdos: espio e não ouço.

Caminhei até as jangadas. Nem pensar em entrar no mar. Barrento, sem cor, o sol escondido. Lá me sento no banco de uma delas e fico olhando a África do outro lado do oceano Atlântico. Minha atenção é despertada pelos atores que vêm, vagabundos, caminhando pela areia da praia. Param em frente às jangadas. Pensei mesmo que ali fariam sua apresentação para a única pessoa que comprou ingresso. Mas teatro é assim mesmo no Brasil. Sobrevive a duras penas e se apresenta anyway, mesmo que o expectador seja apenas um pagante.

A Lady é negra, elegante, magrinha, porte mingnon: uma modelo. A princípio, não atino o enredo. O sol volta a aparecer, clareia o dia, distingo cada um dos atores. Oito do sexo masculino. A única do sexo feminino é a Lady. Estão dispersos. Como ela, três são negros, sendo um deles mais peludo e até com coleira, a indicar uma distinção em relação aos outros, todos vagabundos de rua. Também se distinguem pelo tamanho. Outros três, com o pelo em tonalidades de marrom, são maiores que os demais. Levam vantagem na proximidade com a Lady.

Vinham caminhando sem pressa, os três maiores revezando ao lado da cobiça de todos. Ela comandando a marcha. De repente, para. Um dos grandes cheira, enlaça-a com as patas dianteiras e começa a brincadeira. Ela faz um ligeiro movimento que o desequilibra. Toma seu lugar o segundo grandão. Também sucede a mesma rapidinha. O terceiro se demora mais em cheiros e lambidas. E também no ato, trêmulo, com Ímpetos que a empurra um pouco adiante na areia.

Depois dele, a Lady senta-se no chão, dando assim o sinal de intervalo. Apenas nessa hora minha atenção se volta para o menorzinho. Pois ele não para de latir. Será virgem? Será esta sua primeira vez? Com ele não acontecerá o que sucedeu ao pobre Marcos Palaque: uma surra do pai porque broxou na primeira ida ao puteiro de Garanhuns. Os outros se movimentam, os mais ansiosos balançando o rabo, compondo como um círculo sem forma definida em torno da Lady. Ela não é perturbada. Mantêm-se sentada na areia. Todo o tempo que quis.

Levanta-se, coça a barriga com uma das patas, dá umas voltinhas. Mudam o lugar da apresentação para mais perto das jangadas, seguindo-a. O pequeno está ainda mais nervoso e continua latindo. Nenhum dá importância aos seus lamentos, muito menos a vez de chegar perto da Lady. Mantém-se afastado. Assim como o negro nobre, com seu casaco mais felpudo e a coleira. O três maiores principiam uma briga entre eles. Lutam com valentia, embora o combate seja rápido. Enquanto isso, os outros chegam a ela com agrados. Vai o primeiro, vai o segundo. Ela os recebe tão gentilmente como aos precedentes grandões. Expulsa o segundo mais rapidamente e volta a se aquietar. Dessa vez, não sentada, porém o corpo todo deitado, quase se espreguiçando na areia fofa.

Um deles se destaca dos outros e vai até quase o quebrar das ondas de um mar que está calmo, secando. A Lady fica um tempo maior deitada, novamente sem ser perturbada por nenhum deles em sua quietude. Até que se levanta e segue na direção de onde veio, com destino a Boa Viagem. Pensei em acompanha-los. Porém a marcha da trupe é mais rápida do que a minha. Dou meia volta. E quando já estou quase chegando ao quintal do velho, que preciso atravessar para chegar em casa, eis que voltam os alegres atores, no mesmo passo de trote, comandados pela Lady, a caminho de Brasília Teimosa.

Mel com água

03 de abril de 2018

Um dos méritos de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala foi o de ter criado o nosso mito fundador de nação: a mistura das três raças. Lembremos que, antes dele, a literatura sociológica buscava o branqueamento para que nos tornássemos uma nação. Cito apenas, a título de exemplo, Oliveira Vianna.

Casa Grande & Senzala foi alijado dos bancos universitários por longos anos. Porém, como já me referi em crônica anterior (Fetiche da Mercadoria), assim como Os Sertões, de Euclides da Cunha, são livros que sempre fizeram parte da cultura brasileira. Depois, já em meados para finais do século passado, foi aos poucos sendo reconhecido e adotado nos currículos das universidades de norte a sul do país.

Mas Gilberto Freyre, afora esse mérito, que não é de pouca monta, também introduziu um mau costume derivado de sua vaidade. Adorava ser cultuado, bajulado mesmo. Esse visgo açucareiro de deslizar no mel da cana, uns elogiando os outros. O que é outra forma de misturar o privado com o público, um mal de nascença de nossa república, analisado pioneiramente por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil.

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Havia uma cidade em profunda simbiose com a cana-de-açúcar chamada Recife. O que vou relatar aconteceu em finais do século XIX, no Brasil Império. A cidade, por ser, ela em si, o império da cana, era rica, com muitos escravos. Fundou um jornal. Foi a grande novidade daquele século. Todos os homens liam avidamente as notícias do mundo, de Lisboa, de Coimbra. Poucas mulheres sabiam ler naquele tempo.

O jornal ficou sendo o assunto da conversa dos homens cultos da cidade, ao final de seus expedientes de trabalho e de negócios, sempre principiando e acabando no Porto do Recife. Antes de retornarem ao lar, buscavam aconchegantes bares ou puteiros e lá sentavam-se em torno daquelas folhas já amarrotadas. Longas discussões acaloradas, podiam se referir a conflitos armados alhures, jogos, a política do governo para a cana de açúcar. Aí se demoravam. Já então o whisky era a bebida preferida.

Como eram eles mesmos que escreviam, pela pena dos jornalistas, passaram a usar e abusar de alguns espaços do jornal para comunicarem-se entre si. Pouco importava que eles somassem apenas uma ou duas dúzias do que se dizia na época “homens bons”.  Era mais de uma página do jornal com esses comentários pessoais, muitas vezes saído da discussão da véspera, regada ao bom whisky fornecido pelo tráfico clandestino no Porto do Recife. Chegou-se a escrever carta, de fulano para beltrano. Marcavam-se almoços, jantares, compromissos pessoais. Só tiveram o cuidado, supremo segredo masculino, de não mencionar nunca quais os puteiros.

Mas foi precisamente uma prostituta quem enxergou com a luz do dia, ela que vivia quase só à noite. Viu o lado das ruas mal cuidadas, dos tigres carregando aquela merda toda para jogar no mar, sujando a água salgada, benta por Iemanjá, onde as mulheres da vida gostavam de se molhar ao final de uma estafante noite de trabalho, para tirar do corpo as quizilas deixadas pelas almas daqueles homens bons. Isso ela disse de enxerida, sabia ler, inclinada sobre uma roda de conversa de homens em torno das notícias. “Eu por mim, puteiro é puteiro; jornal é jornal”.

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Perambulando pelas ruas do velho porto, havia um doido. Como todo doido, vivia andando à toa, às vezes falando sozinho. Por isso era conhecido de todos. Era chamado Garapa. Ficava furioso, jogava pedra em quem o chamasse por esse apelido. Possivelmente algo que desmerecia sua pessoa. Os moleques então gritavam, com medo das pedradas, Mel com água! Ao que ele revidava, Mistura, peste!

Pois esse mesmo doido, que andava maltrapilho e ridicularizado com um apelido tão apropriado a quem circulava sem destino pela área portuária do Recife, que cheirava a açúcar e suor de negro, esse Garapa às vezes se transformava em inteira outra pessoa. Ninguém sabia ao certo onde ele se enfiava quando desaparecia da rua. Reaparecia para assumir o cargo de escrivão de um escritório do Porto do Recife. Respeitado. De terno e gravata.

Garapa chegou a quase cem anos de vida. Já não tinha o emprego de escrivão no Porto, este já nem cheirava mais a cana e suor de negro cativo. Seu apelido ficara esquecido no tempo. Garapa, velho, virou sábio, quase um monge, um profeta. Um dia uma jornalista veio entrevista-lo. Queria saber qual era o segredo: com noventa anos, à época, permanecia magro, espigado, andar seguro, saúde de ferro, sem nunca ter tomado remédio de farmácia. Respondeu com a mesma agilidade de antigamente, quando jogava pedras nos moleques que o chamavam de Garapa: comer pouco e cagar muito.

O funcionário

17 de abril de 2018

Em dias chuvosos, sua passagem pela avenida poderá acontecer um pouco mais tarde. Nunca depois das seis horas da manhã. Hoje ainda chovia às cinco e meia quando ele passou, sem nenhum atraso, defronte de minha janela, que está fechada, assim como as cortinas. A mais grossa, nomeada blackout (estamos progressivamente a substituir o belo idioma português pelo empobrecido inglês) impede a entrada da claridade.

Em total concentração, alongo pernas, braços, coluna e tento varrer os pensamentos da mente, o que não é fácil. Ouço o canal Peaceful Maditation of Spotify (lá vai outro inglês), que concorre com o discreto escorrer da chuva sendo pisada pelos pneus dos automóveis na avenida. Não ouço o barulho das ondas quebrando na areia. Nem o vento. Porém, em compensação, também não me chegam aos ouvidos os insuportáveis motores e alarme enlouquecedor do portão da garagem à saída de cada automóvel do meu prédio e do prédio vizinho. São poucos ainda a esta hora e seu deslizar na chuva se sobrepõe ao ronco do motor.

Quando meu deleite é interrompido, olho o reloginho da mesa de cabeceira e confirmo a pontualidade do funcionário evangélico a caminho do trabalho, cantando a todo pulmão com sua voz de tenor. Hoje, na rapidez de sua passagem, não distingo a lírica de sua canção.

Nas vezes em que o vi e ouvi, ele conduzindo sua moto na avenida, eu caminhando no calçadão, pude juntar duas ou três frases trazidas pelo vento e já não tive dúvidas. Espalha por onde anda mensagens de suas crenças com um vozeirão alegre e forte. Na primeira vez, fui para a beirada do calçadão para vê-lo de perto. Queria conhecer o dono da voz. Ele não se fez de rogado. Ao meu melhor sorriso e aceno do braço direito, respondeu igual, com o braço esquerdo, deixando apenas o outro a cargo do volante. Num átimo nossos olhares se encontraram. Não interrompeu o canto de louvor. Como se a mim o dirigisse, no instante da passagem.

Aonde vai trabalhar esse homem? Imagino-o em alto andar do prédio da prefeitura do Recife. Servindo cafezinho aos mais graduados, às audiências públicas, às reuniões. Terá tirado a capa de chuva, as galochas, o capacete, os óculos de proteção, que, no dia ensolarado em que nos cruzamos pela primeira vez, estavam suspensos na testa. (Imprudente motorista!) No trabalho, estará de uniforme cinzento, um pouco folgado para seus cinquenta anos de café com pão bolacha não.

Todos na repartição, mesmo os que acabaram de chegar para esquentar com novas ideias cadeiras antigas, logo saberão seu nome. Porque o cafezinho, já disseram muitos cronistas sociais antes de mim, o cafezinho é o ingrediente mais importante de qualquer repartição pública.

José é seu nome. Nem Zé, nem Zeca, Zezinho, Zezito. Sempre se impôs com o nome de batismo. Os mais antigos na repartição, que já viram muitas ideias novas mudando nem que fosse a mobília e as cortinas dos andares mais elevados, esses o chamam simplesmente José. Os recém-chegados, a cada quatro ou oito anos, o chamarão Seu José. Até se tornarem íntimos. Pois José tem esse dom de nascença: pobre, serviçal, carrega em seu corpo magro, cabelos grisalhos, um olhar e um sorriso altivo que impõe respeito. Não fosse a farda e a bandeja de cafezinho e água, seria facilmente confundido com um superior.

Um barnabé que não divulga suas crenças, como é comum aos de sua religião, a não ser em palavras ao vento no percurso diário de casa para o trabalho. Nem chama aos outros de irmão, hoje, quase uma senha a identifica-los todos em público. Cumpre suas obrigações com dedicação de principiante que não quer perder o emprego, mesmo sabendo que dali só sairá para a aposentadoria. E a ética dos primeiros crentes.

 

Catierina Lvovna

20 de abril de 2018

A palavra tem precedência. No início era o verbo. A percepção de nossos dias, contudo, cada vez mais, com o avanço da informática, é pela imagem. As palavras são escritas para ilustrar a imagem. A imagem conseguiu a precedência. Contudo, os da geração passada, do livro, continuam, como náufragos, apegados ao velho código. Quem poderá julgar o bem e o mal na história que muda enquanto somos vivos? Afinal, muitas crianças aprenderiam melhor a ler se os livros de leitura fossem histórias em quadrinhos, banidas ao meu tempo de criança como inferiores concorrentes do livro.

Daqui a cinquenta anos, todos de minha geração estaremos mortos. Enterrados. Ou pó, Tu és pó e a ele voltarás. A quarta-feira de cinzas é nossa única certeza. Pela velocidade das mudanças da era tecnológica, nós, velhos, não estaremos aqui para ver, ouvir e sentir a sociedade da imagem, da rapidez das comunicações e tudo o mais que nem em sonhos e devaneios futuristas caberiam.

Porém o navio ainda está na superfície do mar. Velhos do mundo, uni-vos. O computador e o celular são inevitáveis, há que aprender os novos códigos de sobrevivência. Aprendamos. O mínimo necessário.

Ah, o prazer dos livros! Grossos. Antigos. Já lidos. Com fungos e poeira. De autores falecidos.

Sempre que posso, leio o livro antes de assistir ao filme. Em geral, prefiro os livros. Porém há diretores que conseguem uma tal sintonia com o escrito que passam para a tela o espírito do livro. Não necessariamente uma cópia quase fiel das cenas, personagens, como fez com grande competência Nelson Pereira dos Santos em Vidas Secas. Para isso, precisou filmar duas vezes, sendo a primeira a difícil passagem de aprender pelo erro. Mas chegou lá. Transmite no filme o espírito do autor da obra literária, Graciliano Ramos, assim como personagens e cenas. Para mim, com um dano irreparável: perdi para sempre a minha imagem de Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos e a cachorra Baleia. Outros filmes distanciam-se da descrição. Aqui e ali uma cena, uma personagem, uma fala, remetem diretamente ao livro. Contudo, se bons filmes, conseguem o mais importante: a empatia, sintonia fina com o espírito do livro.

Esta semana, a programação do grupo Arte e Psicanálise, coordenado por Everaldo Soares Júnior, foi a exibição do filme do cineasta polonês Andrzej Wajda, de 1962, Siberian Lady Macbeth, também traduzido como Fury Is a Woman, filme inspirado em livro de Nicolai Leskov. Favorito de grandes diretores da história do cinema, como Roman Polanski, Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Wajda ficou mais conhecido pelo filme de 1958 que lhe rendeu a Palma de Ouro em Cannes e reconhecimento internacional, Cinzas e Diamantes.

Reli o livro do autor russo Nikolai Leskov, Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk, no qual é baseado o filme. Livro este, por sua vez, inspirado, por óbvio, na tragédia de Shakespeare. Reli esta também. Apenas para concluir que, talvez por ser prosa e não teatro, talvez por destacar a personagem feminina e não as eternas lutas pelo poder copiadas dos gregos, a Lady Macbeth russa é muito melhor do que a de Shakespeare. Que personagem, Catierina Lvovna! Com justiça, dá nome ao livro. Não um Machado de Assis, que se esconde por trás de um Dom Casmurro, que não passa de uma sombra da personagem forte do livro, Capitu. Foi preciso muito artifício de linguagem para que esse autor não assumisse que o título do livro, de direito, seria Capitu.

Pela descrição da protagonista, não nascera bela, mas de aparência muito simpática. Vinte e quatro anos, estatura mediana, mas elegante, pescoço como que modelado em mármore, ombros arredondados, colo vigoroso, nariz reto, afilado, olhos negros, vivos, fronte alva e alta e cabelos negros, de um negro beirando a azulado, não imaginaria a personagem linda do filme. Porém seus gestos, seu caminhar oscilante por uma imensa e rústica casa rural de um pequeno distrito da Rússia ortodoxa, casam perfeitamente com o tédio russo das casas comerciantes, em cujo clima, como se diz, é até uma alegria a gente se matar. Catierina ficava em casa dias inteiros, enlanguescendo, sozinha, sozinha… Enquanto isso, o tempo lá fora estava uma verdadeira maravilha: morno, claro, alegre, e, pelas grades verdes de madeira do jardim viam-se pássaros diversos voando de galho em galho.

O filme de Wajda é em preto e branco. Não aparece o verde das grades de madeira. O que não tem a menor importância, pois é precisamente o branco e negro que permite mostrar a solidão de um casarão que aos poucos irá sendo palco de tragédias, sob a batuta de Catierina, uma mulher invisível, como todas de seu tempo, lugar e classe social . Casaram-na com o nosso comerciante Izmáilov, de Tuskara, província de Kursk, não por amor ou qualquer atração, mas sem quê nem para quê, simplesmente porque Izmáilov pedira sua mão e, sendo ela pobre, não precisaria ficar escolhendo marido.

Nietzsche não fez filosofia da razão. Tirou a casca, como descascasse uma banana, do ser social, e o mostrou nu, livre de toda vestimenta ideológica do iluminismo. Nele também aparece essa mulher criada por Nicolai Leskov, submissa, ninguém. De acréscimo, o autor russo lhe acrescenta ser estéril. A rebelião privada de Catierina Lvovna Izmáilova é proporcional à sua esperável submissão. Apenas uma tragédia poderia expressar uma revolta que Leskov não imaginaria se desdobrar no século seguinte em luta das mulheres, minoria, como tantas outras minorias, por seu lugar na sociedade.

O filme de Wajda aprofundou a tragédia, ao inverter alguns papéis, atribuídos a Catierina no romance, por ele imputados ao seu amante, Serguiêi. É o caso dos terríveis pesadelos de Catierina, nos quais lhe aparece um enorme gato que se enfia entre ela e Serguiêi de forma assombrosa, até se transformar no rosto do sogro por ela assassinado. No filme, é Serguiêi quem vê a assombração na forma da cabeça do porco servido em almoço solene e sai correndo da sala. Wajda dá mais realismo á tragédia, pois afinal Catierina perpetrou todos os crimes com a frieza de quem persegue uma meta, enquanto Serguiêi foi o objeto de seu desejo e da intensão dela de tê-lo a qualquer custo. O custo foram três assassinatos a sangre frio. Ela não se abalou com nenhum deles, até o momento derradeiro, epílogo da tragédia, quando vê perdida a sua única ambição: a paixão, o gozo. Pois não soube na vida, essa mulher, nada do amor. Soube apenas da paixão.

O filme aprofundou também a tragédia com outra inversão. Esta, de momentos. No livro, o enlevo da paixão dos dois amantes, Catierina e o jovem e ousado empregado encarregado dos porcos, Serguiêi, dá-se ao início, quando se conhecem e antes da sequência de crimes. É a parte mais bonita do romance, o capítulo VI, que faz lembrar a cena de Madame Bovary circulando na carruagem com seu amante, sem destino, por ruas e ruas, aparecendo ao público apenas um braço nu jogando fora papéis picados. Em Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk, o amor se faz à sombra de uma macieira.

Depois do almoço, o bochorno assolava lá fora e uma mosca ágil perturbava insuportavelmente … A perplexidade a assalta de repente, afastando-lhe totalmente o sono e a modorra. … O sol já se pusera totalmente e a noite descia, maravilhosa e encantadora, sobre a terra aquecida pelo calor…. o rapagão curvou-se e meteu-se sob a macieira baixa, coberta de flores brancas, e foi sentar-se no tapete aos pés de Catierina …(que) ergueu-se nos cotovelos e olha para a relva alta do jardim, a relva brinca com o esplendor da lua, que se desfaz em retalhos sobre as flores e folhas das árvores. Ela está toda coberta pela claridade dourada daquelas réstias minúsculas e caprichosas que sobre ela tanto bruxuleiam, tanto tremeluzem; como se fossem vivas borboletas de fogo ou como se toda a relva sob as árvores estivesse presa por uma rede lunar e se deslocasse de um canto a outro

Em meio ao sono profundo, um velho capataz que dormia no galpão começou a ouvir no silêncio da noite ora um murmúrio seguido de riso baixo, como se em algum lugar crianças traquinas trocassem ideias de como zombar de velhos fracos com mais maldade, ora uma gargalhada sonora e alegre, como se as sereias dos lagos fizessem cócegas em alguém. Era tudo isso que Catierina brincava e folgava com o jovem capataz do marido, banhando-se de luar e rolando no tapete macio. As flores brancas e frescas da frondosa macieira espargiam-se sem cessar sobre eles, mas por fim o espargimento cessou. Enquanto isso, a breve noite estival ia passando, a lua se escondera atrás dos telhados proeminentes dos altos celeiros e olhava de esguelha para a terra, a cada instante mais e mais opaca.

A mesma cena, onde o amor se expressa na beleza da natureza, transmuda-se no filme para momento mais dramático: não antes, porém depois de todos os assassinatos. Não ao pé da macieira, mas, talvez numa homenagem do cineasta a Gustave Flaubert, numa bela carroça conduzida por juntas de cavalos. Os dois amantes estão na mesma entrega amorosa de risos, a céu aberto, por sobre montes de fenos que esvoaçam pelo ar, deixando um rastro de gozo por onde passa a carroça.

O filme segue com o livro as cenas finais. A mesma determinação de Catierina, seguindo a qualquer preço a paixão, em cenas desesperadas na neve, no gelo, no frio, culminando com a travessia do Volga. A música de Dmítriy Dmítriyevich Shostakóvich completa o cenário.

 

 

 

Um tapete de sargaços

30 de março de 2018

Apenas agora, 9 horas, apareceu uma claridade de sol encoberto. Às 6 da manhã, com chuva fina, a praia estava deserta, a maré secando. Em tempo de lua cheia, a maré tem seus picos de altas e baixas. As jangadas todas estacionadas, que hoje é dia de guarda para os pescadores. O lutador, dispensado de seus serviços junto às jangadas, foi um dos poucos caminhantes com quem cruzei. Com seu boné de aba para trás, descalço, de bermudas surradas e sem camisa. Caminhava ao léu na areia fofa e nos cumprimentamos de longe. Quando voltei, a chuva engrossara. Pelo chapéu protetor de sol escorria uma goteira à altura de meu nariz, como fosse um telhado.

Um tapete de sargaços. Há alguns anos, escrevi uma crônica, Uma tarde no Pina, em que me referia a essa vegetação marinha que vem aportar a esta praia. Uma forração macia aos pés, cheirosa. Dos meus sentidos, o mais apurado é o olfato, quase faro. Uma hóspede paulistana, Cecília, reclamava da praia suja, do cheiro. Espiei pela janela junto com ela, Que sujeira? Que fedor? Aquilo me provocou uma reação, até com certa indignação, que resultou na referida crônica. Não a reproduzo. Está na Revista Será e na Algomais. Escrevo outra com o mesmo motivo.

Sabe-se hoje que o homem começou a habitar a terra pelo continente africano. Antes dos gregos, antes da sua mitologia, os negros já haviam criado seu panteão de deuses. Iemanjá é mais velha que a Sé de Braga. Imagine-se esse tempo todo, reproduzindo-se sem cessar, pois é casamenteira? Têm seus dias de cabeleireiro. Chamam as filhas Oxum, afeitas ao ofício, vaidosas e sedutoras que são. Elas não se negam a cuidar dos longos cabelos pixains de suas mães, morando em tantos palácios onde os negros se espalharam pelo mundo.

Aqui, os pescadores sabem os nomes das ruas e avenidas marinhas. Não sabem, porém, das moradas de Iemanjá. Apenas deduzem que os maiores palácios estarão na praia do Pina, entre a mais frondosa Castanhola do calçadão e o limite com Brasília Teimosa. Lugar das comemorações do oito de dezembro, no círculo cimentado onde foi implantado o ixé da santa.

Certamente hoje é dia de cabeleireiro para a orixá mãe. Fazia tempo que não chamavam suas filhas para o dia do corte, que, como tudo o que se faz nos cultos iorubás, é motivo de festa. São tantos os palácios transformados em salão de cabeleireiro, que as ondas trazem esse tapete marrom para enfeitar e perfumar as praias do Pina.

O comércio dos ambulantes não aproveitará o feriado, pois choveu até quase agora. Na areia da praia, somente os jogadores de futebol com uniformes azul e encarnado, redes em tamanho regulamentar, juiz, apito. Chegam-me longinquamente seus palavrões. Os três campos próximos ao calçadão, transformados em lama desde as chuvas de ontem, ficaram inviáveis.

Passou o dia de São José. Chegou o inverno. Bendito inverno, bendita chuva, que abastece as barragens, aduba roçados. Quatro estações é luxo de países temperados. Aqui entre nós, no Nordeste brasileiro, é inverno chuvoso e verão seco, quente, ensolarado. Quem quiser banho de mar, que se contente com os dias, que não são poucos, em que o sol resolve aparecer e enche as praias de gente.

Hoje, sexta feira da paixão, dia de festa somente para os habitantes dos palácios marinhos, comemorando o dia do corte. Às vezes os sargaços trazem junto as perigosas caravelas, lindas de espiar, perigosas ao toque distraído que provoca queimadura. Não hoje.

Quem não mora perto do mar, venha até aqui. A cidade está tranquila no feriadão, sem trânsito. Praia deserta. Deixe o carro com os calçados na avenida, caminhe até a beira do mar. O tempo não está para banhos salgados. Apenas um passeio pela areia e pelo aconchegante tapete marrom. Seus pés e seu sentido do olfato vão agradecer.