Quarta feira de cinzas

WhatsApp Image 2018-02-16 at 00.14.30

13 de fevereiro de 2018 – terça feira gorda

Ontem fui ao carnaval de Nazaré da Mata e dele conto daqui a pouco. Cronista social fica maluco no tempo de carnaval porque para ele é a estação mais quente de trabalho, é quando ganha mais dinheiro fazendo crônica uma atrás da outra.

Mas já tenho matéria de sobra para vários dias. Por isso não vou hoje à tardinha a um bloco lírico que sai da praça Maciel Pinheiro nem à noite ao Cinza das Horas. Na verdade, vou confessar um segredo: eu queria mesmo ir a este último para ter onde mostrar uma blusa de finíssima seda toda bordada em lantejoulas, comprada em um brechó próximo à Place des Vosges em Paris. É roxa. Na volta ao Recife, comprei para ela uma minissaia preta e usei no réveillon do ano atrasado, numa festa que foi um desastre.

Essa blusa precisa desencantar desse renascimento de parto ruim. Em que corpo terás nascido, blusa de segunda mão? Alguma bailarina de cabaré? No Moulin Rouge? Uma festa homenageando a cor roxa, fechando o carnaval na quarta feira de cinzas e ainda por cima com poemas de Manuel Bandeira, seria a ocasião perfeita para fazê-la renascer com alegria.

Contudo, o bloco Cinza das Horas será tarde da noite e, hoje em dia, só saio à noite em ocasiões muito especiais. Porque meu horário de dormir no monastério é entre nove e nove e meia da noite. Dormindo cedo, acordo entre três e meia e quatro da madrugada. Alcanço a noite escura e vejo o sol surgir. É a hora mais bonita do dia e só vale a pena perdê-la por algo muito especial. Principalmente porque é meu horário de momentear.

O carnaval de Nazaré da Mata ontem não me impediu de madrugar hoje. Noite escura, devasso minha casa. Nos sonhos, os espaços percorridos são o nosso interior. Nos devaneios é a mesma coisa.

Hoje me deitei na rede e transformei o terraço virtual – posto que não é aberto para a rua, mas uma extensão da sala – em uma espécie de recolhimento. Luzes apagadas, tomei de um castiçal de cristal, presente de minha irmã mais irmã porque em criança brincamos juntas, e coloquei, com vela acesa, numa mesa antiga, a primeira peça que comprei no Embu das Artes, quando morava em São Paulo. Acendi incenso dentro da caixa comprida de madeira chinesa própria para isso.

Além dessas peças, a mesa abriga uma caixa de madeira com tampo recoberto de vidro vermelho brilhante, presente trazido do Japão por uma orientanda, Elisa Massae Sasaki. A cada capítulo da tese que ela não conseguia entregar porque ainda não esgotara toda a bibliografia em português, inglês e japonês, Elisa se encontrava comigo no dia e horário aprazados com um presente. Completam os objetos da mesa uma bandeja de cerâmica, comprada no Mercado da Ribeira de Olinda, tão linda em sua pintura que não caberia dentro nenhuma fruta; e um vaso de gerânios cujas flores, em vermelho, fazendo par com o tampo da caixa e o abajur, estão hoje desbotadas.

Quando faço a ambientação de minha casa sigo o critério da beleza. Não podendo mudar nem construir paredes com a facilidade com que fazia na casa da Montanha, brinco com os adereços de meu apartamento como quem brinca de casinha. E um dia, como hoje, descubro significados. Nesse recanto de recolhimento, o norte quem dá não é essa mesa antiga; nem o banco de tábuas coloridas comprado de artesão em Tiradentes, que abriga um abajur vermelho; nem as três peças de madeira penduradas no teto, balançando ao vento – um Pégaso e duas sereias. Não são eles que dão a identidade à minha mais nova área de recolhimento. Mas sim os quadros na parede.

Estou deitada na rede. Lá fora e aqui dentro não está totalmente breu porque é forte a iluminação da rua, e, minha cortina, de tecido fino. Estou numa igreja. Vejo o bruxulear da chama da vela e a fumaça do incenso. Sinto o cheiro. Espio o primeiro quadro, encabeçando a mesinha antiga, defronte das figuras tailandesas que gostam de dançar ao vento. Uma delas, o Pégaso, trazida há muito tempo pelo autor do quadro.

Olho para a parede branca que representa a figura do pai. Meus filhos tiveram, pela minha mão, o amor do pai deles. Por isso, formaram-se homens completos. Triste do filho homem que renega o pai. Nunca encontrará seu lugar no mundo. O pai pode ser bêbado, malandro, jogador, vagabundo, mulherengo, nazista, doido, não importa. O filho lhe deve amor. Só assim se reconcilia com o mundo, mais cruel para os homens do que para as mulheres. A sorte é que, até morrer, mesmo que o pai já esteja morto, haverá tempo para essa reconciliação. Às vezes é a mãe separada do pai quem impõe a barreira. Coitadas! Perdoai-as, Senhor, elas não sabem o que fazem. Mas conheço pelo menos duas que foram sábias mulheres e, com todo desencanto que sofreram com seus homens, não afastaram deles seus filhos.

Desculpem, leitores. O momentear matinal às vezes me leva a desvios de onde inicio a caminhada. Cadê o carnaval? Terminei chegando antes à quarta feira de cinzas, escrevi mais do que é aconselhável em um blog, criei um oratório e entrei em intimidades mais próprias ao romance, que, evoé, corre solto junto a esse bloco. Agora, que transcrevo o momentear de hoje no computador, o corpo já pede cama e Nazaré da Mata fica para depois. E tem ainda mais carnaval esperando na fila.

No tempo dos tigres

WhatsApp Image 2018-02-16 at 00.21.27

11 de fevereiro de 2018

Um amigo paulistano, Ulrich Hoffmann, quando tinha casa em Caraguatatuba, onde passamos mais de um réveillon, costumava louvar o tempo nublado na praia. Pele muito clara, como a minha, usufruía melhor as delicias do mar e das caminhadas sem o sol abrasador do verão. Pois foi assim hoje cedo: um domingo que amanheceu nublado, após as chuvaradas de ontem. O que me permitiu um belo passeio, que conto daqui a pouco.

Ontem foi um dia muito especial no Recife. Há muito o Galo da Madrugada desbancou o Zé Pereira. É ele quem nomeia o sábado de carnaval. Tem Galo para todo gosto. Marília e Ronaldo, queridos amigos, fantasiaram-se com o motivo da bandeira de Pernambuco e, de tão bonitos, saíram nos jornais locais. Não sei se algum outro estado da federação tem assim forte e arraigado esse cultivo à bandeira. A nossa é a da Revolução de 1817 e eu acho que o certo seria Frei Caneca ser nosso herói nacional, pois foi o único movimento separatista da Colônia que ultrapassou a conspiração e atingiu o processo revolucionário de tomada do poder.

A foto que ilustra a matéria de hoje é a praia do Pina, defronte de minha janela. Vejam que não tem nenhuma barraca e apenas um caminhante, às 8 horas da manhã. O dia também amanheceu nublado, porém logo veio o sol, como hoje, e, mesmo assim, a praia ficou deserta todo o dia. São os únicos do ano assim: o dia do Galo, no sábado de carnaval, e o dia de Nossa Senhora da Conceição, em oito de dezembro. O povo estará no centro da cidade ou no morro da Conceição.

Hoje saí de casa às 5:30, já atrasada. Tomo o caminho de Brasília Teimosa. Ao chegar à praia de lá, aos fundos do Iate Clube, o tempo continuava nublado. Sigo em frente e vou até o final do calçadão. A avenida que ladeia o calçadão se chama Brasília Formosa. Acabada essa avenida, terminal dos ônibus, acabam-se as casas e vejo a margem do rio Pina à minha esquerda.

Como se chamaria esse rio no tempo dos índios? Porque Pina era o sobrenome de um judeu, chegado com os holandeses, que veio se estabelecer com sua venda dos lados de cá, atravessando desde a Ilha do Recife de barco. Deu nome ao lugar e, de tão poderoso, também ao rio.

O mar agora já não é a brabeza de seu encontro com as pedras ou com o muro de tijolo. É uma doce lagoa para onde virão daqui a pouco os banhistas, para as mesmas sombrinhas, cadeiras e mesas de plástico das praias do Pina e Boa Viagem. Adiante, a Casa de Banho, que virou outra coisa.

Pina, Casa de Banho, tem um tolete que é do teu tamanho. Quem, do Recife, não sabe essa modinha? Foi a primeira coisa que minha mãe me disse quando eu comuniquei que havia comprado um apartamento no Pina. Claro que alguém já deve ter contado a história de tão desabonadora musiquinha. É do tempo da escravidão.

Naquele tempo, não se sabia o valor do mar. Os senhores de engenho, alguns pensando no rio Tejo ou no rio Douro, construíram suas casas senhoriais à beira do Rio Capibaribe, com frente para o rio. Em pequenas cabines de palha fechadas, tomava-se banho. Separados, mulheres e homens. De manhã cedo, as escravas de casa descarregavam os penicos em grandes potes de barro, que eram levados por escravos homens para serem derramados no mar. Esses escravos eram chamados tigres. Pior ofício da escravidão: carregar bosta de branco.

Não podiam despejar na área do Porto do Recife. Lá, estavam sendo descarregados seus novos irmãos da África, em troca das sacas de açúcar exportadas à Europa. Andavam mais um pouco, atravessavam a Ponte Giratória (com atenção à hora em que ela estaria se abrindo, aquilo era um terror) e despejavam a merda toda na praia do Pina.

Foi tempo que algum português descobriu que as águas do rio Pina eram ainda melhores que as do rio Capibaribe. Construíram a Casa de Banho. De um lado, o rio. Do outro, o mar bravio batendo nas pedras. Lugar de grande beleza. Como só viam o mar ao longe, nunca repararam no que era trazido de volta, que o mar, terreiro de Iemanjá, a mais asseada das Orixás, nunca gostou de nada fedido em sua casa. Mandava de volta à praia a sujeira dos brancos.

No dia em que os ricos daquele tempo descobriram que as águas do mar eram ainda melhores para tomar banho do que as do rio, deram de cara com sua própria merda. E foi preciso acabar a escravidão, os tigres, para, depois de muito tempo, construírem um emissário submarino que trouxe de volta a pureza das águas do mar à praia do Pina.

Fosse um horário de recreio

GALO

10 de fevereiro de 2018

Foi um amigo quem me trouxe a minha mãe de volta, em plena abertura do carnaval. Atravessávamos a rua, na Ilha do Recife, para alcançar a Ponte Buarque de Macedo. O guarda controlava carros e pedestres, pois o sinal de trânsito não seria suficiente para tanto movimento. Olhei para a autoridade, sorrimos um para o outro, sem palavras. Ele sabia que pedíamos a vez. Que veio rápido, através de seu apito.

Foi aí que segurei a mão de Humberto e ele me disse, com entonação paternal de voz: me dá a mãozinha para atravessar a rua. Ele é um homem que não desperta a mulher que sou. Mas a menina. Talvez por ser artista, criador. É capaz de criar sentimentos.

Fato é que acordei hoje com ela, dona Otávia. Estamos nós duas sozinhas numa ampla sala, como fosse um auditório sem cadeiras. Ela, minha mãe, morta em 2010, tem às mãos uma blusa que ainda não foi usada. Não reparo no modelo nem na cor. Apenas sinto daquela blusa uma maciez que sobe do tato para o coração. Estávamos naquele imenso salão para cortar o fiozinho de plástico que mantém o preço e a marca a uma roupa recém comprada. E procurávamos uma tesoura, porque esses fios de plástico costumam ser resistentes.

Uma felicidade comanda nossos movimentos na tentativa de cortar o fio.

Esse sonho saiu daquela mão dada para atravessar a rua. Voltávamos do bloco “Nem sempre Lili toca flauta”. Humberto, o artista que faz ano a ano a arte da camisa do bloco, vestia a deste ano. Eu não. Não faço parte dessa história. Cada bloco, aqui no Recife, tem uma história. Um grupo que se reunia regularmente num bar, tocava, ouvia música, gostava de carnaval. É fatal: dali nasce um bloco.

Não faço parte do Lili, como também não do Pisando na Jaca nem tampouco do Paraquedista Real. No tempo em que eles surgiram, minha história se passava em São Paulo. Mas gosto de carnaval, adoro: o colorido, o riso, a máscara, a música, o passo. Sem pertencimento a nenhum bloco, caio na folia.

Talvez por ser alheia ao nascimento deles, blocos de intelectuais, entro numas horas e, noutras, fico de fora, no sereno, espiando, matutando. Ontem, no Lili, foi uma decepção. Um palco, separado dos foliões. Modelo show, sem o conforto das cadeiras. Fomos procurar um bar na rua do Bom Jesus. Lá o garçom sugeriu que, para ter mesa boa, precisava consumir pelo menos uma garrafa de whisky. E mostrou a mesa vizinha, com o litro à mostra. Deixou, contudo, que ocupássemos a mesa mais afastada, quase empurrando a árvore da calçada. Sem ligar para a reclamação dele, “a senhora vai ocupar essa mesa e pedir só uma água de coco?”, sentei-me. Precisava descansar, depois de atravessar tão longo percurso, de meu carro até lá.

Ficamos só o tempo de eu tomar a bebida. Sem chamar o malcriado garçom, sem gorjeta, fui direto ao balcão e paguei o preço do produto, sete paus.

Somente então, fomos encontrar o carnaval do Recife. No meio das ruas sem automóvel, ao som do frevo tocado ao vivo com seus metais maravilhosos, com o povo misturado atrás da orquestra, brincando, rindo, tirando graça proibida fora do carnaval. É a nossa grande festa, a festa da liberdade. Acompanhamos dois Maracatus e um Frevo de Rua. Velhos, exaustos, voltamos cedo. Ainda havia a longa caminhada de volta.

Subimos ao apartamento de Humberto com vista magnífica para o rio Capibaribe e as pontes do Recife. Fotografei, com incompetência, o Galo da Madrugada, recém-nascido durante o dia na ponte de meus amores, a que mais gosto sem ser ela nem bonita: a Duarte Coelho. O amigo, um perfeito irmão, levou-me até meu carro estacionado na rua da Saudade, quase esquina com a Mamede Simões, ao lado do parque Treze de Maio, que já dormia àquela hora, nove da noite.

O meu Recife tem carnaval para todas as idades, da criança ao velho, os dois que se cansam mais depressa. Brincadeira de rua. Fosse um horário de recreio.

Brasília Teimosa

WhatsApp Image 2018-02-10 at 15.37.25

09 de fevereiro de 2018

A partir da crônica escrita ontem e publicada hoje na “Revista Será?”, “Joana, rainha do baile”, Diários do Pina passa a ser nomeado Crônica Social. Diários do Pina e BlocoMomentear são irmãos gêmeos. Crônica Social é a mãe dos dois.

O que faz um cronista social? Vai para as festas, os salões, reuniões, cinema, tudo o que é a matéria viva de seu ofício. Depois escreve. No meu caso, também faço de minha janela e das caminhadas pelas ruas, meu camarote de observação. Gasto mais tempo escrevendo e lendo do que nesses divertimentos, mesmo sendo eles todos de minha escolha. Só frequento o que aprecio.

A caminhada, por exemplo. Vejo tantos caminhando por obrigação, por receita médica. Rosto contrito, passo apressado. Ou se distraindo em conversas, ouvindo música. Para mim, caminhar é um passeio diário. Não tenho pressa. Se a maré está baixa, aí é o paraíso: o mar e o vento soberanos abafando qualquer barulho de motores.

Por esses dias, com a maré cheia, mudei minha rota. Vou na direção da Brasília, que é como os habitantes de lá preferem nomeá-la, Moro na Brasília. Para morar em Brasília, teriam que se deslocar para o Planalto Central. O sobrenome Teimosa, preferem ignorá-lo, pois isso foi apenas utilizado pelos planejadores urbanos à época de fundação do bairro, lá se vão décadas. Teimosa porque, à revelia do poder público, os pioneiros criaram o fato consumado. A Wikipédia diz que é a mais antiga ocupação urbana do Recife. Hoje, já tem toda uma geração nascida e criada lá.

Caminho então pelo calçadão na direção de Brasília Teimosa, o bairro vizinho ao Pina, conectado ao norte diretamente com os arrecifes da área do Porto Velho do Recife, hoje, terreiro de algumas das esculturas de Francisco Brennand. Ao início do calçadão, um posto policial separa os dois bairros, Pina e Brasília. Já a separação do Pina em relação à vizinha Boa Viagem tem outros marcos: o terreiro de Iemanjá para a festa de oito de dezembro; e o pé de Castanhola mais frondoso, onde os casais se escondem no banco de trás para namorar no escurinho da noite.

Ao sair do calçadão e entrar na Brasília, vou ladeando as casas, restaurantes, lava-jato, que espiam do outro lado da rua o ameaçador edifício em vidro ray-ban. Foi corajoso o empresário, que precisou, para adentrar tão sólido terreno construído em lutas e benzido pelo presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, depois que as palafitas foram transformadas em um calçadão mais aprazível do que o do Pina-BoaViagem, sem que ninguém precisasse mudar de bairro. Foi corajoso, repito, esse empresário. Nomeou socióloga para amenizar a invasão e entrou.

Mas o bairro continua intocável. Ao andar pelas calçadas esburacadas e sem manutenção (o que não é privilégio de lá), quem nasceu em qualquer cidade do interior de Pernambuco lembrará sua infância, sua primeira juventude, antes de vir completar os estudos na capital. Becos, ruas estreitas, pessoas na rua. Lá, as crianças não precisam ficar entocadas nas prisões gradeadas dos edifícios. Precisam apenas saber das companhias, para não andar com almas sebosas, a ameaça que ronda qualquer bairro da chamada periferia.

Depois que passo pela praça São Pedro, homenagem de velhos pescadores ao padroeiro dos que ainda hoje fazem da pesca o seu ofício, já avisto de novo o mar. Num dia útil, caminhando ida e volta até os fundos do Iate Clube, onde acaba o mar bravio e começa uma prainha minúscula, o ruído monótono e embriagador das ondas quebrando nas pedras e na murada protetora só foi interrompido por poucos motores: seis automóveis particulares, um taxi, quatro motos, dois ônibus, muitas bicicletas. Estivesse no calçadão de Boa Viagem?

Em compensação, os caminhões da prefeitura não recolhem os sacos de lixo à noite nem de madrugada, como fazem em BoaViagem-Pina. Ficam expostos na beirada do calçadão, que lá não tem luxos de lajotas ecológicas: é de cimento, como as lajes das casas para os churrascos domingueiros. Paraíso para os pombos, os únicos que, comigo, fazem o percurso inverso do lugar dos ricos para o dos pobres. Para mim, em favor da beleza e do silêncio melodioso do mar. Para eles, pobres aves urbanas, em favor de um bom prato de comida.

Outro dia, em outro momentear, dei um conselho ao prefeito que tinha a ver com o lixo. Hoje faço o mesmo para um candidato a vereador. Bom, só daqui a dois anos. Prezado candidato a vereador: use toda sua verba de campanha para realizar suas obras antes de virar vereador. Com auto-falante pelas ruas, como costumam fazer em épocas eleitorais, não prometa. Faça. Recolha o lixo e faça uma campanha pela limpeza pública. Todos gostarão de ver como se sentem melhor com as ruas limpas e cheirosas. Diga e faça isso na sua campanha, e se empenhe seriamente na limpeza das ruas de onde você quer tirar votos para se eleger.

Apresentação

05 de fevereiro de 2018

Nasci com fantasias de carnaval porque no Recife. Aqui, qualquer instituição ou publicação, para ser levada a sério, cria seu próprio bloco de carnaval. Por isso preferi ser chamada de bloco e não blog.

Hoje é dia de minha apresentação a sério, para além da biografia burocrática que está escrita abaixo de meu retrato. Primeiro, os agradecimentos.

Carlos Guido de Araújo tem sido meu assistente para assuntos de informática e tecnologia em geral. O tanto dos problemas que resolve é maior do que o preço das aulas. Quase todos de minha geração que, por necessidade de ofício ou por lazer são obrigados a usar computador e celular inteligente, tornam-se jovem-dependente. Pode ser um filho, um neto, alguém que decifre os vários e infernais comandos. Eu, chego ao cúmulo de temê-los. Quando decidi criar um blog, conversei com Carlos e ele, dizendo que é a coisa mais fácil desse mundo, prontificou-se a fazer para mim. Igual fosse um filho, um sobrinho: de graça. Ensinou-me como postar e disse o mesmo: “é fácil”. Eu consegui. Gastando dez vezes mais tempo que ele, coloquei no ar uma matéria e a respectiva fotografia. Que felicidade! Mas alegria de pobre dura pouco. Mando os textos e as precárias fotos que eu mesma providencio, Carlos posta. Ufa!

O bloco só saiu à rua porque ensaiou bastante. A “Revista Será?” foi o espaço onde publiquei as primeiras crônicas. Algumas boas. A maioria, sofríveis. Além disso, na divisão de trabalho entre os editores, coube-me a revisão dos textos e a seleção do que publicar. Com isso, exercitei aptidões úteis para quem estava em treinamento para ser escritora. Contudo, com o isolamento dos dois anos que morei na Serra da Mantiqueira, com sinal precário de internet, tive que sair do Conselho Editorial. Permaneci na revista como colaboradora. Nessa condição, tenho publicado quinzenalmente uma série de crônicas nomeadas “Diários do Pina”.  A revista não comportaria o ritmo de minha escrita, que se desdobrou no Bloco Momentear.

Nos últimos dois anos que morei em São Paulo, criamos, Flora Gonçalves e eu, um grupo de leitura, principiando com Miguel de Cervantes e depois Guimarães Rosa. Ao retornar ao Recife, encontrei na Oficina Literária Clarice Lispector esse espaço. Sob a coordenação de Lourdes Rodrigues, descobri novos autores, reli outros, e fui intimada a escrever. Não queria publicar nenhum dos meus contos nas duas primeiras coletâneas, por incipientes. Porém, num certo ponto da escrita de meu romance, um insight decisivo para o enredo estava lá, em um dos contos. Precisei tão somente retirar uma capa sob a qual estava encoberta a personagem e lá estava ela, nua, linda! Afinal, não é mesmo essa a missão de uma oficina de literatura? Preparar escritores?

Last but not least, um impulso decisivo para minha febre de escrever nasceu com a participação em um grupo de leitura da obra de Gaston Bachelard. Sob a batuta de Sílvia Laurentino, buscamos nesse filósofo inspiração para devaneios e criação artística.

Depois dos agradecimentos, a dedicatória. A do romance já está pronta antes dele chegar a termo e será conhecida a seu tempo. Os Diários do Pina, à belle soeur Maria del Rosário Suarez Alban. Esse blocomomentear, dedico a meus filhos Miguel e Pedro.

O mar tem ruas e avenidas

WhatsApp Image 2018-02-03 at 21.25.01

Sexta feira, 31 de março de 2017

(postado em 03 de fevereiro de 2018)

4:15 da madrugada. Ainda é noite clara. Os potentes holofotes dos altos postes de cabeção de ET iluminam o calçadão e a avenida de um lado, os campos de futebol, o quintal de seu Elias e a praia do outro. A não ser em noites de festa, como a da lua grávida de 14 de novembro do ano passado, nunca caminhei sozinha sem a luz do dia.

Atravesso a avenida e nem sinal de automóvel. O velho ainda dorme. Meus passos a quarenta centímetros de distância de sua cama não o despertam. Sigo para o outro lado do muro invisível. Para o lado onde são soberanos o mar e o vento. Tempo de lua nova, as águas de Iemanjá estão bravias, brigando com meus pés. Pelo tempo que saí de casa, serão 4:20 quando alcanço as jangadas. Os pescadores já estão a postos, em prosa animada, como são as prosas dos pescadores na madrugada.

Acompanho os preparativos da viagem. Afastada dele, a jangada na qual estou sentada é nua de apetrechos. A vela deitada, só seria usada em emergência. De casa os pescadores trazem um saco com a rede, a corda, a âncora, a galéia. Desde quando esses mesmos instrumentos de trabalho? Porém o bem precioso, carregado com cuidados de sinhazinha, é o motor a diesel. É o último a entrar na jangada. Depois que ela já rolou de terra para o mar nos cilindros de borracha que substituíram os antigos troncos de coqueiros; depois que já está apetrechada com tudo o mais; e depois que um dos pescadores, usando apenas a sua força, ajudada pelo quebra-mar, manobrou a jangada, que entrou de ré, com a proa para frente.

Motor ligado, singram o oceano. Se eu fosse socióloga já saberia a história de vida de cada um, detalhes de seu trabalho, causos. Já teria um livro escrito. Como não sou mais, invento. Os dois que saem para pescar são pai e filho. O pai é moreno escuro. Está de bermudas, camisa de manga curta abotoada, boné. O filho é negro, camisa azul de mangas compridas e boné com aba protetora de pescoço. Ouço fragmentos da conversa que antecede a saída: levarão ou não o GPS?

No oceano existem ruas e avenidas para quem vive da pesca. Aqui pela redondeza do Pina há sítios chamados Bola, Torrões, Faei, Lana do Avião. Pai e filho estarão sozinhos, em perfeita divisão de trabalho, na qual o velho emprega o seu saber e o jovem a sua força. Essa equação se inverte, a depender do que estarão operando na embarcação. Fosse o GPS? Vejo-os se afastarem. Em algum momento irão abastecer a jangada com mais um apetrecho da pesca: a isca. Presente do mar.

Só podiam ser pescadores os primeiros apóstolos, aqueles que seguiram um visionário que se dizia filho de Deus e estava no mundo para redimir os pecados e trazer a vida eterna. Havia irmãos de sangue naquela irmandade. Não pai e filho, como esses que vejo partir. A saída é esperança e incerteza. Poderá até ser vida eterna.

Espero o sol que se retarda. Os holofotes projetam a sombra das jangadas para a frente. Com o mar cheio, as ondas alcançam as suas sombras. Sentada no banco da jangada, olhando para o mar, também a minha sombra é projetada à frente. Com a luz do sol, estaria atrás de mim. Nunca vi. Com a luz dos holofotes, as ondas lambem a sombra de meus cabelos, de minha cabeça, pescoço, orelhas.

O sol hoje vai demorar a aparecer. Volto para casa com os primeiros claros de azul e cor de rosa no céu. O calçadão ainda está deserto e a avenida silenciosa.

 

Lutador

WhatsApp Image 2018-02-03 at 21.31.16

Terça feira, 04 de abril de 2017

(postado em 03 de fevereiro de 2018)

Hoje, na caminhada madrugadeira, alcancei a última jangada saindo para pescar. Os rolos de canos que lhe servem de trilhos eram manuseados por três homens, que a empurravam da areia ao mar. Um deles não é pescador. Porém jamais falta à saída das jangadas. Está sempre a postos, ajudante, igual um servente de pedreiro. Melhor: um funcionário da estação e não maquinista do trem.

Dois seguiram ao alto mar. Ele permaneceu em terra. Às vezes o encontro correndo, com seu boné com a aba para trás, a desafiar os raios solares em uma pele do corpo e sola dos pés curtidos. Tem estatura média, musculoso, o corpo ligeiramente inclinado para a frente e as pernas arqueadas de cavaleiro. Os outros o chamam lutador. Não sei seu nome. Como aqui não reproduzo entrevista, devaneio sobre uma que nunca houve.

– Por que me chamam de lutador? Já fui. Mas tomei uma porrada na cabeça e mexeu com o meu juízo. Não quis mais lutar. Perdi o gosto. Gosto de correr, como fazia no meu tempo de lutador, em treinamento. Pegue aqui no meu braço, moça, no músculo. Tenho sessenta e seis ano e esse é meu orgulho: meu corpo arresponde por um menino de trinta. Mas a barba e os cabelo tão aí pra mostrá o velho.

Fui chegando aqui, mais o povo da pescaria, e eles só me chama de lutador. Tem também outro homem que não é pescador e faz o mesmo que eu. Sempre precisa de gente na hora de embarcar. Fui ficando. Quem cuida dos rolo de empurrar as jangada sou eu. Eles conta com eu pra tudo.

Já fui ao alto mar, sim senhora. Mas isso, dona, tem ciência que passa de pai pra fio. Não sou do mar.

Se eu fosse rico, com a idade que tenho, ainda ia correr mundo. Ir pro mar atrás de peixe pra ganhar a vida? Não. Isso não é pra mim não senhora. Ir e voltar todo dia? Uma latomia. O que eu queria mesmo era pegar um navio desses grande, igual àquele que nós tamo vendo no alto mar. Viajar longe, os prazer todo do mundo que a gente pobre aqui nunca viu, não sabe o que é. Só pode ser bom.

Não tenho famia não senhora. Tem uma moça ali de trás que às vez passa por mim e me pede benção. Eu dou, não vou negar. É Deus quem dá. A mãe diz que ela é minha fia. Porque eu vou dizer uma coisa, dona moça, que sei que a senhora, pessoa de muita leitura, não vai inguinorar: eu só gosto de puta.

Aqui nesse Pina a minha força e disposição tem muita serventia. Meu dia começa, bem dizer, com os pescador. Minto. Começa na cama. Antes da muié pegar no sono, acendo um baseado. Nós fuma e nós fode. Essa bichinha com quem drumo agora me cativa. A peste ruim sabe botar os arreio, sabe dos agrado que home gosta. Eu não troco esses agrado por cachaça, como já fiz uma vez na vida. Foi quando mãe morreu. Aquilo me deu uma infelicidade e eu garrei a beber. Mas passou. Cachaça tira as força do home. E eu vou dizer uma coisa pra senhora, dona, esse é meu orguio na vida: minha força de home. Pro trabaio. Pra muié. Só fraquejei no tempo da cachaça, que não durou nem seis mês. A muié chegar a me mandar tomar a azuzinha? Foi aí que ela me pegou. Parei de beber. Fumar, graças a Deus, nunca fumei. Só o baseado, que esse é de lei: não tira minhas força pro trabaio e anima as brincadeira na cama. A muié gosta. E não falou mais em azuzinha, que isso é lá pros nego brocha que passa na cama dela.

 

 

 

Um domingo no Pina

28 de janeiro de 2017

IMG_0641

Não diria como o poetinha, “porque hoje é sábado”. Digo porque hoje é domingo. E em um domingo de sol no mês de janeiro, quando o carnaval já bate à porta querendo entrar, a praia é uma festa.  Hoje destaco duas, das que vi. Uma é prenúncio do paraíso. A outra é a entrada do inferno. Direi das duas.

O sol ainda estava escondido. Poucos caminhando na areia da praia. Em frente ao edifício Saint- Exupéry, o mar tem o mau costume de voltar da maré cheia para a baixa deixando restos de poça d’água, caminhos em superficiais sulcos da terra molhada parecendo as partes femininas, espelhos d’água. Vão até a ladeirinha da terra fofa. Ando então em longos trechos pelas águas, como o São Pedro de Paulo Vanzoline, que, para impressionar a pessoa amada é acompanhado de Santos Dumont, do velho Piccard e de Olavo Bilac.

Encontro, como em outras caminhadas, os de branco fazendo a formatura. Outro dia eram do curso de Serviço Social, de uma faculdade Joaquim Nabuco, na Avenida Guararapes. Dezessete, sendo apenas um rapaz na turma. Passei por eles na hora exata em que uma das moças fazia explodir, tal estivessem em um podium, uma garrafa de champagne. Os demais, com taças de plástico dourado. De costas para o mar, de frente para os fotógrafos. Hoje eram de um curso de Administração. Passei ao largo, ouvindo apenas palavras de ordem dos fotógrafos para que não perdessem a melhor hora do sol nascente.

Mais adiante, em frente ao Edifício Califórnia, cinco barracas de camping. Muitos jovens, alegres, que é palavra em inglês para designá-los. Puxei conversa com três que vinham do mar em direção às barracas. Lembrou-me uma cena em outro tempo, eu na idade deles, em um lugar frio e isolado. Voltava do banheiro e apressei o passo ao ouvir os primeiros tiros para cima de Fleury e sua tropa de doze homens armados. Queria alcançar o mais rápido possível os companheiros. Estávamos em Ibiúna. Chuva, lama, na pressa em chegar onde estavam os outros setecentos, caí na lama. Naquela hora, talvez pelo medo, achei que tinha morrido atingida por uma bala. Foram segundos. Levantei-me. Ficou no chão enlameado todo o dinheiro que caiu do bolso do casaco. Calçava um tênis num pé e um chinelo maior do que meu pé no outro.

Aqui, tudo ao contrário, os três jovens vinham alegres do mar para se juntar aos outros. Ficaram meio espantados quando lhes disse que o que faziam era bom e necessário, quase revolucionário: ocupar as ruas. E que eles eram corajosos o suficiente para enfrentar o medo, o ingrediente mais presente em nossa vida social desses tempos. Que voltaria depois, com meu celular para fotografá-los, a eles e às barracas, ao grupo todo. Assegurou-me um deles que estariam ali até pelo menos às oito horas da manhã e haviam chegado às dez da noite para um lual sem lua.

Voltei. Logo depois das sete, de carro, com o celular e duzentos reais na pochete. O sol já estava quente e meu corpo cansado o suficiente para me proibir de caminhar mais uma vez. Deixei o carro em uma das poucas vagas, porque hoje é domingo e vários grupos vão correr sob suas bandeiras e deixaram seus carros estacionados em quase todos os espaços de Segundo Jardim. Passei por todos o mais rápido que pude para chegar aos das barracas de camping.

Lá estava a maioria deles. Porém apenas uma barraca. Os que conversaram comigo há uma hora não mais. Uma única cadeira de praia ocupada pelo mais gordo, moreno, cheio de graças. Cedeu-me a cadeira para eu fazer as fotos. Expliquei do bloco, um deles anotou o endereço. Posto a seguir a melhor foto de vocês, meninos e meninas alegres, como prometi. E quero tê-los como leitores de meu bloco. Vocês, mais do que muitos outros leitores, entendem perfeitamente o que é momentear. Até apontaram os que mais momenteiam. Ah! Que encontro alegre tivemos nos poucos minutos que fiquei com vocês.

Na volta, fotografei os que se agrupavam embaixo de toldos com os nomes de suas bandeiras, ao som de frevos de carnaval. Nada melhor que frevos em janeiro, em fevereiro, em março, o ano todo, como diz o mais velho programa da Rádio UFPE, O tema é frevo.

Num micro-ônibus com o nome de um vereador, parado junto ao meu carro estacionado, o motorista me pergunta se eu não quero passear pela cidade, que ele acabara de trazer um grupo e iria buscar outro para passar o dia na festa do Segundo Jardim, que hoje tinha também a saída dos corredores. Não se importou que eu tirasse fotos.

O inferno não começou nesse domingo. Principiara desde a quinta-feira, num palco improvisado na barreira do Pina com Brasília Teimosa. Fui perto do palco. No sábado, em pleno horário de praia, não passava de meia dúzia as pessoas assistindo ao show ao vivo. Uma moça de shorts justinho, em uma barraca afastada do local, fazia coro aos músicos pela parte de seu corpo mais valorizada em nosso país. Somente ela, pois, no palco, a pobre banda e o cantor recitavam palavras com pouca melodia em não mais que duas batidas que dizia: polpa da bunda, na bunda, da bunda, da polpa, da bunda.

Uma dúzia de seguranças vestidos de preto, para guardar a meia dúzia que passava naquele momento pela areia, olhando de viés o que se passava no palco. Procurei o responsável. Apontei para os letreiros em cima do palco e lhe perguntei, incomodamente, Então, é isso cultura? Patrocinada pelo Ministério da Cultura? Ele olhava para o outro lado. Chamou um segurança e principiou uma conversa, sem me dar ouvidos.

Quanto teria recebido de cachê cada um daqueles pobres músicos? Quanto ficou no bolso de toda uma escala desde quem ganhou a emenda parlamentar até o organizador último, aquele ali, com cara de malandro rico, desdenhando de uma maluca que tem a ousadia de chegar perto dele com perguntas impróprias?

Entre 2008 e 2009 fui presidente do Centro Josué de Castro, aqui no Recife. Ainda bem que vinha de uma experiência bem sucedida de negociadora de projetos no Cebrap, em São Paulo, com a Interamerican Foundation, com a Novib, com órgãos do governo. Ou teria sucumbido minha auto-estima, ao cabo de dois anos de tentativas infrutíferas de aprovação de projetos nas negociações de financiamento. Apenas um deles foi aprovado parcialmente, para recuperar o acervo de Josué de Castro, sob a batuta da saudosa Francisa.

Cheguei a viajar mais de uma vez a Brasília, aos corredores do mesmo Ministério da Cultura que ora financia quatro dias do mais puro lixo. O salva-vidas concordava comigo. Fosse uma boa MPB, um frevo. Imagine o Maestro Spock? Que maravilha! Aí sim, juntaria gente. O povo gosta do que é bom.

De nada adiantou minhas viagens a Brasília. Uma loura, dessas de quem se pode dizer que é gostosa, olhando a papelada sem nada entender, prometeu examinar um dos projetos com carinho. E ficou por isso mesmo. Com as negociações do final do ano passado entre o poder executivo e o legislativo, aumentaram as verbas para as emendas parlamentares. Salve, salve, pátria amada!

É carnaval

WhatsApp Image 2018-01-27 at 08.09.26

25 de janeiro de 2018

Momentear quebra limites entre os vivos e os mortos. Ontem meu devaneio foi com alguns que já se foram. Bom reencontrá-los.

Quando Zé Hamilton quis me apresentar a seus ancestrais em Pontevedra, na Espanha, antecipei-me ao verão europeu. Levei-o para conhecer Bezerros. Ficamos na janela alta da casa de minhas tias, qual um camarote, olhando a festa de rua. Foi na passagem de ano de 1977 para 1978. Meia noite, apagaram-se todas as luzes da cidade para voltarem a se acender depois da queima de fogos. No alto da Igreja Matriz, as luzes com o ano novo substituíram o velho.

Sempre achei que o ano novo não entraria em cena sem esse ritual. Acabou-se. Novos ritos, hoje carregados de medo da rua, outrora espaço de cidadania.

Descemos à rua. Hamilton ficou menino de seis anos, quando viveu e aprendeu a ler com um professor em Gajate, aldeia de Pontevedra. Encantado, olhava os tabuleiros de alfenim (massa muito branca de clara de ovo e açúcar a que se dá ponto especial) ricamente embrulhados em papéis de seda coloridos. No lado de trás da igreja matriz, circulavam os matutos chegados da roça para a festa, vestindo roupas novas, calças azuis de alvorada (que é pra Matuto não andá nú, na voz de Luiz Gonzaga) tomando cachaça com a melhor carne de caça assada na brasa. Pintor nas horas vagas, seus olhos exultavam com o colorido das ruas que, em devaneio, levou-o de volta à velha Espanha.

Enquanto estou momenteando, o mundo pega fogo. Mesmo ontem, continuei minha recusa em ver televisão, ler notícias. Impus-me retiro e cumpro-o com prazer. Não acho que vale a pena trocar Marguerite Duras e Henry Miller, meus atuais companheiros de cabeceira e rede (não a social, a de balançar), por qualquer fragmento do que se passa no mundo. Alimento meus escritos com boa literatura.

Contudo, esse mundo dividido por uma cerca intransponível me chega às escondidas, sem que eu tenha lhe dado permissão para entrar na minha casa. Abro uma mensagem de whatsapp e lá está o discurso de Lula ontem. Ouço e vejo atentamente. Continua reduzindo a política brasileira à vulgar dicotomia entre bons e ruins, nós e os outros, nós e a elite. Não é a ideologia que transmite o calor de suas palavras ao falar sobre cada feito de seus governos. Suas palavras são de tão forte penetração popular porque ele sabe onde busca-las: em seus sentimentos e emoções de criança, esses que carregamos em nossos sonhos, no mundo onírico. Uma inteligência privilegiada, aperfeiçoou, com o poder e o mando, essa capacidade de comunicação. Não por nenhuma técnica de discurso, mas por ter vivido e sofrido as carências dos pobres, Pau de Arara de Garanhuns para São Paulo.

No maior comício pelas “Diretas Já”, na praça da Sé em São Paulo, calhou de ficarmos arrodeadas, eu e uma amiga, de jovens petistas que vaiavam Franco Montoro, Ulisses Guimarães e quaisquer outros que não fosse Lula. Exaltei-me, fiz discurso sobre democracia, eles nem ligavam. Desisti. Quando Lula pegou o microfone, porém, fiz coro aos jovens ao meu redor, ainda mais entusiasmada do que eles, gritando: “Aí, conterrâneo.” Meu Deus, que fenômeno de comunicação!

Ontem, na telinha de meu celular, vendo e ouvindo o discurso de Lula, reportei-me ao O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. A história, quando se repete … Lula ainda é líder carismático, o melhor que tivemos, par a par com Getúlio Vargas. Cai como uma luva no magnífico tratado de Max Weber. Porém, tomou para si o que é do povo, numa manobra digna do melhor jogador de xadrez. Pois às conquistas do povo ele deu um empurrãozinho, sem dúvida, mas foi antecedido por tantos. Quem são os outros, cara pálida?

Os brasileiros pobres, aos trancos e barrancos, vão encontrando seu lugar na sociedade. Por muitos fatores. Inclusive o pertencimento a uma religião, às igrejas evangélicas. Através delas, são todos irmãos, trabalhadores e bandidos, outra dicotomia cravada não pelo discurso, mas pela própria sociedade. Essa irmandade nada tem a ver com a Teologia da Libertação, com os intelectuais libertários de redes sociais. É ali, na cotidiana luta pela vida, nos ônibus lotados, na solidariedade dos hospitais públicos. “Essa é minha cara”, diz o Brasil. Dirá nas eleições presidenciais desse ano. E ninguém de bom senso se atreveria a dizer como, a essa altura do campeonato.

São Paulo é outro país não apenas pelos seus diferenciais de riqueza, mas também porque possui uma ampla classe média. A classe média da cidade de São Paulo é um colchão que se basta. E o Recife?

Aqui ficamos, tais os coqueiros e castanholas da beira mar do Pina e Boa Viagem: imprensados. Eles, entre o calçadão e a beira mar. Nós, entre vestígios da raiz maléfica da cana de açúcar e a miséria espalhada em esgotos fétidos, calçadas e ruas esburacadas, becos ameaçadores. E a classe média, com a desgraça colada à sua porta, foge do povo como o diabo da cruz.

Domingo passado fui à estréia de mais um bloco de carnaval, “Eu acho é Graça”, parodiando um seu antecessor mais antigo de Olinda. Ao final, enquanto a orquestra ainda tocava em frente a um restaurante da rua que dá nome ao bairro das Graças e ao bloco, de cansada, sentei-me na beirada da calçada e fiquei observando as pessoas dos joelhos para baixo. Tivesse um neto de três anos de idade (ah, quem me dera!), essa seria sua visão daquela pequena multidão. Algum sociólogo desocupado já se referiu aos calçados das pessoas como símbolos de classe. Uma senhora de antigamente recomendava às filhas solteiras que prestassem atenção aos sapatos dos pretendentes. Como os ricos eram poucos e sua prole feminina extensa, conformou-se com sapatos de funcionários e caixeiros.

Ali, sentada na beira da calçada, só vi sapatos de ricos. Antes, procurávamos pelo menos lugares com o cheiro do povo para nos enclavarmos. Depois, abandonamos os bairros da Boa Vista, de São José, em favor da Praça de Casa Forte, do Poço da Panela, das Graças. Quem sabe, terminaremos confinados em um navio em alto mar?

Momentear

coqueiro

24 de janeiro de 2018

 

Acabo de batizar meu blog. Nasceu parecido comigo. Na pia batismal havia dúvidas se meu nome seria Teresa Cristina, personagem de uma novela de rádio famosa à época; Maria Teresa, escolha de minha mãe; ou Marta, escolha do padrinho. O blog chega à pia de água benta com nomes que foram se sucedendo: Diários do Pina; Devaneios; Momentear.

O devaneio de hoje definiu: momentear. Gosto de verbos. “No princípio era o verbo”. Há muitos anos, desde que perdi contato com o Zé, andava pensando em como recuperar essa palavra. Até que, numa festa de confraternização 2016/2017, encontrei Pedro Leonardo e ele ma revelou. Escrevi na agenda para não perder de novo.

Baixou-me o espírito de Ariano Suassuna, de meu pai, integralista e, portanto, nacionalista: de bem querer para com as nossas palavras em português, a língua pátria. O meu não será blog e sim bloco. Estou botando meu bloco na rua. Não poderia haver tempo mais apropriado, com o carnaval começando a ferver em banho maria nas prévias, nos ensaios, nas costuras de fantasias e adereços.

Para a abertura do bloco, quero as cores vivas do carnaval. O encarnado, embora eu tenha sido, em fantasias de menina, a contra-mestra ou até uma simples pastora do cordão azul do pastoril. Carnaval é o elemento fogo em estado puro. As cores catalunhas amarelo e vermelho. Que para mim se transmutam na minha preferida, das portas e janelas de uma casinha pequenina que mora nos meus sonhos recorrentes – a cor de laranja.

Antes de desfilar nas ladeiras de Olinda, no Recife Antigo e no bairro de São José, o Bloco Momentear será inaugurado ao som de uma banda de música de cidade do interior brasileiro. Houve tempo, logo ao início da televisão, em que um dos canais de televisão – terá sido a Tupi? – promoveu um concurso de bandas de música. Ah! Que preciosidades trazidas dos quatro cantos desse imenso país, naquela época mais rural que urbano. Não somente na população que vivia no campo, como nas cidades do interior.

Escolho hoje, nesse concurso que ainda deve estar em algum arquivo de uma TV extinta, a banda de música de Bezerros.

Mocinha, vi meu pai enxugando as lágrimas ao ver a banda de música de Bezerros desfilar. Não estávamos no velho casarão dos avós, próximo à estação de trem. Meu pai havia alugado uma casa na rua da Matriz, onde passamos as férias. Pai, mãe, filhos, todos comprimidos nas três janela altas – subia-se degraus para entrar na casa – para ver e ouvir a banda. Meu pai chorava.

A mesma orquestra em outro dia, em ritmo lento, acompanhando a procissão. Músicas de igreja. Meu avô, meu tio-avô, parentes tantos que deviam ser metade daquele povo. Estou de novo na janela. Dessa vez, sozinha. A cabeça grande e toda branquinha de meu avô. A mulher logo atrás dele cantando, “no céu, no céu, com a mãe de seu Ioiô estarê, ei”. E a mãe dele é Emília.

1978. A Espanha acabara de sair da ditadura franquista. Minha lembrança de museus, o quadro Guernica e seus esboços. Boch, El Greco, Velázquez … um pano de fundo para o clima de liberdade que se respirava no ar. Um oásis para quem, como nós, estávamos de férias de um Brasil sujeito a uma ditadura militar. A Espanha era uma festa.

Mês de São João. Depois da Galícia – o berço do lado paterno de meus filhos – e de Madrid, Barcelona. Chegamos lá inocentes de suas fogueiras de móveis velhos na periferia da cidade e sua grande festa nas ruas centrais da cidade. Lá, tonéis com gelo, lotados de Cava, o espumante espanhol. Para acompanhar, a coca de São João, no formato de uma pizza individual, feita com farinha de trigo, açúcar e manteiga de porco, recoberta com frutas caramelizadas. Quantas cavas teremos tomado?

Saímos ruas afora. Orquestras para todo gosto. Escolhemos a que tocava Passo Doble, música de tourada. E como dançamos! Aos goles, às risadas. Aquilo era a banda de música de Bezerros. Ou seria o contrário?

Quando toda a música acabou e ainda tínhamos o precioso líquido na garrafa, nos demos conta de que já se encerrara o horário do metro. E não encontramos taxi. Minha coluna doía. Retornamos ao hotel ébrios, por uma rua larga por onde andávamos em volteios. Tirei minhas sandálias de salto. Com elas nos dedos, senti-me a personagem feminina de quem mais gosto, de todas que conheci até hoje: Sinhá Vitória. Nesse tempo, só existia Miguel, que ficara aos cuidados da avó e da tia. Para o quadro completo, ainda nasceria Pedro e a família estaria completa.

Tem gente que mantém a família a vida inteira, mudando apenas as personagens. Não conheço essa façanha. A minha se dissolveu com a morte do Hamilton. Pedro saiu para o mundo que pensava em mudar para melhor. Depois, incorporou-se como família à de sua mulher. Miguel virou monge budista. Mantemos intacta a chama viva do amor de mãe e do amor de filho. Porém os laços já não são de família e não saberia como nomeá-los. Só sei que me sinto neles confortável e tenho grande orgulho de meus dois filhos, do que eles se transformaram na vida adulta.

Voltemos à festa de inauguração do Bloco Momentear. Além da banda de música, quero também duas dúzias de foguetões. O cheiro de pólvora no ar, o pipoco nos ouvidos. Quando completar um ano, se não morrer precocemente como tantos irmãos seus nascidos no carnaval, aí sim, em vez dos foguetões que precederam sua entrada em campo, encomendarei fogos de artifício para serem disparados do meio do mar em frente ao meu camarote no sétimo andar.

Os leitores do bloco caberão na minha sala, haverá taças para todos e o espumante não será a cava nem a champagne nem o prosecco e sim o espumante brasileiro que anda criando fama. Depois de sete minutos de luzes coloridas no céu saídas do mar, subirei em um tamborete e farei um discurso, pois afinal todos gostarão de saber afinal o que é momentear.

Direi que é o que faço todas as madrugadas, em comunhão com a natureza, com meu corpo em exercícios e alongamentos e meditações e até orações. É viver o momento. É quase sinônimo de devanear. Porém mais profundo.

Momentear hoje, sem chuva, sem sol, foi sentir o vento. Vê-lo nas folhas vivas dos coqueiros. “Vento que balança as palhas dos coqueiro. Vento que encrespa as ondas do mar. Vento que assanha os cabelos da morena. Me traz notícia de lá.” Nas tempestades, o coqueiro ficaria inquieto. Mas hoje, ao vento suave do verão, seus dedos apenas me deram adeusinho a cada passo que o deixava em direção a outros, e mais outros, e mais outros, no coqueiral que ainda resta imprensado entre o calçadão, os morrinhos, privilégio do Pina, e a areia da praia.

Está batizado o bloco: Momentear. Não terá padrinho, mas duas madrinhas: Capitu e Sinhá Vitória. Sob a proteção de Oxum e Iemanjá.