Edifício Santo Albino II

12 de janeiro de 2024

À publicação da crônica “Edifício Santo Albino”, recebi, mais que comentários, histórias, muitas histórias, a espichar o assunto com outras vozes. Hoje, passadas as festas e tendo o ano finalmente começado no Dia de Reis, o Edifício Santo Albino volta à cena.

O Alfaiate Arlindo – Lula Balta

Querido amigo Alberto Vinicius (Xanha): presente.

Oi Teresa. Aqui do quarto do hospital, onde estou desde segunda feira, li a sua crônica e relembrei a importância do centro do Recife nos tempos de nossa juventude. Da Guararapes, Pracinha, Dantas Barreto. De edifícios como o Trianon, o Almare (onde meu pai teve escritório) e do Santo Albino onde, além dos consultórios e da academia que você frequentou, existiam alfaiatarias (infelizmente uma atividade em extinção).

Entre os alfaiates, havia o Sr. Arlindo, ótimo profissional e um homem politizado, filiado ao Partido Socialista Brasileiro (meu pai foi um dos fundadores do PSB em Pernambuco). Ainda tenho roupas feitas por ele em tropical (também não se encontra mais) na década de 1990. O único terno que ainda tenho, foi feito por ele, para o casamento de meu filho caçula em 2001.

Para não perder a oportunidade de contar mais uma história nesse nosso grupo de música, vai essa de Seu Arlindo.

Ele era muito conversador e orgulhoso de sua clientela. Sob o vidro de sua mesa de trabalho, no último local onde funcionou sua alfaiataria (no bairro do Vasco da Gama), exibia vários cartões de visitas de gente importante que fazia roupas com ele (empresários conhecidos, políticos, etc.)

Aí pelo início dos anos 2000, meu irmão Abelardo foi lá em Vasco da Gama experimentar um blazer que Arlindo estava fazendo. Na prosa, sempre longa, o velho alfaiate comentou que tinha conversado muito com Pelópidas Silveira, sobre questões políticas do momento e outros assuntos. Abelardo saiu de lá pensando: Arlindo está passando do limite. Porém, quando encontrou o ex-prefeito poucos dias depois e perguntou se ele conhecia Arlindo, a resposta foi: claro, estive com ele há poucos dias e conversamos muito.

Arlindo já se foi há uns dez anos. E hoje é difícil encontrar um alfaiate; ainda mais difícil um tão competente quanto ele.

Saudade – Haidée Camelo:

Teresa, tua crônica hoje me trouxe melancolia.

Quando encontrava Alberto (Xanha), sempre nos abraçávamos e eu dizia: “A gente sempre se encontra nos lugares certos”. Ríamos os dois.

•⁠ ⁠Saudade.

A lembrança do Recife antigo… meu primo tinha consultório por ali. Também já se foi.

•⁠ Saudade.

Minha mãe gostava de passear a pé pelo centro da cidade aos domingos. Adorava ver as vitrines das lojas fechadas, os rios, as pontes, as igrejas, os cinemas… e havia calçadas naquele tempo.

•⁠ Saudade.

Hoje temos excesso de camelôs, de ladrões, de buracos, de descaso, de abandono, de medo, de impossibilidades…

•⁠ ⁠Indignação.

•⁠ ⁠Melancolia.

avenida guararapes – Sonia Marques

como uma caixa de chapéu

assim ele me pousava

no balcão do bar Savoy

– é sua neta, Romero?

um dos trinta perguntava

enquanto os demais sentados

erguiam os copos de chope

e eu quieta os admirava

sem saber que tudo aquilo

para Carlos então festim

viraria assombração

do que não há mais em mim

Dom Manuel – Teresa Sales

Conhecera o Recife em 1950. Naquele ano, com a mulher e os dois filhos, estavam a caminho da velha Espanha, onde passariam merecidas férias com os familiares. Haviam embarcado na Bahia e o navio fez escala no porto do Recife, ficando ali ancorado por três dias. Um conterrâneo galego ia buscá-los para passeios pela cidade. Foram até Dois Irmãos de bonde. Conheceram as ruas de comércio da cidade, rua Nova, rua da Imperatriz, a recém-inaugurada Avenida Guararapes, uma avenida moderna. O Recife era então uma cidade mais próspera do que Salvador.

Naquele meado do século XX, Manolo tinha 43 anos. Um comerciante que gostava de conhecer as cidades também pelas atividades de comércio, dos negócios. O que mais o impressionou no Recife foi a Avenida Guararapes. O amigo que os ciceroneava, sabia em detalhes da construção dessa avenida pelos anos de 1940. Tinha sido uma intervenção brutal no bairro, destruindo dezoito quarteirões, incluindo ruas estreitas, prédios antigos e até monumentos históricos dos séculos XVII e XVIII, como a igreja do Paraíso, o Hospital São João de Deus e o Regimento de Artilharia, onde foi dado o primeiro grito da revolução de 1817. Mas tinha valido a pena, pensavam eles. Uma avenida concebida segundo parâmetros do urbanismo francês no Brasil! Encerraram os passeios com um lauto almoço no restaurante Leite.

Voltava ao Recife 18 anos depois, viúvo há menos de um ano, e numa situação adversa. Ali chegando, um simpático casal amigo de seu filho o esperava no Aeroporto dos Guararapes. Era tudo muito estranho. Ele estava acuado. Nem quis procurar o conterrâneo, pois não saberia o que dizer. Iria ficar hospedado no apartamento do filho, sem o filho em casa. Teria que entrar em contato, para os acertos financeiros, com um advogado com o qual o casal amigo já vinha conversando, afirmando ser um dos mais conceituados da cidade.  

A empregada do filho o esperava em casa. Sabia cozinhar bem. A cama arrumada, a casa pronta para o receber. Um belo apartamento de três quartos na avenida Conselheiro Aguiar. Lembrava do regozijo de todos na Bahia, quando souberam da compra desse apartamento, símbolo de prosperidade de um rapaz solteiro com apenas cinco anos de formado. Da varanda se via o mar. O prédio ficava de esquina e não existia, naquele fatídico dezembro de 1968, prédios altos na Avenida Boa Viagem.

Dona Maria era uma negra na faixa dos 40 anos, empregada doméstica desde mocinha, bem-feita de corpo, analfabeta, porém ladina. Soube conquistar o velho espanhol, a quem passou a chamar de Dom Manuel. À vizinha que lhe perguntou por que Dom, ela respondeu que, sendo ele espanhol, teria algo de nobre.  

No dia seguinte, Manolo envergava o melhor terno tropical, e rumava para a Avenida Guararapes, onde teria entrevista com o advogado Carlos Moreira. Lembrava-se dessa avenida quando a conheceu, recém-construída. Via-a agora em plena pujança, ônibus elétricos e não mais bondes, um movimento formidável. Galego sempre gostou de apreciar movimento nas ruas. Era sinal de bons negócios.

Subiu de elevador os quatro andares do Edifício Santo Albino. O brilhante advogado o recebeu calorosamente. Doutor Carlos Moreira era um homem das letras, um bom frequentador do bar Savoy, senhor de si. Depois de longa prosa, onde soube da vida daquele comerciante na rua da Mouraria em Salvador, da emigração dele da Espanha aos 16 anos, para trabalhar na loja de ferragens do pai naquela cidade, soube convencer aquele pai apreensivo, que seu filho era inocente. E que seria absolvido, como de fato foi.

Rubens Paiva, naqueles anos de chumbo da ditadura militar pós o Ato Institucional número cinco, por muito menos, teria destino trágico.

(Dedico esse conto a Marcus Alban e Mauro Ramos)

Edifício Santo Albino

22 de dezembro de 2024

Foi no último dia de novembro passado. Verão chegando com todas as cores vibrantes do amarelo e do alaranjado. Dos azuis. Verdes das águas dos rios, das águas do oceano salpicadas de pedaços dourados de sol. De Uber, ela percorre beiras de cais. José Estelita. Santa Rita. Quando o automóvel adentra as ruas centrais da cidade, no bairro de Santo Antônio, a Mulher do Sétimo Andar principia uma viagem no tempo por aquelas ruas velhas. Já ao início da caminhada, após a visita à Capela Dourada, a assombração do Recife de outrora continuou perseguindo a Mulher do Sétimo Andar, como se fosse uma sombra maior que ela.  

Naquele dia, a caminhada domingueira de Francisco Cunha ia visitar o Recife Barroco das igrejas. Para atender aos horários da Capela Dourada, aquele domingo seria no sábado. Sábado. Dia de comércio. Não mais o comércio da Rua Nova e da Rua da Imperatriz dos anos dourados, os anos 50 e os anos 60 do século XX. Da avenida Guararapes dos Correios… da agência da Varig… dos bancos… do bar Savoy. Mas o comércio do camelódromo. Dos produtos baratos da China nas estreitas ruas do bairro de São José.

Ao saírem da Capela Dourada para percorrer os cinco quilômetros da caminhada, ao sol ardente das nove horas da manhã, andavam qual uma manada, olhando para baixo, atentos às calçadas e aos calçamentos esburacados. Quando chegaram à esquina da Avenida Dantas Barreto com a Avenida Guararapes, a Mulher do Sétimo Andar passou a fazer uma outra via sacra, que foi aflorando do íntimo de sua alma, e trazia junto imagens pretéritas de uma Avenida Guararapes pujante de vida e de beleza.

Ali o cortejo parou para o segundo passo da via sacra. Não haveria templo barroco para visitar, mas sim a memória de duas igrejas. Uma construída em 1686 e demolida em 1912. No seu lugar, outra igreja em estilo Manuelino, inaugurada em 1914. Esta, destruída em 1944, na grande reforma do bairro de Santo Antônio, durante a gestão do prefeito Novaes Filho e do governador Agamenon Magalhães.

Estamos, pois, na esquina da Avenida Guararapes com a Avenida Dantas Barreto, bem defronte ao Edifício Santo Albino, construído em cima dos ossos de duas igrejas. Um belo prédio em estilo Art-Déco. Tão maltrapilho hoje, coitadinho, você, que já foi referência de consultórios médicos de renome. A Mulher do Sétimo Andar sai imaginariamente da via sacra pelas igrejas barrocas, e adentra o Edifício Santo Albino.

Imagina aquele hall de entrada, mármore, o elevador com ascensorista sentado num banquinho alto, ela pedindo o último andar: o sétimo. Em 1963, havia ali uma academia de ginástica feminina com a professora Vera. Enquanto espichava a coluna vertebral num espaldar de madeira, ela avistava, pela janela, o prédio do Diário de Pernambuco, na Pracinha do Diário. Depois, tomava um banho, um lanche, descia pelo mesmo elevador, e caminhava alguns metros, para tomar o ônibus de Dois Irmãos e voltar para casa, no bairro de Casa Forte.

Estamos já em 1968. Ela, estudante universitária, carregando uma bolsa a tiracolo. Como ela, outros estudantes, rapazes e moças, num desfile mudo pelas ruas centrais da cidade, em pequenos grupos de dois, três no máximo, todos fingindo que não se conhecem. Não demonstram nenhum cansaço, mesmo tendo passado a noite acampados no saguão da Universidade Católica, em assembleias intermináveis, dormindo de qualquer jeito pelo chão. Até que se espalha entre eles a palavra de ordem: em frente ao Santo Albino. Surge do nada um caixote de madeira dos vendedores ambulantes, Bidu faz o discurso, e, rápido como quem rouba, os estudantes distribuem os panfletos, outros ainda ocupariam a tribuna, até a chegada da tropa de choque da cavalaria.

Ela volta ao presente. Com o barulho do trânsito e dos pedestres, não consegue escutar a explicação sobre aquelas finadas igrejas. E pensa: o caixote e o megafone usados naquele comício relâmpago, seriam de novo da maior serventia nesta caminhada de 2024.

***

Dedico esta crônica a Bidu e Xanha, companheiros de lutas estudantis, que nos deixaram por morte morrida neste ano que vai se findando.

De livros e de dinheiros

08 de dezembro de 2024

Hoje, pela primeira vez na vida, entro na Amazon com meu nome na busca. Como nunca me ocorreu isso antes? A sensação é de estranheza, por me ver assim, exposta à venda. Aí me deparo com a primeira surpresa: o livro aumentou de preço. A editora não havia me falado quarenta e cinco? Como lá na Amazon está por cinquenta e um reais e oitenta e sete centavos? Mas lá, meus queridos, tem uma facilidade: pode pagar em até duas vezes sem juros. Ra, ra, ra. Muito estranho estar assim à venda. Cinquenta e um em duas parcelas sem juros…

Essa também é a primeira vez na vida em que vejo os cifrões de um livro meu entrarem diretamente no meu bolso. Até então, as editoras pingavam uns trocados na minha conta, espaçadamente. Não daria para uma noitada de chopp. Era como se, naquele tempo, publicar um livro fosse algo puramente intelectual, sem significado financeiro algum para mim. No lançamento, pagava-se na livraria e eu só autografava. O livro era parte de meu curriculum Lattes.

Dessa vez, qual um caixeiro viajante, levei meu próprio embornal com os exemplares para venda. Jovens amigas me ajudaram na operação comercial, enquanto eu autografava. Imaginei que todos pagariam em pix. Qual nada! Só metade. Voltei para casa com a bolsa mais pesada (fossem moedas de ouro…). Uma amiga querida me lembrava a prosa dos pais, sobre o apurado da loja, maior no dia da feira. Lembrei-me disso quando, esquecendo o que havia pagado à editora, contei o apurado em casa. Muito estranho…

A outra surpresa, consultando a Amazon: existem mais cinco teresa sales. Fui clicando em cada uma delas, viajando no tempo. Duas são quase o mesmo romance, publicados apenas virtualmente, para concorrer à publicação por uma boa editora. Perdi o concurso, mas ficaram lá os livros, nas nuvens, tão primários, tão pobrezinhos de capa… Aos meus olhos de hoje, depois de ter avançado muito, desde então, nos meus aprendizados de literatura, eu também não os aprovaria num concurso. Vá aprender a escrever romance, dona moça!  

“Brasileiros Longe de Casa”, da Cortez Editora, não está disponível para venda pela Amazon, mas sim a versão em inglês, publicada por uma pequena editora de Nova York. E aí tomei o último susto: custa a bagatela de hum mil, trezentos e quarenta reais e noventa e nove centavos. Principiei baratinha, vejam só, até de graça, num dos romances virtuais, mas terminei bem cara. Pois a Amazon precisaria mandar buscar o livro em NY, ra, ra, ra.

E assim, querido leitor, querida leitora, encerro essa crônica de hoje, escrita assim, ao correr da pena, depois de um susto, só para não deixar de mandar alguma coisinha no meu bom dia domingueiro.

Sotaque nordestino

Sexta-feira, 29 de novembro de 2024

Vem mais eu por aqui, moça. O banheiro é logo ali. / Da donde o senhor é? / Do Piauí.

Depois de assistir à peça “Prima Facie” no último domingo, em São Paulo, saímos quatro amigas à busca de um restaurante. Sugeri o Due Cuochi, no Itaim. Fechado. Na rua Jerônimo da Veiga, tão florida de bons pastos, a maioria, fechado. Ora, dona moça, tenha dó. Domingo à noite é dia de pizza. Resistimos à pizza e encontramos, finalmente, dando voltas de carro, um respeitável restaurante italiano, na esquina com a João Cachoeira.

Baixinho, magro, ágil, feio, na casa dos 60 anos. Algo terei dito, para ele se sentir à vontade: “vem mais eu”. Nesse caso, o verbo no modo imperativo, normalmente impositivo, toma-se de uma quase intimidade. A intimidade conterrânea, que, por minutos, pula a barreira das classes sociais, da formalidade profissional dos bem treinados garçons nordestinos de São Paulo, para adocicar a linguagem, virando pelo avesso o imperativo do verbo.

Perto do Cebrap, em São Paulo, nos meus tempos de pesquisadora naquela casa, às vezes saíamos em final de expediente, Chico de Oliveira, Vinícius Caldeira Brant e eu, para um chopps e dois bolinho de bacalhau. O bar se chamava Jabuti, em frente ao Instituto Biológico. Muitos anos depois, já fora daquelas paragens, o sinal de trânsito nos parou no cruzamento da rua Joaquim Távora com a Rodrigues Alves. Zé Hamilton ao volante. Eis que vejo Magrão, o garçom que sempre nos atendia no Jabuti. Com o vidro do carro aberto, falei alto o suficiente para ele ouvir de onde estava, em pé, parado na porta de entrada, como a fazer hora. “Magrão!” Ele olhou pra mim, me reconheceu, e respondeu sem titubear, com um sorriso limpo estampado no rosto: “Teresa Sales”.

Foi Vinícius quem um dia nos chamou a atenção, a nós dois. “Como vocês tratam mal os garçons! Nunca pedem por favor?” Não sabia ele que isso era também uma espécie de código de conterraneidade, para os que moram acima do rio São Francisco. Magrão, baiano, entendia perfeitamente.

É o tal sotaque. De onde vem? Quiçá uma porção maior de sangue nas veias da África e dos Povos Indígenas. O trópico, o calor, muitos banhos, banho de rio, de mar, de chuveiro, até de chuva, quando meninos. Maurício Carrilho me contou uma história sui-generis de Canhoto da Paraíba. Indo fazer uma visita à casa dele em Olinda, ao descer de um taxi sem ar-condicionado, naquele calorão do meio-dia, cansado, suado, qual a primeira frase do anfitrião? “Você quer uma toalha pra tomar um banho?” Ah, nada seria melhor naquela hora… E Maurício atribuía essa delicadeza à informalidade do nosso violinista. Não, Maurício. Isso não é apenas Canhoto da Paraíba. É mais um código dos que moram acima do rio São Francisco. A água tem um valor… Talvez por ser tão sofrida nos sertões das grandes estiagens d’antanho.

No Chorinho, Paulinho da Viola também descobriu um sotaque, depois que ouviu Canhoto da Paraíba, no primeiro sarau na casa de Jacob do Bandolim em Jacarepaguá, subúrbio do Rio de Janeiro, em outubro de 1959. “São choros em semicolcheia de cabo a rabo, onde é importante a presença de outro violão para acompanhar. A gente não pode afirmar que existe um choro tipicamente nordestino. Em muitas músicas, o que a gente pode ver é um fraseado, que tem muito a ver com a sanfona, a sanfona dos forrós. Eu acredito que isso influenciou os compositores do choro. Fica difícil dizer: isso é um choro nordestino; isso é um choro de músicos do Sul. Essa fronteira é difícil de delinear. Mas a gente sabe das músicas que a gente ouve e diz: isso aqui tem a alma dos músicos do Nordeste. O sotaque, né?”

Maurício Carrilho diz outra coisa. Essa marca identitária do choro nordestino, especialmente o pernambucano, vai além de um sotaque. É mais que isso, é uma linguagem diferente. “O sotaque pode ocorrer quando eles tocam repertórios de outros. Mas no caso do trabalho autoral dos compositores de lá, do Canhoto, do Henrique Annes, Luperce Miranda, e tantos outros, o paralelismo na harmonia é uma coisa que é usada por todos eles.”

(Querido leitor. Desculpe a intromissão, mas me permita um comercial: Se quiser saber mais detalhes, compre na Amazon, ou diretamente na editora Autografia, “Personagens do Choro Pernambucano – Canhoto da Paraíba e João Pernambuco”)

Marco César diz de outra característica dos compositores e das performances dos chorões do lado de cá: os choros não embalam apenas uma audiência que se balança discretamente ao ritmo da música, que nem no jazz. Embala todo o corpo na dança.

Enquanto eu ouvia Toninho Carrasqueira à flauta e Heloísa Fernandes ao piano na Praça das Artes na av. São João em São Paulo, pensava nisso. Céus, que apresentação magnífica! Auditório lotado. Tocaram nada menos que Chiquinha Gonzaga, Pixinguinha, Moacir Santos, Dominguinhos, Egberto Gismonti, Maurício Carrilho, Guinga, Radamés Gnattali, Cristovão Bastos, João Dias Carrasqueira… Atrás das cadeiras, havia um espaço vazio no amplo auditório. Fiquei com uma vontade danada de ir lá dançar um pouco. Causaria estranhamento. Não fui. Aqui, seria natural e muitos outros fariam o mesmo. Ao próprio Toninho, grande mestre da flauta e da teoria da música, tão bonito no balanço do corpo enquanto tocava, sei que não causaria espécie. Ele, que, num gesto espontâneo, ao ver um jovem pai saindo do auditório com o filho impaciente no braço, avisou que deixassem as crianças na plateia, que ruído de meninos não atrapalha. “Criança é alguma coisa de sagrado, como sabem os nossos Aimorés”. Um tapa na minha cara, que, no íntimo, teria achado ótimo que se retirassem todos. Uma lição.

Banhos de mar

Domingo, 10 de novembro de 2024

Esse é o título de uma das mais belas crônicas de Clarice Lispector. Outro dia alguém me mandou essa crônica pelo Whatsapp, recitada por Maria Betânia. Depois recebi de mais duas pessoas. Assim são as redes sociais. E os entendidos, quando isso acontece, dizem que viralizou. Acho tão horrível dizer isso! Vírus não é nada bom. E a crônica de Clarice Lispector, se já é linda lida no silêncio de uma manhã de domingo ensolarado do Recife, fica maravilhosa pela voz de Maria Betânia.

“Eu não sei da infância alheia. Mas essa viagem diária me tornava uma criança completa de alegria. E me serviu como promessa de felicidade para o futuro. Minha capacidade de ser feliz se revelava.”

Crônica, essa literatura fugaz como as ondas do mar, captura cada leitor a seu modo. Cada um vai buscar um pedaço da própria vida onde calhar fundo as palavras e as cenas da crônica. Ou deixa passar a onda porque tem mais o que fazer. Com as redes sociais, inexistentes ao tempo de Clarice Lispector, o escritor de crônicas de hoje em dia, às vezes recebe um brinde (uma palavrinha do leitor), a que ela, Clarice, só teve direito pelos raros leitores que mandaram mensagens ao Jornal do Brasil, de agosto de 1967 a dezembro de 1973.

A leitura dessa crônica me captura a cada vez que releio. Talvez porque o pai de Clarice Lispector acreditasse na cura dos banhos de mar pela presença do iodo. Lembro de meu pai dizendo que, em anos que se seguiam a meses de veraneio, meus irmãos tinham menos crises de inflamação da garganta. Mesmo assim, todos foram operados das amígdalas pelo dr. João Suassuna. Menos eu. E, em vez de achar isso bom, lembro que, na época, eu tinha ciúme de minha irmã caçula, quando ela ficava de cama, sem ter que ir à escola, com cuidados especiais do pai médico. Logo sabia-se doente, exigia: uva, maçã e guaraná. Refrigerantes não entravam cotidianamente na minha casa. Uva e maçã eram produtos especiais, que não se vendia na feira, onde minha mãe comprava todas as outras frutas, que eram muitas, variadas e muito cheirosas (um predicado inexistente nas uvas e maçãs). Aquelas da feira, eram as frutas que João Cabral diz em poema: melhor comer na cama que na mesa. As frutas da lírica de Alceu Valença “Morena Tropicana”.

Naquela época, os profissionais da saúde tinham a nobreza de não cobrar dos colegas. Assim, meu pai fez todos os partos (um a cada ano) da mulher do Dr. Walderedo Veras, que, em contrapartida, não cobrava pelas obturações dos dentes dos filhos do Dr. Zé Sales. O Dr. João Suassuna também não cobrava as cirurgias de meus irmãos. Porém, como morava no Recife, não tinha nenhuma contrapartida em serviços, mas em produto. Todos os anos, tirava uma semana de férias em meados de dezembro e se hospedava no Hotel Tavares Correia em Garanhuns. Na volta das férias, parava defronte de nossa casa, abria o porta-malas do carro e recebia, vivo, um peru de Natal. Nessa época do ano, eram muitos no quintal de nossa casa; presentes pelas consultas, pelos partos gratuitos de quem não podia pagar.

De tudo isso se lembra a Mulher do Sétimo Andar, quando chegou hoje do banho de mar na Praia do Pina, sem ter escrito ainda uma linha de sua crônica. Gosta dessa rotina domingueira. Geralmente, terá escrito fragmentos no decorrer da semana, e o domingo é o dia de organizar, rever, rever, rever, e, finalmente, despachar a correspondência, com o sentimento de quem está numa agência dos Correios e Telégrafos, com um monte de envelopes selados. Com as tais redes sociais, nem precisa gastar com selos nem ir até a agência dos Correios e Telégrafos na Avenida Guararapes, que, de resto, estaria fechada hoje, e está tão sem uso, quanto tudo o mais que já teve tanta vida nessa linda avenida do centro da cidade.

Lembra a aventura que era o veraneio na praia, para quem morava numa cidade encravada na longínqua região do Agreste Meridional de Pernambuco. Alugava-se uma casa sem móveis. Um caminhão transportava móveis básicos de Garanhuns para a modesta casa da praia. Em seguida, no carro com o motorista, Seu Gonzaga, ia a mãe, uma empregada, os cinco filhos, e, às vezes, também a avó por parte de mãe. Como cabia tantos no Ford 51? O pai não ia, sempre tinha parturientes em véspera de dar à luz. Mas, hoje ela sabe, era para ele umas merecidas férias.

O primeiro veraneio foi na praia de São José da Coroa Grande. Foi lá que ela conheceu o mar. O primeiro alumbramento. Depois, Rio Doce, em Olinda, ao tempo em que para lá só se ia por estrada de terra, e as casas eram esparsas no meio de imensos terrenos de coqueirais. Naquele tempo, uma menina lourinha de rabo de cavalo, que às vezes deixava secar, sem shampoo nem sabonete, os cabelos duros de água salgada. Ah, as praias daquele tempo…

CHORINHOS E CHORÕES – Clemente Rosas

A leitura do livro de nossa amiga Teresa Sales, recentemente lançado (“Personagens do Choro Pernambucano – Canhoto da Paraíba e João Pernambuco”), me trouxe motivação para arriscar esta despretensiosa crônica. Não exatamente para criticar o livro, que é bem informativo, redigido em linguagem descontraída, e agrada a qualquer leitor, especialmente  aos apreciadores do conhecido gênero musical, a quem é atribuído o simpático epíteto de “chorões”.  Mas pelas remissões a fatos, pessoas e lugares de minha terra paraibana, a verdadeira “terra mater” dos dois personagens.

Registro que a autora foi generosa comigo, ao incluir meu nome na lista dos entrevistados.  Na verdade, minha contribuição foi apenas no esclarecimento da verdadeira natureza do “Estado Livre de Princesa”, onde nasceu e passou sua infância o primeiro dos biografados.  Embora louvado, por razões pessoais e subjetivas, pelo mestre Ariano Suassuna, Princesa não era mais que um feudo do “coronel” José Pereira, que rompeu com o Presidente da Paraíba e declarou independente o município, fronteiriço com o Estado de Pernambuco.  Contava com o apoio não declarado do governo do Estado vizinho, e dos empresários do grupo Pessoa de Queiroz, que, apesar de primos de João Pessoa, eram seus inimigos figadais, por razões puramente econômicas: beneficiavam-se de um lucrativo comércio interestadual sem impostos, interrompido pelo novo dirigente paraibano. Por isso o apelidavam, ironicamente, de “João Porteira”.

E foi por tal ligação que o “Estado Livre” ganhou bandeira, hino, constituição e demais atributos: todos concebidos e elaborados pelo genro de um dos Pessoa de Queiroz, José Inojosa. Suas “forças armadas” eram constituídas pelos jagunços de Zé Pereira, além de cangaceiros desgarrados dos bandos tradicionais, alguns afilhados do “Padim Ciço do Juazeiro”, e até soldados da polícia estadual, feitos prisioneiros nas refregas, a quem o velho coronel, espertamente, oferecia, em troca da liberdade, a adesão às suas tropas.

Para descaracterizar, de uma vez por todas, a hipotética semelhança com o arraial de Canudos, com o que parecia sonhar Ariano, e dar a justa medida do caráter reacionário da secessão, basta considerar que, após deflagrada a Revolução de 1930 e finda a aventura, enquanto Zé Pereira passava longos anos foragido, Inojosa, no Rio, trabalhava como jornalista no periódico “Meio Dia”, de propaganda nazista, financiado pela Embaixada Alemã.

Obviamente, nosso Canhoto, então aprendiz de viola e sucessor do pai no ofício de sacristão, nada teve a ver com os embates do tal “Estado Livre”. E em tempo veio erigir sua fama em João Pessoa e Recife, fazendo com que hoje os Estados da Paraíba e Pernambuco possam partilhar as suas merecidas glórias.

Aliás, não é só neste caso que nosso vizinho do sul carimba como pernambucanos os paraibanos ilustres que, por razões diversas, emigram para o Recife e Olinda. Políticos, executivos, empresários, artistas como João Câmara e Raul Córdula, muitos são os casos.  Até o próprio Ariano foi rotulado por um trêfego jornalista como “paraibano de nascimento e pernambucano de coração”, o que é bem injusto.  Apesar do trauma da morte do seu pai, que fez sua família abrigar-se aqui e o fazia referir-se à capital do seu Estado sem mencionar o nome que lhe foi atribuído há quase um século, ele sempre se sentiu e declarou um desterrado, e tal sentimento o acompanhou até a morte.

Mas falemos também de outro caso, novidade para todo o mundo: João Teixeira Guimarães, o João Pernambuco, nasceu na Paraíba!  Mas aqui o fato mais chocante foi a “apropriação indébita” de sua cantiga “Luar do Sertão” por Catulo da Paixão Cearense, só bem tardiamente divulgada.  Deste, dizia Ariano que era falso até no nome, pois era maranhense. E se observarmos bem veremos que a realidade descrita em seus “versos matutos”, uma opção de escrita hoje felizmente abandonada, não é tão nordestina.  Sua canção “Marruêro”, em que o herói é “ruim como piranha, mais pió que a sucuri”, logo revela este fato: a sucuri, cobra gigantesca, é espécie amazônica, de habitat aquático, e não a temos por aqui.

Na verdade, o “grande Catulo” invocado por Zé da Luz, outro paraibano entre os poucos que o seguiram (mesmo ressalvando o desconhecimento dele sobre o “sertão em carne e osso”), era um grande pilantra. “Luar do Sertão”, que tantas vezes vi minha mãe cantar, como sendo dele, não foi um caso único.  Cabotino, em um dos seus livros, escrito em bom vernáculo (“Mata Iluminada”) está uma afirmação de claro pavoneio: “Com gramática ou sem gramática sou um grande poeta”.

Enfim, todas estas reminiscências e glosas me foram suscitadas pela leitura do livro de Teresa, que recomendo a todos.  Especialmente aos “chorões”, em cujo time, sem maior pretensão, passo a me inscrever.

Diários do Pina

Milu Caramela

18 de outubro de 2024

Milu Caramela? Quem te viu, quem te vê. Será que ganhou na loteria? Saiu da Vila do Ipsep e veio morar na avenida. No sétimo andar de um apartamento à beira mar, onde existe uma mulher que te dá comida à cada vez que se levanta da rede, a cada vez que se levanta da cadeira do computador, e segue para a cozinha. Tua comida é servida antes da dela, junto com palavras suaves.

Milu ouve calada. Não é mal-agradecida. Gosta mais que tudo do jardim suspenso, que aquela mulher preparou para habitat exclusivo dela, nas horas de recreio. Encomendou até um pedaço de tronco de Algaroba, para eu roçar minhas unhas. Ela fica debruçada na janela espiando a rua, e eu subo no meu jardim de cobertura. Daqui, vejo o lado pobre do Pina, grudado com o shopping Riomar, que lhe roubou muito casebre e muito mangue de caranguejo. Os meninos do Bode passam aqui pela rua Ondina a caminho da praia e do campo de futebol. Se espio para o outro lado, está o mar, a areia, os coqueiros, as castanholas e o calçadão.

Minha dona sempre viveu confinada em moradias seguras. Não sabe o que é a rua, como eu sei. Ela é tão inocente, a bichinha…

Espio agora aquela mocinha que atravessa o sinal para chegar ao calçadão. Shorts jeans justinhos na medida certa. O boné de marca, vermelho, não está na cabeça de cabelos esvoaçantes com mechas douradas, mas atado ao passador de cinto do short, bem no meio da bunda. O boné se mexe sutilmente a cada passada sem pressa da mocinha. Um soutien de biquini cor de rosa mostra o início dos seios. Carnes duras. Não quer saber de garotos sarados, lisos. O calçadão é sua sala de estar, para atrair caminhantes que usam loção de barba francesa. A bisavó dela circulava pelas ruas noturnas em torno do porto, no Recife Antigo.  

***

Flashes

25 de outubro de 2024

Km. 600. Vestígios da noite. Uma moça e dois rapazes, com as duas portas do Gol estacionado junto à ciclovia abertas, aguardam com impaciência e piadinhas, o casal sentado no banco do calçadão numa infindável DR.

Km. 800. Um rapaz negro corre do Pina em direção a Boa Viagem, na pista dos automóveis, beirando a ciclovia. Distribui as palavras de Deus ouvidas no culto da véspera. Aleluia, irmão.

Km. 1.700. Atrás do banheiro público construído ainda outro dia, que tem um cano estourado, um buraco no chão e cheiro de urina (dos homens que usam o calçadão quando o banheiro está fechado à noite, ou mesmo que estivesse aberto), duas mulheres sentadas no banco do calçadão. Na volta da caminhada, 10 minutos depois, a Mulher do Sétimo Andar ainda ouve pedaços de uma mesma conversa ao celular, a toda altura: Tu tem que ver por que Gabriel conseguiu estar solto, de tornozeleiras, e tu continua aí. Domingo eu quero saber disso direitinho.

Km 1.000, no caminho de volta. Um jovem pai carrega o bebê de poucos meses num suporte tipo canguru, na frente do peito. A jovem mãe puxa pela coleira dois cães de raça pequena. Estão passando em frente aos policiais do calçadão, postados à sombra da frondosa castanhola que separa Boa Viagem do Pina. Coitados, com esses uniformes quentes, botas pesadas, nesse calor… O bebê cruza o olhar com a mocinha uniformizada, que certamente lembrou o filhinho que deixou aos cuidados da avó. O casal se aproxima dos policiais. Proseiam. O bebê, rindo, espalha uma alegria no mundo. Bebês no calçadão são raros. A Mulher do Sétimo Andar, ao passar pela cena, ouve o português com sotaque dos jovens pais.

Na volta da caminhada, ao entrar no prédio onde mora, a Mulher do Sétimo Andar encontra uma babá, as gorduras esparramadas no sofá do terraço do prédio, que não ouve o seu bom dia. A mão esquerda fala ao celular, ouve, ri. A direita balança o carrinho do bebê para frente e para trás. Depois, ao entrar no elevador, ela cruza com as menininhas gêmeas, que têm uma babá para cada uma.

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Domingo na praia

27 de outubro de 2024

Domingo de verão é dia de festa na praia do Pina. Armam-se barracas coloridas; se a maré está baixa, campos de futebol se improvisam. Enquanto caminha, cedinho, a Mulher do Sétimo Andar assiste à preparação da festa.

De repente, na altura das jangadas, avista ao longe um boné conhecido. Ela gosta é muito quando reencontra personagens de suas crônicas. E foi exatamente em frente às jangadas, parados para ver a saída de uma delas, que ela ficou conhecendo aquele senhor que vai se aproximando, sempre caminhando descalço, de bermuda, camiseta, e boné vermelho. Há quanto tempo não cruzavam caminho na areia da praia? “Tava sumida?” Para encurtar a conversa no curto tempo de passar um pelo outro, ela responde: “Viajando”. “Bom dia, escritora”.

Continuou pensando no bom dia de Biu da Venda. Um estado de alegria inundou sua alma. Escritora.

É muito simples para pessoas simples saber o que é uma escritora. É alguém que escreve livros. E livro a gente sabe o que é: vê, folheia. Mesmo que não leia. Já socióloga…

Somos todos animais

17 de outubro de 2024

A gente não costuma se lembrar disso. Que um dia já andamos de quatro patas. Antes de ontem essa lembrança foi decisiva, para a Mulher do Sétimo Andar não levar uma queda dentro do mar. Vinha ela de uma caminhada pela areia. Na volta, depois de andar cerca de meia légua (pouco menos de 3 km), parou em frente às jangadas para tomar a maçaranduba das águas. Sargaços no rasinho, antes de um suave quebra-mar. Condição ideal para um mergulho.

Foi até as jangadas. Já passara a hora de pescadores por ali, a quem confiar a guarda de shorts, tênis, chapéu e óculos escuros. Mas o mar chamava por ela. Subiu na jangada mais próxima. Olhou para os lados e para trás. Nenhuma pessoa nem bicicleta suspeita, que a visse se desvestindo. Guardou tudo numa maloca que existe, quase esconderijo, embaixo do banco da jangada. E foi ao mergulho.

Já sabia o caminho certo para seguir por terra, desviando das pedras. Ali no raso tubarão não chega. Atravessou a barreira de sargaços grudando pelo corpo, e chegou ao levinho quebra mar, desses que não atrapalham a gente ficar boiando. Dia nublado. Perfeito. Se você passar dois minutinhos com o corpo totalmente entregue ao peso das águas, como fosse uma cama de colchão macio, e tirar da cabeça todos os pensamentos, terá ganhado seu dia.

Na volta, se esqueceu que o movimento das águas a teria desviado do curso da ida. E se viu pisando em pedras – os arrecifes que nomeiam a cidade. Mesmo sutil, as pequenas ondas lhe tiravam o equilíbrio em pé. A adrenalina rapidamente foi mobilizada com o susto. E pensou na sua gatinha Milu. Com muito cuidado, foi se abaixando, e, até encontrar de novo terra firme, caminhou como nossos ancestrais.

A única sequela foi um talho próximo ao dedão do pé, enquanto andou feito gente. Mas nada que a Água Rabelo, uma mistura milagrosa de aroeira, hortelã e eucalipto, não curasse. (Marco Cézar guarda uma foto histórica para o Chorinho, tirada por Nuca Sarmento, dele, ainda com cabelos na cabeça, junto com Raphael Rabello, embarcando num fusca na Praça Maciel Pinheiro, no Recife, a caminho da Paraíba. Estavam indo visitar a produção da Água Rabelo, fabricada desde 1889.)

Voltando aos nossos ancestrais. Um cientista japonês, que estuda há mais de 40 anos os chipanzés, foi entrevistado por um jornalista americano com a seguinte questão: por que nos tornamos humanos e os chipanzés não? Por que não desenvolveram uma linguagem, como nós? Em qual momento aconteceu essa separação?

Ao que o cientista explicou. Alguns chipanzés eram mais fortes e continuaram morando na mata, em cima das árvores. Os mais fracos, que resultaram em nós, humanos, fomos expulsos da floresta, e descemos para o perigoso habitat no solo, submetidos à ameaça dos perigosos animais carnívoros.

Em suas pesquisas, o cientista japonês demonstrou a extraordinária memória dos chipanzés. Se pressentem algum perigo na mata, rapidamente contam os inimigos, antes de tomar uma decisão sobre permanecer no território ou fugir.

Na evolução da espécie, nós perdemos parcialmente essa capacidade, em troca de uma nova função: a linguagem. O cientista afirma que talvez memória e linguagem, na forma mais rudimentar, fossem localizadas em partes vizinhas do cérebro. Para expandir a área da linguagem (que usamos primitivamente, para colaborar uns com os outros, enquanto grupo, e assim nos protegermos do perigo), perdemos muito da memória em favor da linguagem.

Nessa troca, saíram favorecidos os humanos, claro. A imaginação substituiu o aqui e agora dos chipanzés. Conseguimos pensar no futuro de filhos, netos… Os chipanzés não têm essa capacidade, que permite o planejamento do futuro. Vivem apenas o momento presente; e são capazes de decisões muito rápidas, graças à sua memória privilegiada, comprovada pelo cientista em experimentos com humanos e chipanzés com jogos de memória.

A diferença entre nossos mundos é sobretudo a imaginação. A capacidade de criar imagens antecede inclusive a linguagem: os cheiros, os sabores, aparecem no bebê muito antes das palavras. O que acontece quando a gente sonha, fechando a porta da consciência? Libera o inconsciente, que produz imagens.

A Mulher do Sétimo Andar é assim, vocês já sabem. Entra por uma perna de pinto e sai por uma de pato. Saiu da imagem de sua gatinha, lembrada para evitar uma queda, passou pela Paraíba, na memória de Raphael Rabello, para, por fim, dissertar sobre a teoria de um cientista japonês, de quem sequer anotou o nome. Pensando bem, tudo faz jus ao título da crônica. Somos todos animais.

Dia de eleição

06 de outubro de 2024

Nas cidades do interior, aí pela primeira metade dos anos de 1950, dia de eleição era dia de festa. Vou contar para vocês como era a minha festa. Era assunto de gente grande. Lembro do lugar de votação. As urnas eleitorais. Os santinhos dos candidatos. As toadas (Na hora H, H, Agamenon). Íamos vestidos com roupas domingueiras. Onde seria aquele colégio eleitoral onde votavam meus pais?

Torcíamos pelos candidatos do pai. Sempre. Tenho duas lembranças vivas do dia de eleição em Garanhuns. Sentada ao lado de minha mãe, num banquinho, escutando conversas que não entendia, devaneando em outros planetas. Minha imaginação sempre foi um refúgio precioso. Fez boa companhia àquela menina lourinha e bem-comportada. Continua boa companheira, passado sete décadas.

Meu pai falava. Minha mãe ouvia com um sorriso aquiescente. Estaria, tanto quanto eu, em outros planetas? Uma vez esqueceu o sorriso da última estória no rosto, e minha irmã caçula, a tudo atenta, lembrou: mamãe, a graça já passou.

A outra lembrança, é um dia de eleição na fazenda de um cliente e amigo de meu pai. O cheiro de carne assada. Matara-se um boi. O terreiro cheio de gente, gente chegando, parecia movimento de feira. O alpendre da casa enfeitado com bandeirolas com as cores do santinho. Um sol quente de outubro. Ali era bom de correr, brincar com outros meninos, tomar guaraná.

***

O calçadão em dia de eleição tem menos gente do que teria num belo domingo de sol como hoje. A Mulher do Sétimo Andar saiu cedo para caminhar. Nenhum time organizado de corredores de fim de semana. Poucos dos caminhantes da madrugada. Talvez seja esse o único dia feriado para os tijolinhos do calçadão.

Desde quando retomou as caminhadas, a Mulher do Sétimo Andar tem visto personagens de crônicas passadas, como o pintor das madrugadas, o lutador, Biu da venda, o negro luzidio dos dois cachorros… Outros foram ondas passageiras. Como uma mulher que instalou-se, de mala e cuia e sete cães vira-latas, no lugar onde os pets dos ricos fazem cocô. Foi também num período eleitoral. Acabada as eleições, só demorou alguns dias, para ela ser expulsa não deixando rastros.

São tolerados os que usam os novos quiosques de coco como refúgio para dormir à noite. Eles se recolhem cedo, deixando apenas o odor de corpos sem banho impregnado nos tijolinhos ecológicos. Mas alguns ousam ultrapassar essa barreira. Ai deles!

Foi assim com uma família inteira, que se arranchou recentemente, na sombra aprazível da proteção de um equipamento esportivo em reforma, na altura do predinho azul Oceania (que se chamava Aquarius no filme de Kleber Mendonça). Estavam tão à vontade, que a Mulher do Sétimo Andar presenciou, ainda esta semana, a dona daquela inusitada casa varrendo as folhas secas da castanhola do calçadão na frente de “sua” casa. A casa consistindo numa madeira do tamanho de uma porta, em pé na horizontal, escorada entre a parede de alumínio de proteção do equipamento em reforma, e o lado de dentro dos bancos do calçadão, coberta com papelões.

A dona da casa, que certamente numa pesquisa do Censo Demográfico, seria mais uma a engrossar a quantidade dos domicílios chefiados por mulheres, deixa, ainda dormindo embaixo de papelões e trapos, o marido, o filho e o cachorro, e vem prosear com o vigilante da prefeitura sentado numa cadeira junto à porta de entrada. Ele terá dormido dentro, certamente para cuidar de objetos ali guardados, que seriam motivo de cobiça para a horda de miseráveis que roubam à noite cabos de tvs nas ruas para usar em casa.  

A Mulher do Sétimo Andar quis saber desse guarda qual serviço estava sendo feito ali dentro. Faz parte do projeto da prefeitura de revitalização da orla. Que ela entrasse nas redes sociais para saber detalhes. Ela não entrou nas redes sociais ainda. Mas já sabe o fundamental: o projeto da orla se renova a casa período eleitoral. O calçadão melhora, fica mais bonito, mesmo que tenha sido um serviço inacabado nos detalhes. Ah, os detalhes… Ficam para a próxima obra.

Novo projeto, a cada quatro anos, perpetuando no poder quem tem a caneta da vez, para bancar a obra e o troco para as campanhas eleitorais. Aquela família, a mulher, o marido, o filho e o cão, com quem não se mexeu até ontem (em nada se mexe em período pré-eleitoral), hoje, já voltou para qualquer outra freguesia, deixando a porta largada no chão e os trapos espalhados dentro do antigo lar.

Diário do Pina

O Outono das Castanholas

25 de setembro de 2024

As castanholas do Recife bagunçam as estações do ano. Elas pensam que estão na Nova Inglaterra. Aos ventos de agosto e prenúncios da primavera, seca quase metade das folhas.

Na passagem do Pina para Boa Viagem, existe, como marco, uma imensa castanhola de raízes esparramadas pelo chão. Para essa árvore, foi construído um recuo no calçadão. É imponente como uma Gameleira. A Mulher do Sétimo Andar, por vezes, se senta à sombra gorda dessa castanhola, para tomar uma fresca, no final da caminhada.

Ela vem acompanhando o outono das castanholas, que principiou por essa gigante. Formou-se, nos tijolinhos do chão, um tapete colorido demarcando a extensão de sua copa. Um tapete em amarelos, vermelhos e marrons. As folhas variam de tamanho, desde uma pequena palma da mão de uma criança – as que não vingaram, como as crianças pobres que morriam antes do primeiro ano de vida – até a manzorra de um gigante. Algumas ainda nem perderam o verdor de vida, e acrescentam, à natureza morta esparramada pelo chão, um verde vivo e brilhante.  

Os distraídos caminhantes e corredores nem se dão conta de tamanha beleza em cores e formatos. Um estampado perfeito para um vestidinho de alças de verão. Vão pisoteando, chutando… aliados da ventaria, para espalhar a natureza morta em diferentes formatos. As folhas novas, que despontam nos galhos no topo da imensa castanhola, espiam do alto as irmãs mortas, sabendo que sua vida é curta. No próximo outono, serão elas a terem esse velório, com chutes e pisoteio de tênis, pás e vassouras dos garis da prefeitura.

O verão chegou

27 de setembro de 2024

Ainda anteontem, a Mulher do Sétimo Andar se referia ao Outono das Castanholas. Hoje já chega com o verão? Que confusão danada é essa? É que estamos nos trópicos. Aqui, as estações do ano subvertem a ordem dita natural da sequência de estações. Pois a rigor, só temos mesmo é inverno e verão. Os pescadores sabem disso.

Anteontem ela tinha ido até o estacionamento das jangadas, e viu somente quatro delas, com ares de abandonadas. E pensou, com uma ponta de tristeza: Será que transferiram os pescadores do Pina para Brasília Teimosa? Felizmente ela estava equivocada.

Hoje, com a maré seca, saiu para caminhar na areia da praia e não no calçadão. (Que maravilha! Sem o barulho de vozes humanas nem de motores de automóveis e motos. Somente natureza.). Já havia visto, de sua janela, uma jangada saindo ao mar. Sentira uma alegria. Quando se aproximou da área do estacionamento, observou que se multiplicara o número das jangadas. Como assim? De um dia para o outro? Lembrou-se das flores dos jardins públicos de Brookline, na Nova Inglaterra. À chegada da Primavera, surgiam assim, sem aviso, de um dia para o outro.

Ainda encontrou lá, ouvindo radinho de pilha, um pescador, conhecido seu. Se cumprimentaram. As pessoas só falam nos achaques da velhice, e não pensam na serventia dos cabelos brancos. Os porteiros da noite de seu prédio, os pescadores, todos eles olham por essa mulher, que insiste em morar sozinha até enquanto Deus der bom tempo.

Pois é isso, meus amigos, minhas amigas. Setembro já finda, e somente agora os arautos do verão tocaram as cornetas para anunciá-lo. Anuncia-se também, para a Mulher do Sétimo Andar, que, de agora em diante, ela terá como deixar no banco de uma jangada, sem medo de ser roubada, óculos escuros, chapéu, shorts e tênis, antes de mergulhar nas águas frias da madrugada do Oceano Atlântico. Voltará para casa com o corpo salgado e abençoado pela grande mãe Iemanjá.