Feliz Natal

Meus queridos amigos,

Eu e a Mulher do Sétimo Andar viemos hoje aqui desejar a vocês um Natal colorido e cheio de luz. As luzes e as cores do Natal cristão e do Natal pagão.

            Ontem a Mulher do Sétimo Andar saiu a passear na boquinha da noite, para apreciar os enfeites de natal na rua, nos três jardins e nos prédios da avenida Boa Viagem, onde mora. O público que frequenta o calçadão a noite, os caminhantes noturnos, é diverso do público das madrugadas. Há uma certa mistura dos que se exercitam com os que passeiam, como passeavam antigamente os casais nas calçadas das casas. As do Recife. As de Garanhuns.

            Ontem predominavam os passeantes, por causa das luzes de Natal. Lá vão eles atravessando a avenida na altura do Segundo Jardim. Devem ter acabado de cear em casa, aquele sossego de meninos de barriga cheia. Além dos dois meninos e da menina menorzinha, um deles ainda puxava o cachorro pela coleira. E vão direto para o mesmo destino da Mulher do Sétimo Andar: o presépio lindo, dos mais bonitos que já viu. Ergueu-se uma espécie de pequena capela dourada, posto que a cobertura é toda de luzinhas, e dentro dela a lapinha. Figuras esculpidas em barro natural, ao estilo Tracunhaém (talvez sejam de lá mesmo), representam o menino Jesus na manjedoura, Maria, José, os reis magos, um pastor carregando uma ovelhinha no colo, e os animais que estavam presente no nascimento do menino, a vaca, o burro, as ovelhas.

            As renas voadoras, a neve, o papai Noel, e as macaquices importadas dos americanos, esses ficaram confinados aos Shopping Centers, que afinal não são assim nomeados em vez de Centros de Compras à toa. Nessa praça do Segundo Jardim de Boa Viagem, o destaque é para a tradição do presépio. Essa é mesmo uma função importante do poder público: preservar o patrimônio cultural, a cultura popular. Talvez Ariano Suassuna tenha deixado seu carimbo muito bem azeitado, do tempo em que foi Secretário de Cultura dessa cidade e desde antes, desde sempre.

            E a boniteza da iluminação da avenida Agamenon Magalhães, do novo parque das Graças, à beira do rio Capibaribe, do Recife Velho, com a iluminação das antigas ruas do tempo dos holandeses que convergem para o Marco Zero da cidade? O moço prefeito é sabido: em ano eleitoral, luzes e cores no Natal e no carnaval, eleição garantida.

            Ih, dona moça, não vá estragar essa crônica com política.

            A Mulher do Sétimo Andar adora essas festas de Natal de rua. Claro, é como reviver simbolicamente o que foi o Natal de sua infância, quando a família saia de Garanhuns para Bezerros, passar as festas na casa dos avós paternos. Era um Natal católico. Quase rural. Não havia árvore de Natal no casarão de perto da estação de trem. Antes de sair de casa, com roupa nova para o grande evento natalino, a Missa do Galo, ceava-se. Queijo do reino, pastéis de festa e filhoses feitos pela avó, que herdara a tradição da bisavó casada com português, que soube fazer dinheiro no Recife e casou bem a filha com herdeiro de terras pecuárias.

            Para os pequenos, o prazer supremo era ganhar o dinheirinho para andar de carrossel, de onda, de roda gigante, e o mais rústico e melhor de todos os brinquedos de rua, para o qual havia muitas recomendações dos pais: tomar cuidado com a barca. Comer goloseimas, tomar guaraná. E ver o presépio de tia Lilía, irmã mais velha do avô. Isso não era privilégio da imensa família, que talvez fosse metade dos habitantes daquela pequena cidade encravada no Agreste pernambucano. A porta da sala de dona Lilía, que dava para a rua da Matriz, ficava aberta em todo ciclo natalino para ser visitada por todos. Não carecia nem pedir licença para entrar na sala. E seria um brinde se dona Lilía, que só morreu aos 106 anos com quase todo tino, viesse até o visitante para receber os cumprimentos e o elogio pelo presépio, que esse ano tinha ainda mais bichos – era quase um zoológico – do que no ano passado. O presépio ficaria ali exposto até o dia 6 de janeiro, dia de Reis, quando ocorre a cerimônia da queima da Lapinha (ou guardar tudo para o próximo ano).

            No Recife há ainda uma comemoração simbólica, uma caminhada pelas ruas centrais da cidade para a queima da lapinha no seis de janeiro, acompanhada de bandas de música que, como tudo nessa terra, acaba em frevo.

            Igual ao sábado passado. A Mulher do Sétimo Andar havia recebido um convite para uma Cantata de Natal em frente ao Paço do Frevo. Quando chegou lá, não havia mais lugares nas cadeiras, dispostas em frente a um palco montado defronte do antigo sobrado que abriga aquele museu, na Praça do Arsenal da Marinha. Viu que na segunda fileira havia uma cadeira guardada por uma bolsa. Cara de pau, perguntou se a pessoa ainda viria. A senhora desocupou gentilmente a cadeira e ela se sentou em posição estratégica para assistir. O público predominante era de famílias, crianças de colo ou buliçosas, de todas as classes sociais. A cultura popular tem esse dom: junta as classes no mesmo contentamento. E, de quebra, espanta a violência urbana.

            Filmou precariamente, com os recursos que domina no celular, um pouquinho de cada uma das apresentações. Estava em estado de graça. Ao relento, com a brisa do Recife refrescando o ambiente sem precisar dos malditos ar condicionados. O maestro Marco César, tal como nas óperas, não foi destaque para se ver, mas para se ouvir, tocando dentro da sala. Apareceu apenas junto com todos os componentes da orquestra, ao final, para os agradecimentos. As mulheres do coral Edgar Morais ficaram postadas, vestidas de branco, nas janelas do prédio, entoando as músicas. Vieram ao palco algumas vezes. Da larga porta de entrada iam saindo os performáticos de cada um dos atos. Destaque para músicas de nosso Capiba. Uma delas, em performance do Recife de outrora, do tempo dos lampiões. Também músicas de pastoril, que se apresentou apenas com as principais figuras: a mestra do cordão azul, a contra mestra do cordão encarnado, a diana, a borboleta, o anjo, e o velho.

(Dos pastoris da igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, aquela festa de largo que antecedia o Natal pelas cidades do Nordeste, e era fonte de um dinheirinho para a paróquia, ficou-me uma frustração: meu pai nunca deixou que eu dançasse no pastoril, onde estavam várias de minhas colegas de escola. Mesmo sendo uma festa católica, as meninas mostravam as pernas ao dançarem. Já nem digo mestra do cordão azul, que sempre torci pelo cordão azul, mas que eu fosse ao menos a última pastorinha das seis ou sete que dançavam atrás da mestra…)  

A Mulher do Sétimo Andar selecionou três fragmentos do que viu e ouviu, para compartilhar com alguns amigos de São Paulo. Não podia guardar só para si e para os que já conhecem, essas festas tão lindas. Selecionou o pastoril, o rei e a rainha do Maracatu cantando a música de Natal brasileira mais bonita, de Assis Valente; e um Frevo de Bloco para encerrar, que aqui tudo acaba em frevo, muito antes de tudo acabar em pizza.

E uma amiga querida, legítima paulistana que curte a cultura popular nossa e adora o Maracatu no carnaval, comenta: “É uma Cantata de Natal, mas o figurino é todo pagão. O rei e a rainha do Maracatu cantam a música do Papai Noel. Eis uma boa amostra do sincretismo da cultura popular. Saudade de Recife! Que inveja dessas coisas que acontecem por aí!”

Crônica de um almoço

Ao escrever a data desta crônica, 3 de dezembro de 2023, tomei um susto. Falta menos de um mês para se acabar o velho 2023 e entrar o novo 2024. As melhores folhinhas eram aquelas em que o ano velho era um velho de verdade, corcunda, com um pé na cova, e o ano novo era um bebê Johnson’s. Na passagem de 1980 para 1981 estávamos no Guarujá: minha pequena família, eu, Zé Hamilton, Miguel com 4 anos, Pedro com 1 ano, e uma amiga do peito, a Flora. Aquele era o primeiro peru que eu preparava, confiada na propaganda da Sadia, e esperando um apito do peru avisando que estava pronto. E o peru não apitava e a fome só aumentando, que as castanhas e que tais não enchem barriga de ninguém, e o ano novo ameaçando chegar, quando, vindo do quarto onde dormia, chega Pedro na sala, só de fralda, com o andar trôpego dos bebês quando acabaram de aprender a andar, despertado certamente pelos primeiros fogos.

Chegava ali na sala o Ano Novo novinho em folha e nós rimos muito, que o teor alcóolico já estava elevado. E a história do apito do peru era um malentendido, e são precisamente as coisas que dão errado, as que ficam na nossa história familiar, aquelas histórias que unem como goma arábica os laços de família, mesmo quando ela já está tão esgarçada…

Essas duas frases acima são bem aquilo que se costuma chamar “nariz de cera” de um texto. Uma conversa fiada antes de entrar no assunto. O certo seria simplesmente cortar o nariz de cera e a crônica começaria no parágrafo seguinte. Mas gostei desse nariz e pronto, vai junto.

Adoro receber amigos em casa. Sinto-me na pele de Mrs. Daloway, em uma escala mais pobre, tropical. Os preparativos. Adaptar o espaço da sala de estar para acomodar a primeira roda de conversas. Como a mesa é baixinha e ali serão servidos queijos, presuntos e pães, sem a formalidade dos talheres nem da louça, fosse no Japão, o mais apropriado seria nós todos sentados no chão, pernas cruzadas em posição de Ioga… Não, dona moça, esqueça logo essa ideia estravagante. Pense na idade de seus convidados de hoje. Com uma única exceção, todos setentões. Sem práticas nem costumes nem dobradiças orientais.

Num certo momento, quando todos já haviam chegado e principiavam a beber, os que bebem, pois dois estão na água de coco um e no charuto o outro…

A Mulher do Sétimo Andar tem seus “salões” abertos a qualquer fumaça. E a de charuto lhe traz a doce lembrança dos almoços em sua casa de São Paulo. Os almoços domingueiros, sem cozinheira em casa, nós dois na cozinha. A preparação antecipava a chegada dos convivas. Num desses almoços, lembro que celebramos ali mesmo na cozinha, um brinde com o restinho do vinho que não entrara no molho do macarrão, celebramos, quem sabe, o terceiro casamento, sem data fixa, aqueles momentos em que sentimos que estamos em outro ciclo da vida de casal, que não é mar de rosas para ninguém, e eram momentos de uma felicidade cujo tamanho a gente só avalia (pois a felicidade tem tamanho sim senhor) depois que se passaram muitos anos.

Desculpem, saí do assunto de novo. Num certo momento, em que todos estavam distraídos o suficiente uns com os outros, já passados os cumprimentos e tendo cada um escolhido o lugar para se sentar, tomei do celular e fiz umas fotos e um pequeno vídeo com os personagens descontraídos. Nenhum se deu conta da filmagem. O som fica difícil de captar, posto serem conversas paralelas, como a dividir ao meio a atenção dos personagens. Um deles olha na direção da anfitriã, o único a perceber que está sendo filmado, para elogiar o sururu servido de entrada, com farinha e molho de pimenta.

Sábado é o dia em que gosto de receber, porque é quando posso dispor da cozinheira desde a sexta feira. Neste dia, véspera, conto com Flávio, o motorista de Uber que virou conhecido, quase como se particular fosse, para me acompanhar nas compras da feira orgânica, mercado municipal para o sururu, o bode, o coco ralado e as compotas (feitas quase caseiramente em cidades do interior do estado), passar na padaria Augusta, finalmente, na Casa dos Frios para o bolo Souza Leão. O maravilhoso bolo Souza Leão feito da massa da mandioca, perfeito para acompanhar o cafezinho.

Um dia, já faz tempo, ao perceber que Edinha não gostava de uniforme, e terminava usando deles somente a touca (não posso deixar de lembrar uma imagem construída pela astúcia literária de Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, das índias vestidas de noiva e que, mal acabada a cerimônia do coletivo casamento feito pelo missionário jesuíta, saíam à praia, tiravam toda a roupa e caminhavam nuas em pelo, apenas com véu e grinalda na cabeça), ao perceber isso, passei a fazer vista grossa e deixo Edinha se vestir como gosta. Afinal, aqui ela cumpre com competência e gosto o papel que lhe cabe: servir. Mas na sua comunidade, num beco estreito de Barra de Jangada onde não entra carro, ela é dona Dinha, vó Dinha, aquela que nunca negou a ninguém um prato de comida. Uma legítima descendente indígena de pele escura e cabelos negros escorridos, com a nobreza de uma matriarca.

O sábado de manhã, enquanto Edinha está na linha de montagem da cozinha, eu circulo na sala preparando o ambiente. O funcionário do condomínio traz uma mesa e duas cadeiras. Caberá todos sentados às mesas; mesmo apertadinhos, todos sentados com prato na mesa e não no colo.

Gosto dessa preparação. Alguns objetos saem da sala para o quarto de hóspedes para ceder espeço aos pratos, talheres, comidas, bebidas, gelo… É como se estivesse preparando o cenário para uma peça de teatro que vai acontecer. Ontem percebi que sempre mudo um pouco o cenário, como a se adaptar aos personagens que atuarão na peça. O bom é que esse teatro não exige enredo nem ensaio. É de improviso, como as boas rodas de choro.

E hoje, the day after, eu me pergunto: por que será que gosto de receber? Acho que Freud explica. Dois homens importantes na minha vida, meu pai e meu marido, tinham imenso prazer em receber em casa para uma comida. Não tenho fotografias de família espalhadas pela sala, como é de costume. Apenas no meu espaço sagrado, o Peji, junto com divindades católicas e Iorubás, coloquei uma foto de meu pai, uma de minha mãe e uma de meu marido, os que já se foram. Na fotografia do marido, ele está sentado na poltroninha de lona de cineasta que tanto gostava, na varanda rente ao jardim, após um almoço domingueiro. Fuma um puro cubano num dia ensolarado de outono. 

O Rio de Janeiro continua lindo!

“O Largo do Boticário é um famoso largo localizado no bairro do Cosme Velho da cidade do Rio de Janeiro. O acesso se dá por um estreito beco – o Beco do Boticário – que passa sobre uma pequena ponte sobre o rio Carioca. O espaço caracteriza-se por sua exuberante vegetação de Mata Atlântica e pelos casarões em estilo neocolonial”. É o que diz a Wikipedia.

Estou aqui no Rio de Janeiro para completar uma pesquisa sobre os chorões do Recife. Tenho por hábito fazer minhas entrevistas no local sugerido pelo entrevistado. Prefiro a casa. A casa espelha sem palavras muito da pessoa. Talvez seja o espelho mais fiel do pertencimento de classe social. Mas nessa pesquisa tenho tido experiências que, se não ajudaram muito na qualidade do som gravado, acrescentaram em curiosidades. No Recife, uma das entrevistas, com Amaro Filho, foi no Parque Treze de Maio, sentados num banco duro de madeira sob a luz de um lampião, quando começava a escurecer num final de tarde aprazível e fresquinho, como é o Recife. Na transcrição da entrevista, ouve-se ao fundo umas crianças brincando e a mãe ralhando com elas vez por outra. Quase um fundo musical para uma entrevista sobre música.

Ontem à tarde, quinta feira 23 de novembro de 2023, foi a vez de Maurício Carrilho na Adega Portugália, no Largo do Machado. Um legítimo boteco carioca. Cheguei pontualmente às 3 da tarde, hora sugerida por ele, quando já teria serenado o burburinho do almoço. Encontrei-o sentado numa das mesas da área coberta do terraço, ventilador ligado, poucos fregueses. Não foi difícil reconhecê-lo, quando correspondeu ao meu sorriso.

Na hora em que já ia abrir o gravador do celular, principiou uma música no restaurante. Maurício sugeriu que eu visse se na área de dentro estaria mais silencioso. Estava. Mas, ao retornar, ele já havia feito um acerto com o garçom para abaixar o som. Afinal, estamos no Brasil, não é?

Ele me esperava tomando uma água mineral com gás. Pedi uma sem gás. E a entrevista transcorreu bem, por duas horas. Instigado pelas minhas questões, Maurício foi desenrolando o novelo de sua vida artística, uma riqueza de memórias. E, já pelo meio da prosa, quando ele quis saber qual era a minha, vi-me explicando com tais detalhes, que é como se já estivesse principiando a escrever o livro. A longa jornada de cinquenta anos de pesquisadora me faz ver hoje, que a situação de entrevista é o grande “laboratório” do sociólogo. Numa boa entrevista a gente não apenas colhe informações, como sistematiza as próprias ideias.

Às tantas, o garçom sugere um chopp. Por uma coincidência, falávamos sobre o mestre Meira. Vamos de chopp bem gelado e brindamos ao mestre, com quem Maurício teve as melhores aulas, com 12, 13 anos de idade. Acabado o tempo regular de aula, uma hora, uma hora e pouco, o Meira dizia ao jovem aprendiz: acabou a aula, agora vamos tocar. E trazia cervejas, dois copos, sem hora para terminar. Seriam mais duas, até três horas de um longo recreio, em que continua-se aprendendo e, quiçá, o mais importante: a criatividade, o improviso, deixar afluir a potencialidade artística de cada um. E foi assim que Maurício Carrilho se iniciou no violão e muito mais, com o Mestre Meira, Jayme Tomás Florence, esse maravilhoso violonista, compositor e professor de música nascido em Paudalho em 1909, e que formou tantos grandes na cena do choro brasileiro.

Eu acabara de desligar o gravador, quando chega o filho de Maurício vestido com as cores do Flamengo. Iriam juntos assistir ao jogo daquela noite no Maracanã. Hora de pai e filho tomarem um rumo e eu também.

O tempo havia mudado. Ventanias balançando as frondosas árvores defronte da Adega Portugália anunciavam tempestade. O primeiro Uber previa dezenove minutos de espera. Cancelei e chamei outro. Vinte minutos. Melhor esperar. Naquele horário e com aquele tempo não seria fácil. Maurício e o filho sugerem enfaticamente o metrô, mais rápido, livrando-se do trânsito terrível de final de expediente. Mas é nos percursos de carro e não embaixo da terra, feito tatu, que eu posso apreciar a beleza dessa cidade maravilhosa. Prefiro pagar o preço.

O caminho pelo Cosme Velho, Laranjeiras, é lindo! O motorista é um senhor de quem vejo, pelo retrovisor, um rosto cheio e alegre. Cabelos grisalhos, dirigindo calmamente num engarrafamento que quase não anda. Ao final da viagem, quando ele se virar para trás para nos despedirmos com um forte aperto de mão, ficarei sabendo que seu nome é Carlos Viegas e tem 68 anos.

O homem é um carioca apaixonado pela cidade. Vai mostrando cada prédio antigo pelo caminho, casarões coloniais, o Instituto Nacional de Educação de Surdos, a Bica da Rainha… Pergunta se eu conheço o Largo do Boticário. Estamos nos aproximando de lá. Ele me olha pelo retrovisor: a senhora se importa de perder mais uns minutinhos nessa corrida (na verdade, corrida de tartaruga) para conhecer esse Largo?

A chuva começara a cair. Não trovoada, como anunciavam os ventos. Uma chuvinha leve, benfazeja, para aplacar o calor. Ele para o carro dentro do Largo, pega uma sombrinha velha e vem abrir a porta para eu descer. Do pátio dá para observar melhor os casarões. Vamos caminhando poucos metros até a pontezinha do Beco, por onde passa o pedaço descoberto do Rio Carioca, correndo por sobre pedras, lembrando para mim os fiozinhos de rios que correm em Gajate, o torrão de terra na Galícia de Espanha dos ancestrais de meus filhos. Ao fundo daquele pedaço de rio descoberto, ele me mostra uma escadaria por onde as lavadeiras de outrora vinham lavar roupas, quando esse rio era de águas límpidas e corria solto pela cidade. Hoje, coitado, tem o destino dos metrôs, andando, quase sem fôlego, nos subterrâneos da terra, até se soltar no mar da praia do Flamengo.

De cavalos 

“Existe uma história zen sobre um homem e um cavalo. O cavalo está galopando rapidamente, e parece que o homem que o cavalga se dirige a algum lugar importante. Outro homem, em pé do lado da estrada, grita: ‘Aonde você está indo?’ E o homem a cavalo responde: ‘Não sei. Pergunte ao cavalo!’

Esta é a nossa história. Estamos todos sobre um cavalo, não sabemos aonde vamos e não conseguimos parar. O cavalo é a força de nossos hábitos que nos puxa, e somos impotentes diante dela. Estamos sempre correndo, e isso já se tornou um hábito. Estamos acostumados a lutar o tempo todo, até mesmo durante o sono. Estamos em guerra com nós mesmos e é fácil declarar guerra aos outros também”.

Gosto de parábolas. Gosto de aforismos. Na terceira leitura de Grande Sertão Veredas, anotei para mais de vinte aforismos, somente até a página 85 do livro. E publiquei-os como “Aforismos de João” aqui mesmo, neste blog. Trago para cá apenas o que se refere a cavalo. “Cavalo que ama o dono, até respira do mesmo jeito”.

Também gosto de mitos, todos os mitos. Houve uma época, quando ainda morava em São Paulo, em que frequentei festas de Candomblé, consultei os búzios, e lembro até de uma sessão de terapia em que Therezinha me perguntou, meio de brincadeira meio à sério: o que diria o Pai Alabi dessa situação?

Na mitologia do candomblé, o cavalo tem uma posição de destaque. Diferente, tanto do submisso cavalo de Guimarães Rosa, quanto do cavalo da parábola (será que posso chamar assim às pequenas histórias da sabedoria zen budista?) com que abro esta crônica, em que o cavalo avulta sobre o homem.

O mais bonito numa festa de terreiro, para além do colorido das vestimentas e do batuque irresistível dos tambores, é o momento em que baixa o orixá. Há uma transubstanciação, tal como a que ocorre no momento sublime de uma missa católica (com outro significado): O filho de santo torna-se cavalo para ser montado pelo dono de sua cabeça. E nesse momento, ele se torna o veículo de transporte da divindade para a terra. Vive, no transe, a divindade de seu orixá.

O orixá de cada pessoa é a sua identidade mais profunda com os elementos da natureza, que são os mais próximos do seu “ser quem se é”.  Cada pessoa carrega na sua personalidade esse “ser quem se é”, que vai sendo apagado por outro cavalo, aquele da parábola zen budista, que é a força de nossos hábitos.

O momento em que baixa o santo, é o momento sublime para quem o recebe, que dança a dança de seu santo, vive intensamente o seu eu interior, rasga a fantasia.

Talvez os filhos de santo dos terreiros de Candomblé careçam menos de fazer terapia ou análise do que nós, pobres mortais.

Um sábado no calçadão

Às cinco da madrugada ela começa a se espreguiçar na cama, o quarto ainda noite pelas pesadas cortinas. Ficar na cama depois de acordada, já sabia de longa experiência, é certeza de caraminholar. Vamos, mulher, coragem. Passa uns segundos sentada na beirada da cama para acostumar a vista ao escuro, e só então, cautelosamente, calça o chinelinho velho e confortável. Perde tempo em homenagem à preguiça, indecisão se noite ou dia… quando abre as cortinas e o sol já brilha. Ele já havia se despedido do banho matutino nas águas do Atlântico, quando ainda permitia que olhássemos diretamente na sua cara risonha.

            Abre a janela de par em par. Deixa entrar o sol e a brisa das madrugadas recifenses. Posta-se em pé na janela, uma perna descansando e a outra firme, espiando o mar. O sol se escondeu entre nuvens, e o oceano não está mais em seus bonitos coloridos de verde esmeralda e azul marinho. Porém, por um ou dois minutos, não há carros na avenida. Ela ouve o murmúrio do mar. Como se não existisse nada além de sua janela e a praia.

            Paramenta-se para sair. Eram cinco e meia quando principiou a caminhada pelo calçadão. Foi durante esta sabatina caminhada, que a Mulher do Sétimo Andar começou a ter umas ideias estravagantes.

            Pensou em ser prefeita do Recife. Como se para isso fosse preciso apenas o toque de uma varinha de condão, sem eleições, sem partidos, só um desejo. Ah, ela faria misérias. No bom sentido dessa palavra. Começaria pela avenida Boa Viagem, o cartão postal da cidade. Mandaria destruir toda pista dos automóveis. Na frente dos edifícios, faria calçadas uniformes, igual as de Paris, sem rebaixamento para automóveis. O calçadão permaneceria. Seriam retificadas e ampliadas a faixas de ciclismo. Carros não circulariam mais pela avenida. Adubado o terreno onde outrora andavam os automóveis, ali seria um canteiro de coqueiros e castanholas, e tudo mais que um bom paisagista seguidor de Burle Marx projetasse para o imenso jardim.

            Quem quisesse continuar com suas garagens e seus automóveis, tudo bem. Apenas teriam de circular somente pelas ruas e avenidas de trás. O trânsito ficaria um inferno mais do que já é. E a ideia é essa mesmo. Um incentivo para as pessoas descobrirem outras formas de se deslocar para a escola e o trabalho.

            Quando as ruas começassem a ser povoadas de pessoas ricas e pobres, as despesas com segurança pública seriam reduzidas à metade. Ruas cheias de gente dificultam a ação dos assaltos violentos. Os policiais dispensados mudariam de ocupação, para cuidar da jardinagem dos parques, que não cessariam de se multiplicar cidade afora.

            E o Recife deixaria de ficar atrás das outras capitais do Nordeste, quando nos anos cinquenta ele era líder de todas. Pois viriam repórteres do NYT, do Le Monde, da Times e do mundo inteiro, para ver o milagre de Pontevedra de Espanha aqui, nos Trópicos. E a cidade descobriria sua vocação turística. E entrou por uma perna de pinto e saiu por uma de pato, senhor rei mandou dizer que contasse mais quatro.

            Que quando a Mulher do Sétimo Andar começou a pensar nos grandes e ilusórios temas da economia… e a indústria automobilística, quando as pessoas descobrissem que estavam com mais saúde ao deixarem o carro na garagem?

***

Caminhando pelo calçadão, depois de ter desistido de ser prefeita da cidade, a Mulher do Sétimo Andar principia a olhar em volta, igual como fazia nos tempos em que escreveu “Diários do Pina”. Sente um prazer secreto em recordar ao vivo as cenas que já foram temas de suas crônicas. Jovens de branco à beira mar para fazerem álbuns de fotografia da formatura… casais saídos da farra da sexta feira, sentados nos bancos do calçadão, ora ainda aos abraços, ora em DRs, de que são grandes aficionados os casais gays. Alguns caminhantes são velhos conhecidos pelo bom dia.

É certo que mudou um pouco o cenário, com as novas barracas de coco. Elas hoje oferecem um recanto mais confortável aos que dormem ao relento. A surpresa foi ver um desses, cor branca, cabelos ligeiramente alourados. Até hoje, a Mulher do Sétimo Andar só vira dormindo no calçadão negros e pardos. Talvez um refugiado argentino?

***

Bom dia, meus queridos leitores. Não digo que estou de volta com a regularidade do tempo da pandemia, quando vocês me fizeram boa companhia. Minha escrita tem sido ocupada com outros assuntos. Mas de vez em quando dou uma incerta, e apareço para uma rápida visitinha domingueira.

Dia de Graça

Hoje foi um dia especial. Logo que acordei, ouvi o celular chamando na sala. Era Miguel, dizendo que estava a caminho. Sem explicações, como é de seu feitio, ele atendia ao meu apelo numa mensagem de e-mail:

“ (…) Você já me disse há tempos que não queria mais nenhuma comemoração. Respeito sua decisão. Mas esse ano, meu filho, se você quiser, venha passar a sexta feira aqui comigo. Podemos pedir uma comida japonesa. Podemos ver um filme na minha nova televisão, que você nem conheceu ainda. Mas se você não quiser vir, tudo bem. Beijo da mãe.”

Não contava que ele viesse. Quando chegou, corri à porta para lhe dar os parabéns. Quem me conhece e a meu filho primogênito, saberá avaliar a alegria que invadiu meu coração. Foi um dia de graça. Aniversário de filho sempre é um dia especial para a mãe. Naquele distante 14 de julho, a caminho da sala de parto, perguntava à enfermeira que conduzia a maca, “que dia é hoje”? E ela não compreendeu meu júbilo quando exclamei, “que maravilha, meu filho vai nascer no Quatorze Juillet, dia da queda da Bastilha!”.

Hoje ele fez a barba, eu cortei seu cabelo, um hábito que perdura desde a Quarentena. Um dia caseiro, pleno. A noite vimos os primeiros capítulos de um seriado da Netflix, “Transatlântico”, que uma amiga havia indicado a propósito de Walter Benjamin. Atirei no que vi, matei o que não vi.

***

Conheci Albert Hirschman em São Paulo, no verão de 1983. Foi meu vizinho de sala no mês que passou no Cebrap. Estava em licença sabática do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton, New Jersey. Havia passado quatorze semanas em seis países da América Latina, visitando projetos que receberam apoio financeiro da Fundação Interamericana. Naquele período no Cebrap, escreveu o primeiro esboço de um relatório preparado para aquela Fundação, sobre “Experiências de Base na América Latina”.

            Nessa época, aos 68 anos, Hirschman era economista conhecido e famoso. A meu juízo, já ultrapassara a idade de economista para entrar na de sábio. Conhecera a região Nordeste brasileira em pesquisas acadêmicas sobre a ousadia Sudene, que resultaram em um de seus livros mais conhecidos entre nós. E certamente foi nessa região que conheceu nossos cantadores em suas Pelejas, das quais José Paulo Cavalcanti Filho nos brindou com uma linda amostra na última crônica publicada na “Revista Será?”.

            Naquele verão de 1983, eu ocupava uma sala no andar superior da velha casa na Vila Mariana, onde ainda hoje funciona aquele centro de pesquisa, rua Morgado de Mateus, 615. Eu compartia uma sala com outra Teresa, no que seria, na antiga casa, um quarto. Com a reforma da casa, esse quarto repartiu-se em três salas. Para entrar nas duas salas individuais, o ocupante deveria passar pela nossa. Pois bem, todos os dias, o nosso ilustre visitante chegava lá pelo meio da manhã, trazendo uma sacola cheia de mexericas. Deixava uma na minha mesa e outra na de Teresa Caldeira.

Um dia, na sala do cafezinho, ele me disse que gostaria de conhecer os cantadores nordestinos que faziam desafios aos domingos na praça da Sé. Combinamos o dia. Calhou de ser um domingo ensolarado, sem chuvas. Havíamos contratado a babá para estar logo cedo com Miguel e Pedro, que tinham então 7 e 4 anos. Eu e Hamilton fomos buscar o professor e sua mulher, dona Sarah, no hotel. Fotos e algumas conversas na lendária Praça da Sé, que alguns anos depois seria palco dos maiores comícios pelas eleições diretas. Depois, voltamos para buscar os meninos, para irmos todos dar uma volta e almoçar na vizinha cidadezinha do Embu das Artes.

(Que lembrança essa que me despertou, vendo com Miguel a série Transatlântico. Albert Hirschman muito jovem, fugindo da sanha antijudaica do nazismo, na pele de um ator tão bonito como certamente ele foi). O banco da frente do carro ocupado pelo professor, com suas pernas compridas. Atrás, mulheres e crianças. Em casa, antes de pegar a rodovia Régis Bitencourt, tomou-se um cafezinho. Lembro da observação de Hirschman sobre a cesta de frutas: quanta banana, uma marca tão brasileira.

No Embu das Artes o casal se interessava por quase tudo; pelos quadros expostos nas calçadas, pelos artesanatos… Ele comprou uma sandália de couro cru, e se admirou de que finalmente ali era o primeiro lugar brasileiro onde encontrava um calçado do tamanho de seu pé gigante. Almoçamos uma comida muito típica dos domingos paulistas: frango com polenta.

***

Em 1989 fui fazer uma imersão de inglês em Washington por um mês, antes de enfrentar o primeiro pós-doutorado no MIT em Boston no ano seguinte. Tinha o endereço do professor. Escrevi uma carta manifestando meu desejo de visitá-los. Ele me respondeu prontamente, sugerindo o horário do trem, e que iria me esperar na estação. Cheguei ao final da manhã. Em seu carro, fomos primeiro a uma farm onde poderia encontrar morangos silvestres, pequeninos, sem adição de agrotóxicos. Além dos morangos com creme de leite, eles haviam providenciado cocadas para a sobremesa. Uma comida com toque brasileiro.

            Dona Sarah terminava os preparativos do almoço quando chegamos. Quanta diferença aquele casal de velhos, que sozinhos davam conta das comezinhas tarefas da cozinha, comparados com nossas senzalas que teimam em perdurar nas casas brasileiras… Muitos anos depois, já morando no Recife, ao fazer a reforma de minha cozinha, lembrei-me da pequena e bem equipada cozinha do casal Hirschman. Até quando terei a ousadia de dispensar a senzala?

Antes de me deixar de volta na estação de trem, ainda passamos na Universidade de Princeton. Era um domingo, tudo fechado. E ele, chave em punho, com um olhar azul e buliçoso que o ator do seriado conseguiu expressar bem, mostrou-me sua confortável sala de professor emérito (não pude deixar de lembrar o pequeno cubículo do Cebrap onde escreveu um texto de sabedoria), com portas abrindo para um imenso gramado. “Vim te mostrar só por um certo orgulho de quem chega ao final da carreira”.

Salve a pátria que acolheu tantos imigrantes ilustres durante o horror do nazismo!

Viva São Pedro!

Seis horas da manhã. O dia amanhece nublado e chuvoso. A Mulher do Sétimo Andar ouve o foguetório para as bandas de Brasília Teimosa, e se lembra que hoje é o dia de São Pedro. Recordou quando escreveu as primeiras crônicas, um Diário do Pina. Naquele tempo (disse Jesus a seus discípulos. Sim, e Pedro foi um dos primeiros, entre os pescadores. Largou tudo para seguir o Mestre, e depois se transformar na pedra sobre a qual se edificou, para o bem e para o mal, uma igreja).

Naquele tempo, dizia a mulher, o das primeiras crônicas, explorou cada pedaço desse Pina – que nasceu como morada de pescadores, até ser descoberto pelo judeu holandês, que atravessou de barco da Ilha do Recife para cá, e iniciou um comércio, fez crescer o lugar e deu origem ao nome que se mantém desde o tempo holandês no Brasil até hoje. Por isso, quando alguém lhe pergunta se mora em Boa Viagem, faz questão de logo corrigir o interlocutor: Não, moro no Pina, e não na Boa Viagem edificada para deleite de usineiros. A Mulher de Sétimo Andar não gosta muito dessa raça usineira, que carimbou tão forte a marca escravagista entre nós.

O Diário do Pina ficou para aquela mulher como um farol para suas caminhadas. Algumas pessoas, de quem nem sabe o nome, com as quais cruza por vezes no calçadão, são para ela velhos conhecidos, pois se transformaram em personagens de seus contos.

Quando principiou a explorar a praia de Brasília Teimosa, caminhando pela orla da avenida Brasília Formosa, gostava de sentir o contraste entre os prédios do calçadão do Pina-BoaViagem, com aquele outro calçadão, menos nobre, mais mal cuidado, porém com o brinde à vista e à audição. Lá o mar está bem pertinho, segurado por pedras para não invadir a calçada. Se as ondas estiverem raivosas, respingam nos poucos caminhantes. (São poucos porque os de lá preferem atravessar a barreira das classes sociais, e vir caminhar no calçadão Boa Viagem, cartão de visitas da cidade). As casinhas remediadas, dispostas em ruas irregulares daquele bairro, transportavam-na para uma infância na qual conviveu com paisagens semelhantes.

Foi na madrugada de um 29 de junho chuvoso como o de hoje, que ela descobriu de onde vinham os foguetes. Naquele dia, amparou-se da chuva num quiosque próximo à praça de São Pedro, vizinha à Colônia dos Pescadores. Viu chegar o arcebispo de Olinda e Recife para celebrar uma missa campal, à qual se seguiu uma procissão de jangadas em homenagem ao padroeiro dos pescadores. E nunca mais deixou de mandar nesse dia uma mensagem ao filho paulistano, parabenizando-o pelo dia do onomástico, tão comemorado entre os ibéricos quanto o aniversário de nascimento.

***

A chuva não dá trégua. A sexta feira, despedindo-se do mês dos santos festeiros, amanhece de novo debaixo d’água. De onde escreve, a Mulher do Sétimo Andar vê o mundo de fora nublado pelos pingos da chuva nos vidros das janelas. O barulho das rodas dos automóveis na avenida molhada suplanta o que seria o dos motores. Menos mal. Porém ambos encobrem igualmente a suavidade das vagas do mar beijando a areia. Do mar, ela vislumbra apenas o véu branco das ondas de um oceano sem cor.

            O que é transtorno nessa cidade ao nível do mar, cortada por rios, temerosa de que chuvas torrenciais ocorram junto com a maré alta, é festa no Sertão. Ah, as festas juninas! Aqui sim, em nosso inverno chuvoso e úmido, pode-se acender fogueira sem perigo de incêndio. A fogueira com a qual Isabel anunciou à Maria o nascimento de João. A fogueira para entreter o diabo fora de casa, para Ele não invadir nossa festa. A festa mais menina de todo calendário cristão, a inocente festa de São João.

            Seu João era um morador vaqueiro da Fazenda Bálsamo, no Agreste pernambucano. Ao se aposentar, ainda com força de trabalho e filhos de ajutório, resolveu-se a ir trabalhar em terras de Goiás. Quando a Mulher do Sétimo Andar (nos idos em que saía por esses rincões entrevistando o povo) quis saber por que ele voltara, quando lá estava tão bem de vida, o motivo foi um só: Dona moça, a senhora já viu um povo que não acende uma fogueira na véspera de São João?  

            Ano após ano, a Mulher do Sétimo Andar vê as festas juninas se afastarem das fogueiras, dos balões, dos lindos fogos de artifício. O palco e as apresentações de shows invadiram o arraial. Procura-se, como agulha no palheiro, onde encontrar apenas uma zabumba, um triângulo, uma sanfona e o império do rei do baião. Ah, a Banda de Pífanos do negro Malaquias…

            Certa feita, um doutor, dono das terras onde morava Seu Malaquias, quis saber dele se conhecia o hino nacional. Sim, sinhô. E sabe tocar? Sei, sim sinhô. Foi num dia de festa. No alto da fazenda, ia ser erguida uma cruz. Antes, num altar improvisado, tal como a Mulher do Sétimo Andar veria muito tempo depois na praça de São Pedro de Brasília Teimosa, seria celebrada uma missa campal. O Padre Miguel era o celebrante. Tudo correu bem até o clímax da festa. Depois da missa, enquanto se erguia o cruzeiro para implantá-lo no morro, Seu Malaquias, com a sua banda de pífanos, deveria tocar o hino nacional brasileiro. E ele tocou. Tocou um frevo, o hino dos Vassourinhas.

Festa de aniversário

Nos dias que antecedem o aniversário, ela se faz pensativa. Passa em revista, como um comandante de tropas faria com seus soldados, os aniversários passados de sua vida. O vestido meticulosamente escolhido nas lojas pelo olhar do artista, mal começava o mês de maio. Até que, dias antes da data, dizia, com seu jeito tímido, com um amor de poucas palavras, “acho que o vestido que vi numa boutique vai sentar bem em você”. Para experimentar, era tratada como rainha. As atendentes adivinhavam que não haveria barganha de preço com aquele homem elegante e bem apessoado, que pacientemente aguardava sentado numa poltrona o desfile exclusivo para ele.

            Não lembra de grandes festas. Os aniversários da casa paterna eram, principalmente, uma comemoração da família. O pai despertava todos, menos o aniversariante, logo cedo, e, ainda com roupas de dormir, eles o “acordavam” cantando parabéns, cada um com um presente na mão. Ela não lembra de nenhum aniversário em que já não estivesse acordada fingindo dormir para disfarçar a surpresa.

            O pai era o grande mestre de cerimônia nessas ocasiões. O assunto do aniversário principiava dias antes. Ele ameaçava, “Esse ano o presente vai ser um pinto pelado”. E todos riam, e aquilo ia criando a expectativa da surpresa. Até que um dia, no aniversário da caçula, foi encomendado mesmo um pinto vivo e pelado, que chegou no quarto piando dentro de uma caixa. Ela caiu no choro, mas logo foi consolada com os presentes de verdade. Ah, aquilo era uma festa!

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Este ano o 28 de maio caiu no Domingo de Pentecostes. “Quando chegou o dia de Pentecostes, estavam os discípulos reunidos no mesmo lugar. De repente veio do céu um ruído, como de vento que soprava impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam reunidos. E apareceram-lhes destacadas línguas como de fogo, pousando sobre cada um deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo, e começaram a falar em várias línguas, conforme o Espírito Santo os impelia a se exprimirem.” (Atos, 2, 1-11)

            No mistério da Santíssima Trindade, o mais simpático dos três é o Espírito Santo. O Deus Pai sempre lembra um pai severo, o que julga, o que pune. O Filho, nas parábolas dos evangelhos, é uma fonte inesgotável de sabedoria, mas também de controvérsias. José Saramago interpreta a crucificação de Jesus como uma espécie de auto-punição. Pois ele não teria sido o único recém-nascido a se livrar da espada de Herodes, que ceifou tantas vidas inocentes por sua causa? Mas será que Saramago não tinha era uma pontinha de inveja, porque os seus ídolos materialistas nunca foram objetos de obras de arte maravilhosas, a encantar nossos olhos em museus de todo o mundo? Melhor uso da tradição cristã fez Dostoiévsky. Impressionou-o tanto a pintura a óleo de um cristo morto, que usou-o como modelo para um dos grandes personagens da literatura, o Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin.

            Porém o Espírito Santo, ah, o Divino Espírito Santo…

            Pense num professor, tendo como único recurso a voz e a lousa. Explicar aos alunos do primeiro ano do Curso de Ciências Sociais a teoria da Ação Social de Max Weber. Estuda, faz resenha, prepara algumas anotações, acende um cigarro (naquele tempo se fumava em sala de aula). Então entra em campo o Divino. Aquele que habita em cada um de nós, como preferem pensar os budistas. Vem o sopro de um vento forte, as línguas de fogo, a inspiração. O “dia do professor” devia de ser comemorado no domingo de Pentecostes.

            Vejam bem. A imagem de Jesus é a cruz, o sofrimento. A imagem do Espírito Santo é uma pomba branca, a pomba que veio a simbolizar depois a paz entre os homens.

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Havia em Garanhuns um médico clínico geral e obstetra, que gozava de prestígio e, por que não dizer? também de poder. Trabalhou incansavelmente até a morte prematura aos 57 anos, vítima de um câncer avassalador. Antes do consultório, ele atendia em um ambulatório da paróquia da Boa Vista das sete às nove. Descendente de uma família católica e aristocrática (pois não é a aristocracia brasileira assentada na posse da terra?), guardou, vida afora, o espírito de militância juvenil do integralismo.

            Certa feita, Plínio Salgado, em visita a várias cidades do país, passaria um dia em Garanhuns. Os velhos integralistas voltaram a se assanhar. Organizou-se uma cerimônia com discursos, o hino integralista, o Anauê pelo bem do Brasil. Para a cerimônia, encomendou-se a um marceneiro habilidoso uma enorme Águia Branca, símbolo do integralismo.

            Acabada a comemoração ao grande chefe, a Águia Branca ficou jogada num canto da garagem na casa do médico. Até que um dia, a mulher do médico flagrou Mariquinha, a lavadeira da casa, ajoelhada defronte da Águia Branca, uma vela acesa, e ela cochichando um terço.

            “Pois não é do Divino Espírito Santo essa imagem, minha patroa?”

            E tudo vira folclore, assim como a festa do Divino Espírito Santo trazida pelos colonizadores portugueses para o Brasil.

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Vejam que a Mulher do Sétimo Andar não perdeu seu cacoete de começar uma história e sair devaneando por outras. Mas nisso ela está bem ancorada nas melhores tradições literárias. Agora mesmo, está lendo o romance de Laurence Sterne, A vida e as opiniões do cavalheiro Tristam Shandy, publicado na segunda metade do século XVIII por um obscuro pároco de aldeia, e que influenciou o nosso Machado de Assis das Memórias póstumas de Brás Cubas, assim como Virgínia Woolf, James Joyce, Samuel Beckett, entre outros. E como devaneia o narrador Tristam Shandy, sem seguir nenhuma linha reta! Vejam bem como essa mulher tem andado em boa companhia.

            Mas voltemos ao tema.

            O ano era 2018. A Mulher do Sétimo Andar decidiu que queria comemorar o aniversário no Central Park de Nova York. A bem da verdade, desde que completara setenta, ela vinha percebendo uma mudança no seu espírito. Passou a se sentir merecedora. Sempre ficara hospedada em hotéis de segunda naquela cidade cara. Dessa vez escolheu um bom hotel perto do parque.

            O simples motivo para passar o aniversário naquela cidade era porque lá, no Hemisfério Norte, o mês de maio é primavera.

            Na primeira vez que morou em Boston, encantou-se com as cores do outono, achou o inverno parecido com as estiagens do Sertão nordestino, e a primavera? Ali parece que havia um planejamento meticuloso para o desabrochar das flores. Por um tempinho, ela começou a sentir o cheiro bom de serragens de madeira espalhadas pelos jardins dos parques públicos, nas floreiras das casas e das lojas. E, surpresa, viu que um belo dia, apareceram as tulipas. Dali a pouco, as magnólias, as azaleas, as peônias… As rosas. Pareciam fossem programadas em computador para aflorarem em ordem, como um desfile de escola de samba.

            Em São Paulo, o tempo gostava de contrariar a Mulher do Sétimo Andar, com uma frente fria às vésperas do dia 28; no Recife, grandes chuvas para estragar a festa. Nada disso. Este ano, pensou, vou para a primavera. Na imensidão do Central Park. E foi. Passou um susto danado no desembarque, quando viu a mala, já retirada da esteira rolante, junto com outras, guardadas por policiais com cães farejadores. Não, ela respondeu com segurança, na mala trago apenas roupas. Fez seu melhor sorriso, encarou os policiais como fosse uma nativa branca, uma senhora com pouco mais de setenta anos; segurou a mala de rodinhas, e caminhou solerte e tranquilamente para o portão de saída. Somente fora, as pernas pegaram a tremer. Céus! Já pensou se descobrem o camarão de Cabrobó trazido para a viagem no Central Park?

Fragmentos de duas cidades

Ela chegou às 12:30 no hotel, nem tirou as roupas da mala. Esquina da rua da Consolação com a avenida Paulista. Bancas de revista com mil bugigangas, mas também com o Estadão, a Folha de S. Paulo e o Valor Econômico. Senta-se num café, pede uma porção de pão de queijo e um chocolate quente. Vai sentindo um prazer antigo, do tempo em que lia jornais em papel, em que o jornal trazia as programações da cidade. O cardápio é em QRcode, mas ela não precisa consultar, sabia muito bem o que queria.

            Como o Estadão diminuiu de tamanho… Somente uma página de “Cultura e Comportamento”. Soube então que aquela sexta-feira 5 de maio era o Dia Internacional da Língua Portuguesa. Chico César no Museu do mesmo nome.

            A Mulher do Sétimo Andar pensa: até agora não precisei usar nem aplicativo, nem login, senha, queerrecoude, nada disso. Que maravilha! Sentiu um conforto… Como se estivesse, naquela tarde friazinha e ensolarada do outono paulistano, visitando o tempo da pré-informática. Para completar o sabor de velho, chamou um taxi na rua estendendo o braço.

            Ao chegar no Museu da Língua Portuguesa, já não havia ingressos. Queria o que, mulher? Estamos em São Paulo. Há que marcar quase tudo com antecedência.

            Já anoitecera. Ir a pé até o metrô seria uma temeridade naquele centro de cidade antigo. Aí o acaso veio a favor. Um taxi para, e ela aguarda que a passageira pague a corrida. Espia a mulher que desce do taxi. “Mas você não é a Vilma Motta?” O dia de encontro com o passado prosseguia. Um abraço de reconhecimento. Cada uma catando na lembrança fragmentos. “Vai ver Chico César? Os ingressos estão esgotados.” “Sim, mas eu sou convidada, minha filha é diretora do Museu.” Ficaram uma fração de minuto ali paradas na calçada, meio sem jeito. Esses encontros trinta anos depois nos levam a ver no corpo da outra pessoa o estrago que o tempo faz no corpo d’agente. “Se eu vou de mãe, você vai de tia.” Segurou o braço da outra, e com pouco estavam sentadas nas primeiras fileiras do auditório.

            A Mulher do Sétimo Andar pensou: São Paulo ainda é minha casa.

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Quando caminha pela avenida Paulista, a Mulher do Sétimo Andar às vezes sente que está em outro país, porém onde todos falam português.

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Terça feira é dia de casa cheia no MASP: entrada gratuita. Jovens, colegiais, gente humilde, uma paisagem humana mais diversa do que o verniz costumeiro. A exposição de Gauguin, nomeada pelos curadores “o outro e eu”, retrata paisagens e personagens do Taiti. E os curadores pedem desculpas pelo artista. “É evidente que suas pinturas erotizam o corpo da mulher indígena, enfatizando uma suposta disponibilidade sexual aos olhos e às tintas do homem branco europeu.” Essa onda identitária, meus queridos leitores, costuma passar ao largo da história. Afinal, com que outros olhos Gauguin pintaria aquelas lindas mulheres senão com os dele? E no que a sensualidade jamais brigou com a arte, senão que se somou ao belo? Ora, senhores curadores, menos.

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“Marc Chagall, Um sonho de Amor”, no CCBB. Como se voássemos pelos andares daquele prédio antigo, acompanhando os animais e as figuras oníricas e surrealistas de uma pintura que é pura poesia, e na qual essas duas formas de expressão artística se fundem.
Houve um tempo em que eu tinha duas cabeças
Tempo em que esses dois rostos
Se cobriam de um orvalho amoroso,
Entrelaçados como o perfume e a rosa
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No primeiro domingo paulistano, a Mulher do Sétimo Andar passou a manhã no Museu do Futebol, que até hoje não conhecia. Demorou-se em cada uma das salas, repassou a própria vida em cada uma das Copas, viu os gols de Garrincha e Pelé. Mas sabem o que ela mais gostou de apreciar? Os papais de todas as idades mostrando o museu aos filhos ou netos. O Dia dos Pais devia de ser comemorado no Museu do Futebol.
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São Paulo é melhor para passear do que para morar. Bom para tomar um banho de cultura, rever o filho, a nora, os amigos, gastar dinheiro nos restaurantes italianos. Esse podendo ser a Trattoria do Sargento, o nordestino mais italiano de São Paulo. Severino Barbosa da Silva, aos 17 anos, já casado com Damiana, era mais um migrante nordestino que saía de Timbaúba, no interior de Pernambuco, para tentar a sorte no Sul maravilha. Consertou cascos de navios em estaleiro do Rio de Janeiro, fritou bolinhos de bacalhau no bairro de Santa Teresa, e desde o começo acalentou a ideia de ter um negócio próprio. Já com quatro filhos, morando em São Paulo, e depois de um longo périplo como cozinheiro por vários restaurantes, finalmente está hoje nos jardins paulistanos, onde se come, para além das fartas massas caseiras, a melhor salada da cidade.    
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Mas bom mesmo é olhar pela janela do avião quando o piloto avisa o pouso iminente no aeroporto dos Guararapes. De volta pra casa. Desde o dia em que a Mulher do Sétimo Andar pisou no solo deste mesmo aeroporto em 2006, de mala e cuia, nunca ninguém mais lhe perguntou, “mas de onde mesmo você é, com esse sotaque?”A identidade não é somente de idioma. É também de sotaque.

             No poema de João Cabral “De um Avião”, ele traça em círculos os momentos de decolagem. “Está o Ibura onde coqueiros, / onde cajueiros, Guararapes./ Contudo já parece / em vitrine a paisagem./ O aeroporto onde o mar e mangues,/ onde o mareiro e a maresia. / Mas ar condicionado, / mas enlatada brisa. (…) No segundo círculo, o avião / vai de gavião por sobre o campo. / A vista tenta dar / um último balanço. (…) eis os arrabaldes, dispostos / numa constelação casual; / eis o mar debruado / pela renda de sal; / e eis o Recife, sol de todo / o sistema solar da planície / daqui é uma estrela / ou uma aranha, o Recife, / se estrela, que estende seus dedos, / se aranha, que estende sua teia: / que estende sua cidade / por entre a lama negra.

            Josué de Castro, em um ensaio de índole sentimental, também se debruçou poeticamente sobre a cidade vista do alto. “Na contemplação de cada coisa – seja um quadro, um rosto, ou uma cidade – há sempre uma perspectiva ideal, através da qual o objeto contemplado exibe a sua mais rica aparência. (…) Descobre-se a perspectiva ideal, acolhendo com amor todas as inúmeras imagens que atravessam indecisas a porta de nossa pupila ávida e sentindo com emoção e fremente borbulhar do universo de formas que se vão ordenando, em consequência, na nossa consciência.”

            Compara o olhar para outras cidades, como Nova York, Rio de Janeiro e Salvador, que são mais bem contempladas de baixo para cima. Outras, das profundidades dos vales, como Tasco ou Granada. Outras ainda em seu próprio nível, como Paris e Chicago. “O caso do Recife é diferente. A cidade só se deixa captar na unidade de sua expressão urbana, quando vista do alto dos aviões em sua perspectiva vertical. É das alturas das nuvens que se recebem todos os eflúvios de sua poesia urbana, subindo violentamente através da atmosfera varada em todos os sentidos pelos reflexos da luz sobre as águas. Cidade construída numa planície encharcada, formada de ilhas, penínsulas, alagados, mangues e paúis, envolvidos e salpicados por manchas d’água por todos os lados, é impossível captar-se a expressão de seu rosto, do nível do solo ou do mar.”

            Já no taxi, a Mulher do Sétimo Andar pede ao motorista que tome o caminho da Orla. Ao avistar o verde esmeralda, pede ainda, por favor, nada de ar condicionado, vamos de mareiro e maresia. Ah, o cheiro da maresia…

           
 
 

Desapego

A última peça foi o vestido de noiva. Estava na prateleira de cima do armário, aquela que só se alcança com uma escadinha. Junto dele, uma sacola com roupinhas de bebê, outra com xales… Ocupando o maleiro do armário, pesadas peças de crochê, uma colcha, almofadas, uma rede. Tudo feito pelas mãos de artista de dona Otávia.

Foi uma longa semana na vida da Mulher do Sétimo Andar, a rever o tempo através de guardados. Guardados para, quem sabe, um dia…

“Esse dia chegou, mulher. A vida não seguiu teu script.” O dia de se desfazer do que já não usa, já não tem para ela nenhuma serventia e poderá ter para outros. Há mais de mês ela vinha separando tudo em sacolas grandes, que mais pareciam mudança de pobre. Foi mais fácil as roupas de loja, bijuterias, lenços de seda, adereços de carnaval, tecidos africanos, toalhas de mesa, guardanapos, chapéus, sapatos, bolsas, aquele baldinho de gelo de prata, presente de casamento que nunca teve serventia… Mas os bordados e crochês relutavam em sair do armário.

O que restou do enxoval de bebê. Lavado e passado a ferro, exposto numa cesta (cestas combinam tanto com bebês em histórias antigas, não é?), ficariam bem num museu. Aliás, era o que bem mereciam. Um museu das artes manuais de bordadeiras, rendeiras, costureiras desse rico Nordeste brasileiro em artesanato e cultura popular. Fosse Europa…

E ela, nas madrugadas chuvosas que antecedem o dia do Bazar, vai arrumando os guardados, tão abrigados que estavam em seus armários, agora expostos à vista de todos. Guardados que logo não serão mais seus. Um comércio em tudo diferente. Só para amigas, primas, irmãs, sobrinhas. Uma festa. Com bolo de noiva e champagne. De onde escreve, ela olha para o bazar e pensa, “que bom, o apurado dessa loja vai para o hospital infantil de Garanhuns, um sonho realizado de meu pai”.

A sala da Mulher do Sétimo Andar foi se transformando em loja. A arara alugada para pendurar vestidos e blusas só chegará no dia do bazar. Por enquanto, eles se ajeitam como podem nos cabides do chapeleiro da sala. Mas os xales e echarpes já estão num cabideiro, bolsas, cintos, colares e chapéus em outro. As peças que encimavam armário de som e gavetas de pastas suspensas e CDs (esses, coitados, em pleno desuso), foram expulsas por enquanto, para dar lugar aos brincos, anéis, pulseiras, máscaras…

***

Era um sábado. Dia sete de março de mil novecentos e setenta. Fui uma semana atribulada, a que antecedeu esse sábado. Muitas providências a tomar, a noiva se deu conta de que a cor do vestido do casamento fazia par com a do tecido do sofá que acabara de chegar do estofador. Foi a vez de dona Otávia desabafar mais uma vez o seu lamento.

– Minha filha, bem que eu queria fazer para você um vestido de noiva como é para ser, branco, com casamento na igreja. Se seu pai fosse vivo, ele não permitiria que você se casasse só no civil. Até Rosa Maria se casou na igreja, minha filha!

– Mas minha mãe, se tiver que entrar na igreja e passar por todo esse vexame, Hamilton não se casa.

Esse era o argumento decisivo. A mãe já se convencera, com a desculpa a dar para a família: o casamento no religioso seria na Bahia, com Dom Jerônimo de Sá Cavalcanti, naquela época prior do Mosteiro de São Bento em Salvador, para onde os noivos iriam no dia seguinte às bodas celebradas no civil em casa. O mesmo frade com quem ela fizera a primeira comunhão em Garanhuns.

A noiva, que se achava tão livre e tão distante dos rituais burgueses, via-se de repente com a mesma tensão nervosa própria a qualquer moça às vésperas do casamento. Sim, voltariam às lojas de tecidos no dia seguinte para, de última hora, a mãe fazer outro vestido. A mãe, que sempre vestira as filhas com modelos de revistas francesas, atendendo aos caprichos da moda e de cada uma. Que fez o enxoval de todos os netos, como fizera dos filhos, em cambraias bordadas por ela, com bicos e rendas finas.

Estavam justamente conversando sobre esse assunto, quando chegam duas amigas do peito, Janice Japiassu e Lucila Bezerra, trazendo o presente de casamento. Naquele tempo não carecia aviso prévio para se chegar à casa dos amigos. Entraram na prosa de mãe e filha. Quiseram ver os vestidos do enxoval da noiva.

E foram elas, como fossem enviadas por minhas orixás, que até então eu nem sabia que desde sempre estiveram na minha guarda, elas que sugeriram usar um dos vestidinhos que fora feito como parte do enxoval. Estava resolvido o problema.

Espio agora para o vestido azul, de crepe de seda, com leves ondas na horizontal, com as cores do oceano que vejo de minha janela em dias de sol. Como eu não soubera que era esse o vestido? Continua igual, com as mesmas cores em diversos tons de azul, verde claro, mostarda, branco. Lindo, curtinho, como era moda. Adornará o corpo de alguma jovem, filha de minhas amigas, de minhas irmãs. Para mim, ficará no álbum de fotografia em preto e branco, vestindo uma noiva alegre. E a risada gostosa de meu tio Adriano, ele e tia Ritinha nossos padrinhos de casamento, dizendo que nunca ouvira um “sim” de noiva com tamanha convicção.