
13 de fevereiro de 2018 – terça feira gorda
Ontem fui ao carnaval de Nazaré da Mata e dele conto daqui a pouco. Cronista social fica maluco no tempo de carnaval porque para ele é a estação mais quente de trabalho, é quando ganha mais dinheiro fazendo crônica uma atrás da outra.
Mas já tenho matéria de sobra para vários dias. Por isso não vou hoje à tardinha a um bloco lírico que sai da praça Maciel Pinheiro nem à noite ao Cinza das Horas. Na verdade, vou confessar um segredo: eu queria mesmo ir a este último para ter onde mostrar uma blusa de finíssima seda toda bordada em lantejoulas, comprada em um brechó próximo à Place des Vosges em Paris. É roxa. Na volta ao Recife, comprei para ela uma minissaia preta e usei no réveillon do ano atrasado, numa festa que foi um desastre.
Essa blusa precisa desencantar desse renascimento de parto ruim. Em que corpo terás nascido, blusa de segunda mão? Alguma bailarina de cabaré? No Moulin Rouge? Uma festa homenageando a cor roxa, fechando o carnaval na quarta feira de cinzas e ainda por cima com poemas de Manuel Bandeira, seria a ocasião perfeita para fazê-la renascer com alegria.
Contudo, o bloco Cinza das Horas será tarde da noite e, hoje em dia, só saio à noite em ocasiões muito especiais. Porque meu horário de dormir no monastério é entre nove e nove e meia da noite. Dormindo cedo, acordo entre três e meia e quatro da madrugada. Alcanço a noite escura e vejo o sol surgir. É a hora mais bonita do dia e só vale a pena perdê-la por algo muito especial. Principalmente porque é meu horário de momentear.
O carnaval de Nazaré da Mata ontem não me impediu de madrugar hoje. Noite escura, devasso minha casa. Nos sonhos, os espaços percorridos são o nosso interior. Nos devaneios é a mesma coisa.
Hoje me deitei na rede e transformei o terraço virtual – posto que não é aberto para a rua, mas uma extensão da sala – em uma espécie de recolhimento. Luzes apagadas, tomei de um castiçal de cristal, presente de minha irmã mais irmã porque em criança brincamos juntas, e coloquei, com vela acesa, numa mesa antiga, a primeira peça que comprei no Embu das Artes, quando morava em São Paulo. Acendi incenso dentro da caixa comprida de madeira chinesa própria para isso.
Além dessas peças, a mesa abriga uma caixa de madeira com tampo recoberto de vidro vermelho brilhante, presente trazido do Japão por uma orientanda, Elisa Massae Sasaki. A cada capítulo da tese que ela não conseguia entregar porque ainda não esgotara toda a bibliografia em português, inglês e japonês, Elisa se encontrava comigo no dia e horário aprazados com um presente. Completam os objetos da mesa uma bandeja de cerâmica, comprada no Mercado da Ribeira de Olinda, tão linda em sua pintura que não caberia dentro nenhuma fruta; e um vaso de gerânios cujas flores, em vermelho, fazendo par com o tampo da caixa e o abajur, estão hoje desbotadas.
Quando faço a ambientação de minha casa sigo o critério da beleza. Não podendo mudar nem construir paredes com a facilidade com que fazia na casa da Montanha, brinco com os adereços de meu apartamento como quem brinca de casinha. E um dia, como hoje, descubro significados. Nesse recanto de recolhimento, o norte quem dá não é essa mesa antiga; nem o banco de tábuas coloridas comprado de artesão em Tiradentes, que abriga um abajur vermelho; nem as três peças de madeira penduradas no teto, balançando ao vento – um Pégaso e duas sereias. Não são eles que dão a identidade à minha mais nova área de recolhimento. Mas sim os quadros na parede.
Estou deitada na rede. Lá fora e aqui dentro não está totalmente breu porque é forte a iluminação da rua, e, minha cortina, de tecido fino. Estou numa igreja. Vejo o bruxulear da chama da vela e a fumaça do incenso. Sinto o cheiro. Espio o primeiro quadro, encabeçando a mesinha antiga, defronte das figuras tailandesas que gostam de dançar ao vento. Uma delas, o Pégaso, trazida há muito tempo pelo autor do quadro.
Olho para a parede branca que representa a figura do pai. Meus filhos tiveram, pela minha mão, o amor do pai deles. Por isso, formaram-se homens completos. Triste do filho homem que renega o pai. Nunca encontrará seu lugar no mundo. O pai pode ser bêbado, malandro, jogador, vagabundo, mulherengo, nazista, doido, não importa. O filho lhe deve amor. Só assim se reconcilia com o mundo, mais cruel para os homens do que para as mulheres. A sorte é que, até morrer, mesmo que o pai já esteja morto, haverá tempo para essa reconciliação. Às vezes é a mãe separada do pai quem impõe a barreira. Coitadas! Perdoai-as, Senhor, elas não sabem o que fazem. Mas conheço pelo menos duas que foram sábias mulheres e, com todo desencanto que sofreram com seus homens, não afastaram deles seus filhos.
Desculpem, leitores. O momentear matinal às vezes me leva a desvios de onde inicio a caminhada. Cadê o carnaval? Terminei chegando antes à quarta feira de cinzas, escrevi mais do que é aconselhável em um blog, criei um oratório e entrei em intimidades mais próprias ao romance, que, evoé, corre solto junto a esse bloco. Agora, que transcrevo o momentear de hoje no computador, o corpo já pede cama e Nazaré da Mata fica para depois. E tem ainda mais carnaval esperando na fila.







