Eppur si muove 

24 de março de 2018

Eppur si muove ou E pur si muove (mas se movimenta ou no entanto ela se move, em português) é uma frase polêmica que, segundo a tradição, Galileu Galilei pronunciou depois de renegar a visão heliocêntrica do mundo perante o tribunal da Inquisição (Wikipédia).

Enquanto os militantes de outrora acham que estão fazendo alguma coisa repassando mensagens distantes pelo celular, os jovens começam a se movimentar. Enquanto esses mesmos que ainda se dizem de esquerda espalham um vídeo sobre a riqueza de Edir Macedo, um discurso de romancista africano sobre o medo, odeiam as igrejas crentes, falam do neoliberalismo com o mesmo ódio com que alguns pastores das igrejas evangélicas se referem ao demônio, jovens destas mesmas igrejas, sem distinção de credo, pois também existem católicos entre eles, movem-se para protestar e dar apoio às famílias atingidas pelos homicídios. A sociedade, sabemos, é cheia de contradições. Hegel sabia disso.

Jovens de cerca de 53 organizações e igrejas cristãs fazem nesse momento um manifesto nas areias do Pina. São 1.000 cruzes pretas de madeira, cada uma simbolizando os jovens, negros, moradores da periferia (90% dos casos, estimativamente) que foram assassinados somente no primeiro trimestre deste ano de 2018 em Pernambuco. O número oficial é divulgado pelo Estado mês a mês, no dia 15. O ano passado, foram 5.427 homicídios no Estado, quase 10% de todas as mortes no Brasil, segundo o Forum Brasileiro de Segurança Pública. Eles pedem mais. Que o Estado publique essas cifras discriminadas por cor, gênero, idade, local de moradia. Pelo menos isso.

É o segundo ano dessa manifestação. As mesmas mil cruzes pretas do ano passado.  Houve progresso nenhum do ano passado para este no número de homicídios, malgrado o aumento dos gastos com o policiamento. Os ricos se trancafiam cada vez mais, o trânsito fica inviável. Os pobres, na periferia, enfrentam a violência diária. Os economistas se sucedem em planos para municiar esta ou aquela política pública, este ou aquele candidato.

E a sociedade se move. Nós, brancos, amedrontados, nos trancamos. Já escrevi isso ao início de minhas crônicas desse blog: enquanto os jovens, sobretudo os de classe média (os da periferia já vivem a vida de rua), não ocuparem as ruas, espaço de cidadania, para o cotidiano de suas vidas, de pouco adiantará as políticas e os discursos e os planos econômicos que mudam como as modas de combate às doenças sociais. As mulheres ficando sem os peitos, os homens brochando sem a próstata, os médicos enriquecendo, uma sociedade envelhecendo, encolhida de medo, doente.

A manifestação teve início às 7 horas da manhã. Parei minha caminhada e não resisti à crônica social. Conversei com vários. Tirei muitas fotos, porém quem quiser saber mais e ter melhores fotos, é fácil entrar na mídia: movpedepaz. Distribuiram uma folha de papel (como não lembrar de meus tempos de militância estudantil distribuindo panfletos de denúncia da ditadura em 1968?) para os caminhantes e os automóveis. Um ônibus a caminho de Madeió, transportando a orquestra de câmera Alto da Mina, com jovens e crianças, deu uma paradinha e uma “canja”. Sob a batuta do maestro Israel, um negro de cabelos black power ao violino, tocaram um pequeno trecho da Nona sinfonia de Beethoven, com direito ao coral, Asa branca e Mais perto quero estar.

Precisava vir tomar café da manhã para iniciar meu dia, que tem compromisso logo mais. Perdi o restante da manifestação, não sem antes acrescentar essas palavrinhas ao Momentear de hoje.

AS MÃOS DA TAPUINHAS

Zé Antônio Sales

13 de março de 2018

“Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”. Shakespeare, como gênio que era, sabia que coisas existem nas nossas vidas que mesmo um sábio não consegue explicar. Como diz um antigo ditado espanhol, “yo no creo em las brujas, pero que las hay, las hay”

Quando descobri que estava com câncer no rim, meu desejo foi ir para Maranguape, no Ceará, consultar-me com dona Nazaré, que faz seções de cura usando apenas suas mãos, ou melhor, as mãos da índia Tapuinhas. Minha irmã se ofereceu para me acompanhar. Decidido, no dia seguinte estávamos voando para Fortaleza, onde alugamos um carro e 40 minutos depois chegamos na casa de dona Nazaré. O que aconteceu lá, minha irmã já relatou com detalhes, no seu blog Momentear de 18 de fevereiro de 2018.

Incorporada na índia Tapuinhas, ela nada mudou, nem nos gestos, nem na fala, mas, através de suas mãos, era a índia Tapuinhas quem atuava. Mãos pequenas e delicadas, tocava meu corpo sutilmente, carinhosamente, até encontrar o que estava procurando. Estacionava seus dedinhos naquele local e, como num passe de mágica, extraia objetos das formas mais diversas. Em cada local, coisas nojentas eram retiradas, trouxinhas amarradas com linha, tiras parecidas com pedaço de bacon seco, bucha de polir carro, pedaços de ferro, e assim foi. Tirou mais ou menos uns 15 troços desses. “Você tem o corpo muito aberto, meu filho, recebe todo tipo de energias negativas, mesmo quando não são dirigidas para você”. Na verdade, acho que as coisas que sairam de mim, eram as energias ruins acumuladas, materializadas nessas formas estranhas. Para o fechamento do corpo, durante três noites, foi feito um trabalho por um pai de santo, indicado por ela. Tô com corpo fechado agora.

Vendo a Tapuinhas trabalhar com as mãos, não pude deixar de pensar em meu pai e do poder que ele também tinha com as mãos.  Meu pai era médico clinico geral e ginecologista em Garanhuns. Parece que era o único medico na cidade que atendia a chamados de emergência nos sítios mais distantes, quase sempre à noite. Geralmente eram partos complicados, quando a parteira local já não conseguia solucionar. Era comum um pai desesperado, com a vida da mulher e do filho para nascer em risco, bater à nossa porta altas horas da noite. Quase sempre, pessoas muito pobres, cuja única esperança era o doutor Sales. Me lembro de minha mãe fazendo um café forte, e dele, vestindo seu capote longo e colocando a boina de lã, saindo no frio de Garanhuns, com sua maleta de médico, para mais uma jornada de trabalho complicado. Nunca perdeu uma criança, meninos enlaçados, de bunda, atravessados, vinham à luz pelas suas mãos. Mãos milagrosas, diziam. Se fosse menino, quase certo, teria seu nome e ele seria o padrinho. Isso lhe dava uma satisfação que dinheiro nenhum pagaria. Me lembro dele anotando com grande satisfação em um caderninho, o nome dos pais de seus afilhados chamados de José Antonio.

Existiam muitas histórias de suas andanças para esses atendimentos. Uma das vezes, estava voltando de um sítio distante, de madrugada, quando se deparou com um monte de gente na estrada. Parou o carro, e viu que aquelas pessoas estavam assistindo a uma briga mortal, com faca peixeira, entre dois homens. Atravessou por entre as pessoas, em direção aos brigantes raivosos e gritou, com a autoridade que lhe era peculiar, para pararem imediatamente, separando os dois, já com alguns ferimentos. Assustados com aquele homem alto, de capote e boina escuros, surgido da madrugada, ouviram atentos quando falou: passei a noite toda até essa hora para dar a vida a uma criança e vocês querem tirar a vida um do outro? Me deem as peixeiras e vão para casa. Pegou as facas e mandou todo mundo embora. Entrou no carro e seguiu seu caminho.

Outra história pitoresca foi contada por Dom Gerardo Wanderley no sermão da missa em comemoração aos 100 anos de seu nascimento, no mosteiro de São Bento, em Garanhuns. Meu pai estava atendendo uma mulher, numa época em que ainda não existiam exames tipo tomografia computadorizada, onde se vê tudo por dentro sem nenhum contato físico com o paciente. Tudo era feito com as mãos, apalpando e perguntando, dói aqui, dói ali, sente isso, sente aquilo … Nisso, o matutinho, marido ciumento, não gostou das apalpadelas e falou: “Doutor vamos fazer o seguinte, eu incarco e o senhor pregunta!”. Meu amigo Ismael Caldas, que também era afilhado de meu pai, contava que, pequeno, quando estava doente, meu pai era chamado e, de apenas tocar sua cabeça carinhosamente com as mãos, era o suficiente para ele ficar bom.

Por outro lado, os atendimentos gratuitos que ele fazia, eram compensados com gratidão nas épocas de natal, quando nosso quintal ficava cheio de perus, galinhas, carneiros e outros bichos. Nossa cozinha se enchia de melancias, milho, feijão, favos de mel e outras ofertas. Nesse presentear, sobrava até para mim, que também sou Zé Antonio. Uma vez, ganhei um carneiro branco amestrado, com os arreios completos, selinha, cabresto, tudo. Botei seu nome de Jasmim. Montado em Jasmim, eu era Durango Kid, dos seriados de cowboy, nas matinês de domingo no cinema Eldorado. Ganhei também um xexeu de bananeira, passarinho bonito e cantador, com plumagem preta e amarela. Era mansinho e sua gaiola ficava aberta, ele podendo voar para o quintal voltando quando quisesse. Até o dia que virou jantar de Cotiabá, nosso cachorro feroz.

Mãos e olhos são os sentidos de nosso corpo por onde mais se emanam energias. O olhar de meu pai era severo. Eu, criança hiperativa com distúrbio de atenção, era impulsivo e incontrolável. Só o olhar de meu pai era capaz de me desacelerar. Odiei esse olhar a vida inteira. Nunca me bateu, apenas ameaçava com uma tabica de marmeleiro, por ele denominada de grã-fina, que era apenas decorativa, pendurada na parede do seu quarto. Ah, como eu preferia uma boa surra com a grã-fina, aos seus sermões moralistas de censura, que me faziam chorar e me sentir ninguém. Ele tinha a autoridade do homem correto, honesto, que não fumava, não bebia e fazia o bem, era inquestionável. Tinha essa força moral com todos. Meus primos fumavam na frente de seus pais, mas não na frente do meu, embora ele nunca tivesse dito para não fumar. Meu avô, seu pai, o tratava, como se ele é que fosse o pai, com obediência e respeito.

Morreu muito novo, aos 57 anos, de câncer, eu tinha 18. Mesmo na sua morte, me senti culpado, pois não senti tristeza, nem sentiria sua falta. Ao contrário, senti alegria e uma sensação imensa de liberdade. A espada ameaçadora tinha sido retirada da minha nuca.

Quem poderá julgar nossa relação? Não se trata de certo ou errado, os dois tinham suas atitudes e seus motivos. Sabe-se hoje que crianças com a minha síndrome, não são crianças fáceis e, em conseqüência da dificuldade para integração social, têm uma grande tendência à marginalidade, contestação e transgressão. Com certeza eu não atendia a suas expectativas.

O fato é que, hoje, dia 13 de março de 2018, completando 74 anos, faço as pazes com ele. As mãos da Tapuinhas me conectaram com as mãos de meu pai e me trouxeram a paz de espírito. Agora mesmo, no silêncio do Poço da Panela, na varanda de minha casa, que por acaso foi a casa onde meu pai morreu, deitado na rede escrevendo esses pensamentos, um sabiá, na castanhola da frente, canta estridentemente sua melodia improvisada como num jazz. Com certeza, para homenagear esse momento.

Festa de família

18 de março de 2018

Ontem foi o aniversário de cem anos da irmã caçula de meu pai, a última tia viva dos dois lados de minha família. Enquanto ela estiver “nítida”, conhecendo cada sobrinho, cada amigo, parente, a quem presenteou com o livro que escreveu rememorando fatos da família, já dedicado a cada um, enquanto isso, somos ainda a segunda geração. Na hora em que ela for embora, subiremos ao pódio, é nossa vez de chegarmos ao topo da pirâmide etária sem mais saída para a indesejada das gentes.

Com meu irmão, planejamos chegar a tempo de perder a missa. O trânsito estava bom num sábado à tardinha, a missa ainda transcorria quando chegamos, com os cânticos que nada mais guardam em comum com as missas de Padre Florentino em Bezerros. Fosse um cantochão, alguma palavra em latim, um ambiente contrito, teria entrado. A gente gosta de cerimônias que lembram a infância. Mas essa missa cheia de alegria? Depois lamentei ter perdido o discurso da tia ao final da missa. Soubesse…

Percorro as mesas, ainda quase vazias esperando o final da missa. Aqui e ali, alguém que teve seus motivos para não entrar. Vejo um primo, reconheço. Não temos assunto. Abstraio o tema da conversa que já acontecia com uma irmã sua e a sobrinha. Vejo nele o rapazinho que foi um dia, ajudando o pai no transporte de cereais de Bezerros para o Recife. O pai desse rapaz, primo irmão do meu, eram amigos inseparáveis. Era uma pessoa adorável. Não conheci ninguém que dele não gostasse, com seus quinze filhos. As filhas, bonitas, algumas com os olhos claros da mãe, casaram todas.

E que família alegre! Lembro o cucus fumegando à mesa do café da manhã, rescendendo a milho seco ralado. Uma leiteira branca enorme, para o carro chefe do café da manhã: cuscus com leite. Pão, café, manteiga. Talvez queijo de coalho assado, desse não tenho lembrança.

Acabada a missa, escolhi a mesa dos primos mais queridos, filhos de tio Adriano e tia Ritinha. Aprenderam a gostar de nós, os filhos de Dé e Otávia, diretamente pelos pais. Foram as portas mais abertas de todas as casas que conheci. Como meu pai, esse tio era um homem de ideias conservadoras e católicas. Porém foi lá que fiquei ao abrigo da perseguição policial depois do Congresso de Ibiúna e em outros momentos difíceis. Até em situações amenas, quando quis simplesmente um lugar sossegado para estudar o vestibular. Isolava-me numa das ilhas de Dois Irmãos, que tinha acabado de se acoplar ao quintal de sua casa, tal uma península. Em todas as vezes em que lá cheguei de mala e cuia, esse tio nunca quis saber o motivo.

Seu livro, tia Lenira, que apenas folheei ontem, circulei pelas fotografias, não vou ler hoje. O dia está lindo, ensolarado, os três campos de futebol na frente de minha janela com jogos se sucedendo, a praia cheia de gente enquanto o inverno não chega. Vou deixar assentar a poeira de ontem. A emoção ainda é grande. Afinal, ouvi a voz de cada tia nas conversas ligeiras com as primas. Percorri as ruas e becos de Bezerros. Atravessei a ponte para ir da casa de meu avô, em frente à estação de trem, para as missas de domingo na rua da Matriz.

Um dia, faz tempo, morava em São Paulo e Rosa, minha irmã, em Brasília. Uma enchente do rio Ipojuca derrubou a velha ponte. Consternação geral. Não paravam nossos telefonemas (naquele tempo não existia o whatsapp), a saber cada detalhe. O meu cunhado Plínio comentava, Nem tivesse sido o rio Sena derrubando a Pont Neuf!

Hoje, tia Léo, o choro que agora apenas aflora enquanto escrevo, iria correr solto como água de rio em enchente. Essa família grande com a qual pouco convivi, pois fiz minha vida produtiva e reprodutiva longe daqui, é como tirar de mim fragmentos do tempo passado, das tias. Com cada uma delas, incluindo a única do lado de minha mãe, tive uma relação especial, só minha. Quando íamos de férias, aquele grude de primos, o avô, pai de meu pai, filosofava, Troquem os filhos. Cada um leva de volta para casa os sobrinhos. Tios criam melhor sobrinhos do que os pais aos filhos.

Para essa crônica não ficar melosa, encerro com uma historinha que se intrometia nas conversas de meu pai e seu primo ao qual me referi lá em cima. Dois compadres se encontraram na estação de trem de Bezerros. Um desceria antes do outro, em Gravatá. Estavam em conversa animada, pois há muito não se viam. Comentavam qual a melhor parte da galinha. Foi só o tempo de um deles dizer, O ovo. Meses depois, encontram-se na mesma estação. Sem preâmbulos,

– Com que, compadre?

– Com sal.

Essa brincadeira prossegue. Vez por outra, no meio de uma conversa sobre qualquer assunto, assim como faziam meu pai e João Batista, perguntamos a um irmão, à queima roupa, Com que? O assunto segue seu curso, não sem antes o outro responder, na bucha, Com sal. Nunca essa pegadinha pegou nenhum de nós.

A bengala e a pescada

13 de março de 2018

Desde que cheguei a Lisboa, há duas semanas, ontem foi o primeiro dia de sol convicto. Frio ainda, porém mais ameno, dezesseis graus. Pela janela do meu miradouro vejo a alegria nas ruas. Cadeiras nas calçadas dos restaurantes, cheios de gente almoçando. Velhinhos e velhinhas encapotados, alguns com bengala, caminhando ao sol.

No sábado, tinha ido à Feira da Ladra, aqui perto, mais ou menos um quilômetro. Só que uma ladeirona até chegar lá, descendo toda a extensão da rua da Verônica. Chovia. Mesmo assim, pelas quatro horas da tarde ainda se viam muitas barracas abertas. Comprei as lembrancinhas, que esse é um lado bom das viagens, a gente trazer para junto os amigos queridos com quem gostaria de estar ali, naquele momento. Depois passeei no entorno, entrei pela primeira vez na Igreja de Santa Engrácia, panteão nacional. Mas o melhor mesmo foi caminhar pelo casario da minha rua, ladeira acima, sem chuva, podendo apreciar os azulejos velhos

Ao subir a ladeira de volta, mochila cheia às costas, a rua continuava quase deserta, com suas calçadinhas de fila indiana de pedras portuguesas. Dava até para caminhar pelos paralelepípedos. Guarda-chuva desarmado, virou bengala. Inaugurei a bengala, minha gente! Como é bom! Se ainda der tempo, dou um pulo no Chiado e no Rossio, a ver se encontro uma bonita. Aqui em Lisboa é o lugar certo para comprar. E posso assegurar, de experiência própria: nada melhor para subir uma ladeira íngreme do que uma bengala. Dor das costas? Nenhuma. Com o tempo, deus me dando longa vida, quem sabe ainda venha a usar também no plano?

Voltemos a ontem, dia ensolarado. O restaurante mais próximo de casa, com as mesas espalhadas até perto dos trilhos onde o 28 faz a curva (além do Pingo Doce fechado, também esta linha dos elétricos esteve sem funcionar por causa de um conserto numa rua mais embaixo), já não servia almoços quando lá cheguei pelas três da tarde. Closet, closet, apressava-se em me dizer o garçom, a quem respondi em português.

Segui pela rua da Graça, passei em frente à Tasca do Jaime, continuei andando. Queria localizar um restaurante no qual, há pouco menos de dois anos, comemorei meu aniversário. Não sabia ao certo o lugar. Apenas que era mais embaixo nessa mesma rua. E que os nomes dos pratos em destaque do cardápio daquele dia estariam afixados na vitrine (montra, se diria aqui) em papel comum, escrito a mão.

Encontrei. Ao balcão, um dos garçons e não o dono. Na noite de meu aniversário, sendo um final de semana, ele mesmo cuidava do caixa e dos pedidos. Sugeriu um linguado, que trouxe para nos mostrar, trazido da montra pelo empregado, enquanto comíamos uns camarões ao alho no balcão. O preparo? “Deixe estar, que eu sugiro á cozinheira. Vocês vão gostar”. Que bela noite!

O de ontem foi uma pescada na brasa. Peixe bom não precisa mais nada que sal (na brasa, do grosso), limão e azeite. Estava perfeito. Servido com batatas cozidas, como deve ser, e uma salada de alface, tomate e cebola. Uma taça de vinho branco alentejano, ela própria gelada, como servimos cerveja aí nos trópicos, e uma garrafa de água mineral. Não comeria essa pescada em São Paulo, lugar dos melhores restaurantes do país, comparáveis a qualquer boa mesa pelo mundo. Porém peixes? Desculpe, minha querida São Paulo. Mas, coisas do mar, onde tem mar. Paguei doze dólares por tudo, incluindo os dez por cento da gorjeta que não constava na nota.

Sociedade doente

14 de março de 2018

Na crônica do pesadelo, o mundo que não era onírico foi apresentado na forma de uma mensagem de whatsapp. Aos poucos, juntando uma crônica aqui, outra ali, vou mostrando pedaços de uma sociedade doente. Como um médico apresentaria orgulhoso ao paciente que acabou de se livrar de um tumor, Está aqui, está vendo? É do tamanho de uma laranja.

Taí. Se a maçã simboliza o prazer, a laranja não seria a dor? Ao mostrar, é como se dissesse ao paciente e familiares que o aguardam no quarto do hospital, livrou-se da dor. Do espanto da morte.

É a dor quem comanda a sociedade do medo. Por isso é doente, a sociedade. Basta ver a quantidade de farmácias em todas as ruas brasileiras. Alguém já me disse, Isso é lavagem de dinheiro! Que seja, pouco importa, para o que aqui se discute. O dono poderia ir lavar o dinheiro dele vendendo carro usado, droga ilegal, que, esta sim, dá muito mais dinheiro. Não. Abriu uma farmácia. Mais um cinema desativado.

Depois que atentei para aquela mensagem de advertência dos policiais para o imenso poder do mundo do crime (em outros tempos se diria que é uma mensagem de terrorismo), passei a receber outras do mesmo teor. Como se precisássemos estar o tempo todo em alerta contra o inimigo. O meio de comunicação facilita, com a agilidade das redes sociais. Fosse uma carta pelos correios?

Uma dessas mensagens divulga uma gripe iminente, em ABRIL, proveniente de vírus tal, que se propaga pela boca, etc. e tal. E recomenda, Passe essa mensagem adiante para que todos saibam que é importante evitar contato em locais públicos. Esse é o ponto: não se expor em locais públicos. Já temos nossas fortalezas privadas, gradeadas, protegidas. Permaneçamos nelas. Tão presos quanto os que andam entrando no celular de quem tem dinheiro. Até outro dia, dizia-se que era somente o serviço secreto americano quem sabia a vida particular do mundo inteiro.

A outra mensagem versa sobre os malefícios dos refrigerantes. Não seria mais eficaz, diria o primo Eremildo, fechar todas as fábricas de refrigerantes do mundo?

Ah! Mas ai só deus.

A propósito, há em Portugal uma lei deveras interessante. Aqui não é como no Brasil, onde os pais escolhem livremente o nome de seus filhos. Um direito civil como qualquer outro. Aqui não é assim. Ao chegar no cartório para registrar o filho ou a filha, se o nome não for conhecido pelos costumes, consulta-se uma lista. Espécie de inquisição. A ver se aquele nome escolhido consta. Caso contrário, se os pais insistirem no nome, abre-se um processo que justifique a escolha e espera-se até a decisão de um tribunal. Não querendo esperar, Volte para casa, meu senhor, minha senhora, não há pressa no registro do menino, há tempo ainda para pensar.

A filhinha de Julia, Maira, fosse filha de portugueses, não poderia ser registrada com esse nome indígena brasileiro. Como registrou-se no Consulado brasileiro, tudo bem.

Portugal tem dessas coisas. Afinal, não vai longe os trinta e seis anos de convivência com Salazar. Agora, aqui pra nós e que ninguém nos ouça, Uma leizinha dessa no Brasil, heim? Acabaria com tanto Y, W, e consoantes dobradas em nomes americanizados. Nossa lista de inquisição seria maior: permitiria nomes indígenas, portugueses e africanos.

Descrição

Ao 8 de março

15 de março de 2018

Terceiro ano. Dona Luzinete Laporte trouxe um quadro de casa – estudei o curso primário em escola pública –, colocou no prego da parede e estabeleceu a tarefa: vocês olhem a pintura e façam uma descrição.

Vejo aqui na minha frente uma galinha do tamanho de um galo. Sei que é galinha porque junto dela há seis pintinhos amarelos, todos do mesmo tamanho. Pinto é bom por isso, Os irmãos já nascem todos da mesma idade. Acho que se eu tivesse nascido pinto não brigava tanto com minha irmã.

A galinha, à qual vou dar um nome para ficar mais fácil escrever a descrição, chama-se Maria. Esse nome é conhecido de todos. Maria existe em qualquer lugar, de rico e de pobre.

Dona Maria não está ciscando, como fazem as galinhas no quintal de minha casa. Nunca fui lá para elas não estarem ciscando, com os pintinhos em volta.

Esses do quadro não estão sossegados com a mãe por perto. Dona Maria olha para a frente, bico empinado, passos de marcha. Os filhos seguem-na na mesma pisada.

Galinha é sempre chefe do domicílio. Esta, segue por um campo aberto, sem fronteiras, plantado com tufos de capim espalhados aqui e ali. O chão é de terra batida.

Atrás dela e sua ninhada, sem que a gente possa saber o quanto atrás, vemos duas árvores grandes. Uma (isso é possível discernir) está mais á frente que a outra. Essas árvores se encontram no meio de uma plantação uniforme, como se fosse milho, soja ou pasto. Dessas que a gente vê hoje em dia, que parece o mar de canas de açúcar de um poeta pernambucano, João, Um mar que não se acaba.

A plantação no meio da qual estão as duas árvores é alta, do tamanho de um pé de velame. Nunca vi dessa altura esse tipo de mato semelhando pastagem de gado.

O pintor se esqueceu (ou não tinha tinta suficiente) do mais bonito de uma paisagem. Céu azul e nuvens brancas. Atrás da vegetação, mais ao fundo, é a cor do papel que ele usou para pintar, cinzento. E sou capaz de jurar que dona Maria não iria principiar uma marcha decidida como essa num dia nublado.

O fetiche da mercadoria

A Marielle

16 de março de 2018

Meu querido professor, depois colega do Departamento de Sociologia da Unicamp, Octávio Ianni, disse-me um dia, a propósito de um convite que eu recebera para fazer uma palestra sobre tema que já não me interessava, A gente nunca se livra, professora, dos pecados que cometeu.

Esse blog é de literatura. Crônica, quando escrita com a régua e o compasso adequados, é literatura. Com bons frutos. Talvez por esse jeito de ser do brasileiro, povo de muito falar e pouco escrever. Exportamos crônicas para o mundo. Porém, nesse bloco, a sociologia comparece sem ser chamada, vai se enxerindo entre um parágrafo e outro.

Hoje resolveu tomar conta.

O primeiro curso que ministrei na Unicamp, Introdução à Sociologia para alunos do curso de História, afastada que andava dos manuais, inventei uma proposta que deu certo. Durante todo o semestre, leram em casa e discutimos em classe pedaço por pedaço de Casa Grande & Senzala. Resultou-me dali a comprovação de uma hipótese: este livro, criador do mito fundante da nação brasileira, o qual não andava ainda nos bancos da academia, fazia parte porém, assim como Os Sertões, da cultura brasileira. Mais da metade de meus alunos de São Paulo conseguiram-no em estantes da geração de seus avós. Os exemplares da biblioteca seriam insuficientes para cada um ter o seu para leitura. Isso foi no ano de 1985.

Hoje, daria um semestre inteiro, talvez na mesma Introdução à Sociologia, uma semelhante leitura do primeiro capítulo do primeiro livro de O Capital. Na Unicamp, assim como na USP, era leitura obrigatória aos alunos de Ciências Sociais os três porquinhos: Durkheim, Marx e Weber, pelo menos um semestre para cada um. A mim sempre coube Max Weber, cujo programa elaborei e foi seguido por muitos anos e outros professores.

O fetiche da mercadoria. O assunto veio-me à tona quando li a manchete no jornal do vizinho, antes de tomar um banho de chuva no calçadão pela madrugada. Marielle, Presente!

Li os comentários nos jornais do país e mensagens de rede social. Chico de Assis comparou ao clima que sucedeu ao assassinato de Edson Luíz, também no Rio de Janeiro, ao qual se desencadearam manifestações de rua e atos repressivos que culminaram no Ato Institucional 5, em dezembro de 1968. Eu estava nas ruas do Recife, Presente!   Agora, olho o mundo de minha janela.

Em grande parte dos comentários, não escapou a associação do assassinato de Marielle com o de outro poder da república, a Juíza Patrícia Acioli, em 2011. Esta, ameaçada de morte pela sua luta contra as milícias. Marielle, em começo de luta declarada contra a violência policial nas favelas, aos 38 anos, negra, linda, lésbica, não teve tempo de ser ameaçada. Ambas, defensoras dos direitos humanos.

Será que não existem mais sociólogos no Brasil? Onde estão que não enxergam tudo isso pela ótica da sociedade? Sinto-me sempre como um pregador no deserto quando escrevo a palavra guerra civil. Sim, guerra civil. Costumam começar com um cadáver. Temos dois. Duas corajosas mulheres. E sabemos há muito que o mundo, o nosso país com grande cabedal nesse assunto, não está dando certo com o poder na mão do patriarcado. Que não carece de ser necessariamente regido por homens.

Não me interpretem equivocadamente, por favor. Não estou nem de longe preconizando o poder às mulheres. Minha declaração de feminismo é branda, como a crônica que antecede a essa, a propósito de uma simples galinha. Ainda não havia lido sobre o assassinato de Marielle quando a escrevi.

A tecla que venho batendo é essa: estamos em guerra civil não declarada. E não me venham com governo esse, governo aquele, essa divisão imbecil entre coxinhas e mortadelas. Outro dia, no trânsito, ouvia na rádio da Universidade Federal de Pernambuco uma líder do movimento docente. Abstraindo o tema tratado, a reforma da previdência, era ouvir o discurso de uma pastora evangélica, tal a fúria. Em vez do demônio, o neoliberalismo.

Quase não leio análises econômicas nem políticas para explicar e dar solução às crises. Aqui, acolá, alguém se lembra que existe a sociedade, velha, costurada por séculos de uma desigualdade social crônica, nascida de uma escravidão que nunca se rebelou, como na Guerra Civil americana. Nós, cidadãos dessa sociedade, todos nós, elite pensante, militantes, ativistas, de direita, de esquerda, todos, construímos essa sociedade. Que virou esse monstro que hoje se mostra à luz do dia. Durkheim teria falado em anomia.

Prefiro o fetiche da mercadoria de Marx, num dos poucos capítulos em que ele foi sociólogo. O fetiche que encobre o essencial para mostrar a aparência. Minha tese de Livre Docência defendida na Unicamp em 1993, com banca composta por Francisco de Oliveira, Manuel Correia de Andrade, Juarez Brandão Lopes, Octávio Ianni e Paul Singer, foi sobre o Fetiche da Igualdade. Ainda não havíamos chegado a esse ponto de violência urbana e de acirramento das desigualdades de classes, com total isolamento no espaço físico das cidades.

Aos jovens, a missão histórica de denunciar, sair às ruas, protestar. Aos velhos, tentar entender. O editorial da “Revista Será?” de hoje, 16/03/2018, passou ao largo do assassinato de Marielle, o fato mais importante da semana aqui no Brasil. Enquanto Marx foi capturado na luta contra o capitalismo em prol do socialismo, que a muitos congregava, parecia mais fácil. Agora que, como dizia um prefeito de Garanhuns, quando um eleitor lhe pediu pela terceira vez para votar para presidente da república em um conterrâneo, Pode votar, meu filho, que o comunismo acabou, agora fica tudo mais difícil.

De crônicas e romances

20 de fevereiro de 2018

Os escritores gostam de dizer sua rotina e os leitores devaneiam nas coisas corriqueiras que o escritor faz para escrever. Uns acordam de madrugada, escrevem antes do sol. Outros adentram a noite. Antônio Prata escreveu uma crônica sobre o vizinho de cima que reformava um cômodo da casa em horário comercial. Isso perturbava seu horário de dormir. À noite, horário comercial dele, escritor, estaria morto de cansado porque passara todo o dia em claro.

Quando alguém lê uma cena dessa, logo pensa: eu também sou notívago (o mundo, como sabemos, é dividido entre estes e os solares), posso escrever um livro.

Quem não quer escrever um livro? É feito brincar carnaval, homem se vestir de mulher. A maioria das vezes são desejos escondidos, jamais confessados. As fantasias são de cada um. Ficar famoso talvez seja o que puxa o cordão, num bloco de carnaval. Escritores de livro são famosos. E quem não tem uma boa história para contar? A minha, de meu avô, meu irmão, um amigo, minha melhor amiga. Não dá um romance?

Qualquer história boa dá um romance. Todas estão ao alcance da mão. É um mistério porque a algumas almas é dado o dom de fazer a sua sair do desejo e entrar na rua.

Gosto muito de ler boas crônicas sociais. E também poesia, contos. Mas prefiro romance. Romance é a melhor coisa que se inventou nessa vida. (O escurinho do cinema vem depois). Os do século XIX, do XX, que maravilha! Vejam como vai longe minha vida. O romance faz a vida d’agente durar séculos.

Já a crônica, por ser um elemento do ar, voa leve, chuva passageira.

Há dias em que vou para a rua. Abro a porta para o mundo que está acontecendo. São os dias da crônica social. Outros é o oposto. Olho para dentro de mim. São os dias do romance. Gosto de escrever os dois igualmente. A mesma coisa que amar aos filhos: é diferente cada um, mas pesa igual na balança. Pode pesar somente algumas gramas, um quilo, uma arrouba, pode conter algodão ou ferro. Porém o peso é igual.

Hoje, meus leitores, é dia de romance. A escolha dos dias não é feita por mim. Com a fumaça, vem um anjo ou demônio e é ele quem me sopra ao ouvido por onde eu vou seguir viagem naquele dia. As vezes a escolha nasce do sonho da noite.

Os caminhos do romance são mais dificultosos. Botei prazo para ele, quis trata-lo como fazia com teses, livros e artigos. Matérias de contar. Porém mostrar é outra coisa, quase inteiramente distinta. De comum, só a escrita que se aprende no curso primário. Agora desisti. Ele, o romance, vai seguir seu curso, caprichoso como é. Espero que um belo dia me comunique: estou pronto, pode abrir a porta e me jogar no mundo.

Se pudesse, pedia mais um dia sombrio, que é o que mais combina com o mergulho que acabei de dar dentro de mim. Mas não. Às 5:35, com um atraso de meia hora, nasce o sol, com cara de quem veio para abafar na festa: uma faixa dourada de puro fogo entre nuvens escuras e mar brilhante de ondas rendilhadas. A areia, os morrinhos do Pina e o campo de futebol enlameado completam o quadro de um dia nascido para ser verão. Um lindo quadro. Fosse um pintor, com essa visão luminosa das 5:35 da madrugada?

Tão clara a faixa de sol, salpica passadas nas águas rasas do mar quando a onda passageira volta para o oceano. E faz nascer um filho seu, sol, no pedacinho de terra molhada que a onda deixou por um breve tempo. No campo de futebol, o que vemos na foto lembra restos de neve.

Agora, 6:45, retornou o tempo nublado. Fui.

Luzes da noite

22 de fevereiro de 2018

Caminhei hoje à luz artificial da eletricidade. 4:30 da madrugada. Jameson, o porteiro da noite, é a primeira pessoa que encontro nesse dia que ainda dorme. Responde ao meu bom dia como se dissesse, Dona Teresa, espere mais um pouco, deixe o dia clarear. Nada diz. Abre a porta e me deixa sair.

Ao acordar, da janela vira um caminhante no calçadão. Por que não eu? Pensando bem, não é a primeira vez. Só que da outra, passei pelo quintal do velho, meu vizinho de frente de casa, lugar seguro, e andei menos que cinco minutos até chegar às jangadas, outro lugar seguro. Se Jameson toma conta de mim, imagine os pescadores, homens do mar, apóstolos da natureza!

Os homens gostam de tomar conta das mulheres, protegê-las. É da aprendida natureza deles, de pai para filho.

O caminhante já estava longe quando atravessei a rua totalmente deserta. Calçadão deserto. Enquanto caminhava, na avenida passaram três motoristas conduzindo ônibus vazios, certamente saindo da garagem para seus pontos. Dão-se ao luxo de usar as exclusivas faixas da aristocrática avenida Boa Viagem. Serão filhos de Iemanjá. Pedem a sua bênção para mais um dia, Proteja, minha mãe, os passageiros igual sardinhas em lata, livrai-me de algum conserto de rua, manifestação de protesto, ladrões de carteiras e celulares. Livrai-me, senhora, de todo mal, Amém.

Todos os dias um motoqueiro evangélico passa em frente ao meu prédio  anunciando a hora certa, 5:30. No Terceiro Jardim, onde faço alongamentos, serão 5:25. Estou no final da sessão e lamentei não ter encerrado um pouquinho antes. Como já fiz outras vezes, teria acenado com o braço inteiro e sorridente, retribuindo o cumprimento matinal dele.

Os bons dias da madrugada alta são mais calorosos do que os da sociedade doente, que ainda não começou seu desfile pelo calçadão. Andar como prescrição médica é sinal de doença do nosso tempo. Antes do automóvel e do medo da rua, caminhar fazia parte da vida. Saia-se de casa para trabalhar, tomar transporte, bonde, ônibus, fazer compras, levar meninos à escola, ao parque.

Morando em Boston, sem carro, voltei a experimentar esse caminhar simplesmente para viver. Era outono. Depois que meu filho saía para a escola perto de casa, já estava a postos para ir à Universidade. No caminho para o ponto do metrô, que em Brookline era em trilhos descobertos, passava por uma praça onde sempre estava sentada uma velhinha. No segundo dia, trocamos sorrisos. No terceiro, sentei-me a seu lado. Como fôssemos velhas conhecidas. Velhos falam pausadamente. Nada melhor para quem tateava no inglês. A amizade durou até o frio do inverno. Aulas de inglês para mim. Um convívio caloroso para nós duas. Quem sabe, não fui sua filha?

Um dos brasileiros que entrevistei em Framingham, outro município da região metropolitana de Boston, mais afastado e pobre que Brookline, dizia-me, “Professora, um velhinho do asilo onde trabalho me chama de primo. E acha mesmo que sou seu primo”. Esse foi um dos nichos de trabalho dos brasileiros imigrantes: o do calor humano. O outro, da limpeza de casas, com o cuidadoso asseio das mulheres mineiras. Esse é o Brasil profundo, que descobri proseando com aquela gente longe de casa.

Eita, entrei de novo em atalho. Desculpe, leitor. Estava no calçadão de Boa Viagem. Acabou meu tempo, mas isso é uma prosa com amigos queridos, dessas conversas que perdem o prumo e não acabam, levantamos das cadeiras, continuamos na porta da sala, do elevador. Deixa o elevador descer que preciso terminar o que estava dizendo.

A luz elétrica, feita pelo homem, é uma maravilha. Essas do calçadão aqui de Boa Viagem, nem se fala. E sabida? Só apaga quando o sol vem ofuscá-la. Quando abandonei o brinquedo infantil que me serve de academia de ginástica, ainda uma das quatro lâmpadas do poste de rua esperava que as cores rosa claro, cinza e azul bebê do céu dessem lugar ao amarelo e ao encarnado do sol que todo dia nasce para colorir o mundo.

No dia que puseram de pé o primeiro poste da Chesf no quarteirão de minha rua em Garanhuns, poste de concreto, irmão rico daqueles pobres de madeira, não fomos à escola. Meu pai decretou feriado na nossa casa. Eu cursava o quarto ano primário e minha irmã, a demandante do decreto, o segundo.

Horários do dia

23 de fevereiro de 2018

Estabeleço para mim horários que não são ditados de fora. Nem do despertador, nem de programa de televisão, nem sequer da luz do sol. Acordo-me quando meu corpo acabou de descansar de mais um dia. Às vezes, quando a jornada foi pesada, o corpo pede mais sono. Como sei que o meu pede ao menos seis horas, durmo cedo para ter o brinde do sol nas madrugadas.

Ontem, com as chuvas que chegaram aqui no Recife antes de março, o sol começou a farrapar. Hoje também. Escondeu-se em uma nuvenzinha de nada, o safado, a última que sobrava cinzenta. Só apareceu quando eu estava na academia do Terceiro Jardim. E me disse com todas as letras: Pensas que estou a teu serviço? Pensas que a Terra é o centro do universo, tu dentro dela, e eu circulando em volta? Enganas-te. Galileu descobriu o certo, embora por isso tenha sido condenado. Cuidado! No meu horário de dormir e acordar mando eu. Tu que se vires nas tuas caminhadas.

Ficou tão bravo comigo que logo mandou o mar encher. Eu teria que voltar pelo calçadão? Já com pleno barulho dos motores? Dei o troco, ah, dei. Não sou de sair apanhada. Nem do sol. Voltei para a areia da praia. Em minha direção vinham três simpáticos velhinhos da minha idade, dois homens e uma mulher. Com jeito de um casal e o irmão dele. Confirmei, O mar está enchendo? Sim. Posso me escorar em um de vocês para tirar os tênis? Ofereceu-se o do meio.

Voltei pela areia banhada por ondas intermitentes molhando os pés, as pernas. Mandei ás favas a recomendação de sempre caminhar usando tênis por causa da escoliose.

Até agora, como diria o suicida que pulou do décimo oitavo andar, à altura do décimo quarto, até agora tudo bem.