Conversa de Cordas

Num sábado chuvoso de março, o inverno chegando, chuva com saudades do verão – dá fuga para uma caminhada –, saio de casa a pé pela rua Capitão Rebelinho, rua que segue como Amazonas. Nessa Amazonas estava o meu destino. Eram duas e meia da tarde. O anfitrião da casa me espera com uma cerveja geladinha. Gravador do celular ligado (ah, quanta diferença dos pesados gravadores de fita cassete de minhas primeiras entrevistas…), vejo-me de novo no mundo fascinante do Choro.

Retomo uma “Conversa de Cordas” principiada lá atrás nesse blog. Entra em cena mais um personagem. Este, bom contador de histórias, uma memória privilegiada. Antes da Pandemia, quando nos reuníamos às sextas feiras em uma salinha acanhada do bar Antiquários, quando a noite já avançava pela madrugada, eu sempre lamentei que o vento levasse a prosa de Nuca Sarmento. Dessa prosa, compartilharei hoje alguns fragmentos com meus leitores.

Estou certa de que essa conversa de cordas vai longe… pois ainda nem transcrevi a entrevista gravada com Luiz Nassif em São Paulo. Ele se referia à vasta produção musical de Pernambuco, frevo, maracatu, baião, ciranda, coco… Mas foi sobretudo o Chorinho que o levou mais de dez vezes ao Recife, para compartilhar com os de lá rodas de Choro. Na entrevista, Nassif se referiu a Canhoto da Paraíba como um divisor de águas na história do Chorinho brasileiro. Nuca Sarmento foi a pessoa certa para pintar em cores vivas a figura de Canhoto da Paraíba. Sem pressa na sua conversa pausada, ao ritmo recifense do português castiço, bonito, de frases bem pronunciadas. Um encadeamento tão harmonioso na fala quanto no seu canto e violão.

Deixemos o mestre Canhoto esperando na sala. Visitemos primeiro o mestre Nuca, que em junho vindouro completará sessenta e seis anos.

– E a música, Nuca, como entrou na tua vida?

Aos pouquinhos, sem antecedentes na família. O pai, telegrafista, tinha bonita voz. A mãe, sua primeira ouvinte de arroubos juvenis, entusiasmado em soltar a voz para imitar os seresteiros. E ela dizia, sem pensar que aquele puxão de orelhas seria decisivo na carreira do futuro violonista, cantor e compositor. “Você não está cantando, meu filho, está gritando”. A voz da mãe era maviosa, tipo a de João Gilberto. João Gilberto foi personagem que marcou a trajetória de Nuca Sarmento.

Influenciado pela época de sua juventude, Nuca havia enveredado pela Jovem Guarda. Nesse tempo, fazia parte de um conjunto de música que tocava em bailes à noite, em boates como “Eu e tu”, “Cancela…” Mas também acompanhava os festivais da Record, torcia pelos concorrentes com todo fervor de quem defende as cores do time de futebol. E assim foi conhecendo o mundo da música. Percebeu que Roberto Carlos, Caetano, e muitos outros, eram influenciados por João Gilberto. Precisava conhecer mais a música desse baiano de Juazeiro. Nessa época, com dezesseis anos, a namoradinha lhe presenteou com uma radiola portátil. No dia seguinte, com um dinheirinho do couvert das noitadas, foi na Aki Discos, na rua Matias de Albuquerque, e passou a tarde ouvindo todos os discos daquele gênio de nossa música. Voltou para casa tendo comprado os quatro LPs existentes na loja.

Mais ou menos por essa época foi aberta uma Casa de Serestas em Tejipió, o bairro da cidade do Recife onde nasceu Nuca Sarmento. Foi então que ele começou a ouvir o Chorinho. Não perdia noite. Já não se interessava pela Jovem Guarda. Com o tempo, conseguiu um lugarzinho para tocar no intervalo dos músicos. E foi lá que conheceu Canhoto da Paraíba, também um divisor de águas na vida de artista de Nuca Sarmento.

Enquanto o conjunto de Canhoto tocava, Nuca não saía de perto, prestando a maior atenção. Quando terminava a apresentação, os músicos se sentavam numa mesa grande para jantar. Nuca ia se aproximando de Canhoto. “E aquele arranjo que você fez na música Chão de Estrelas?” Quando terminavam a comida, Canhoto, que daria carona em seu carro para todos os demais membros de seu conjunto, não tinha pressa. Ensinava arranjos a Nuca. E os outros reclamavam: “Vamos embora, Canhoto, isso é um tetéu, parece que não tem sono”. E Nuca até recebeu a composição de uma música, que se perdeu, como tantas, o “Choro do Tetéu”.

Daí por diante, Nuca Sarmento começou a frequentar a casa de Canhoto da Paraíba, que morava no bairro de Sítio Novo, em Olinda. E chegou a registrar detalhes da vida do músico paraibano em um livro datilografado em papel A4, que se perdeu na separação do primeiro casamento. Das histórias que Canhoto lhe contava… Depois de já ser músico com fama nacional, Canhoto voltou à sua terra, Princesa Isabel. Lá encontrou um amigo de infância, desempregado, com doença de Parkinson. E o amigo: “Ô Chico, rapaz, você é famoso no Recife. Arruma um emprego para mim”. “Arranjo sim, amigo velho. No Mercado de São José”. “E o que vou fazer nesse mercado?” “Você vai botar canela em pratos de papa”.

Era espirituoso, Francisco Soares de Araújo, o Canhoto da Paraíba, como ficou conhecido. Olho a foto dele na capa do LP com uma bonita dedicatória a Nuca em 3 de junho de 1995. Um rosto redondo feito o de Luiz Gonzaga, cara inconfundível de sertanejo nordestino, um riso aberto. Na foto do disco, Canhoto, Zé do Carmo, Antônio Carlos Barbosa, Dona Cêça, Rossini e Jacó do Bandolim.

Decisivo na carreira musical de Nuca Sarmento foi seu irmão mais velho, Eriberto, de saudosa memória. O Camarada, como Nuca a ele se refere carinhosamente. “Não fosse o Camarada, eu não teria me encaminhado para a música”. Ainda menino, Nuca assistia às aulas de violão do irmão. À noite, depois que Eriberto pegava no sono, ele ia, pés de lã para não acordar o irmão que dormia num quarto só dele, e, subindo em um tamborete, tirava o violão de cima do guarda-roupa. Trancado no banheiro para ninguém ouvir, tentava tirar uns sons.

O pai era habilidoso, fazia qualquer conserto em casa, tinha todo tipo de ferramentas. Nuca resolveu fazer seu próprio violão. Uma lata de goiabada, o bojo. O braço, um cabo de vassoura cortado ao meio na vertical. Para as tarraxas, parafusos. E três cordas de fios desencapados. Como não tinha os trastes, que é o que divide as notas, tinha que exercitar bem os ouvidos. Um primo, vendo o interesse do menino, lhe deu um violão velho, que ele recuperou com esparadrapo e comprou cordas novas de aço. E assim, aproveitando o que a vida em casa lhe oferecia, Nuca foi desenvolvendo sua arte.

Em 1969, o “Camarada” conseguiu o primeiro lugar em um Festival Nordestino de Música Popular e ganhou como prêmio um carro Dodge Dart da Chrysler. Tinha vinte e um anos e Nuca era um garoto de seis. Um festival importante em que concorreram, junto com Eriberto, cantores em começo de carreira e que depois viraram sucesso, como Alceu Valença, Fagner (sua música era nada menos que As velas do Mucuripe). Era a época da Tropicália e a música composta por Eriberto e defendida por um conjunto chamado “Os Diamantes” (tipo Beatles) e a orquestra do maestro Duda, tinha o espírito da tropicália.

Nuca sonhava em fazer música, ser compositor. Seguir a trilha traçada pelo Camarada. A primeira parceria dos irmãos nasceu na cozinha de casa, uma casa nova que o pai construíra no vizinho bairro do Barro. Nuca ainda estudante de colégio. Com o primeiro samba, apresentado num Festival em Jaboatão, tiraram o terceiro lugar. Fizeram juntos um segundo samba. Depois, um frevo, onde inovaram, pois neste havia um contracanto. Mas tiraram apenas o quarto lugar e somente os três primeiros colocados fariam jus ao prêmio da gravação. Mas então, uma bela surpresa. São procurados por Aguinaldo Batista, organizador do festival, e comunicados de que haviam recebido menção honrosa e, portanto, também seriam premiados com a gravação. Foi o frevo “Mela-mela”. 1973, plena ditadura, censura, foram obrigados a retirar da letra a palavra “mela-mela”, pois o Corso de carnaval na Avenida Conde da Boa Vista, com a divertida prática do mela-mela, acabara de ser proibido. No lugar, colocaram as palavras “abre alas”. Aos censores da ditadura, tão mal preparados para o ofício, escapou o título do frevo, que continuou o mesmo.  

Vai começar o jogo do Campeonato Nordestino. Uma bandeira vermelha e branca está estendida na janela da sala de Nuca. Chega Vinícius lá de dentro para assistir ao jogo com o pai e torcer pelo Náutico. Os cachorrinhos se agitam com a chegada de Lane da rua. Hora de encerrar a entrevista.

Três homens e quatro cães

21 de abril de 2022. Depois de uma véspera com chuvas invernosas intermitentes, o sol desponta na quinta feira dentro do esplendor do mar. Nasce sem nuvens que o encobrissem, no horário costumeiro das cinco e meia da madrugada. No calçadão, vários personagens são velhos conhecidos da Mulher do Sétimo Andar. Chama-lhe a atenção um negro de estatura média, belo corpo, não teria mais que trinta anos. Corre no calçadão ou beira mar, dependendo das condições da maré. Os dois pequenos cães que o acompanham não são presos em coleiras. Imagino-o com um em cada braço para atravessar a avenida. Corre a passo regular e rápido, descalço, vestindo apenas um short de praia preto e um boné vermelho.

“Os outros cães que se segurem nas coleiras, porque os meus andam soltos”, parece dizer o moreno do mar, totalmente entregue a seus passos ritmados. Assim também procedeu o diretor do Colégio do Padre, quando a diretora do Colégio das Madres pediu para que, justamente num feriado de Tiradentes, combinasse o horário em que sairiam os alunos internos para a matinê do Cinema Jardim, para que ela mandasse as suas alunas internas em horário diferente. Ao que o padre respondeu ao mensageiro do recado: “Diga à Madre que meus cabritos estão soltos. Ela que prenda suas cabrinhas”. Terá sido essas mesmas as palavras do padre? Mas que importa? O causo eu conto como o caso foi.

Quinta feira e a Mulher do Sétimo Andar ainda não tivera uma ideia para a crônica domingueira. Foi quando cruzou com aquele personagem negro vistoso, a correr com os dois cachorrinhos brancos, e assim principiou a escrever. Já houve semana em que na sexta feira ainda não escrevera uma linha. Que terá dito daquela vez? E por que o diabo dessa mulher insiste em escrever, se para isso não tem obrigação alguma?

Ora, diria ela, escrevo para não enlouquecer. “Esse chavão é velho, mulher. Arranja outro”. Outro dia respondeu ao comentário de um leitor: “Escrevo porque gosto. É o que me mantém viva.” Hoje em dia, ela perdeu a veleidade de publicar em papel, em editoras, com lançamento de livro, matéria na imprensa. Isso já fez muito, no tempo das pesquisas e do ensino.

Hoje ela escreve crônicas com o mesmo espírito com que escreveria cartas. E gosta de saber que para estas existem destinatários. Outro dia uma leitora comentou: “Está pronta para voos mais ousados”. E ela, com seus botões: Memórias? Não serão vendidas no atacado, mas aqui mesmo, no verejo.

Ah, os destinatários dessa Mulher do Sétimo Andar… Ora se isso tem comparação com os leitores invisíveis de um livro! Às cartas, eles lhe retribuem com mimos. Quem não gosta de receber mimo? Dádivas. Sem preço fixado no mercado. Artes. Fotografias do amanhecer, o mesmo que ela presenciara ao vivo. Pode até ser resultados e análise em primeira mão de pesquisas eleitorais. Trocas. Outros querem saber detalhes, sugerem temas. Ou comentam algum pedaço da crônica, que chega a cada um conforme seus interesses. A cronista contenta-se com tudo. Um simples bom dia em retribuição. Ou até ver os dois tracinhos em azul na tela de seu celular.

De uma feita, ela pediu a um de seus leitores, no rol dos três melhores, que lesse um parágrafo de apresentação de seu ensaio de romance. Data vênia, ele comparou aquilo a uma lista de supermercado e sugeriu: “Corta tudo. Deixa apenas as cinco palavras da última frase. Você sabe escrever melhor”. Quanta distância da província em colóquios acadêmicos, uns elogiando os outros!

Crônica é uma literatura leve, qual surfista à superfície das ondas. Ofício distinto do romancista, mergulhador. Terá coragem essa mulher de tornar público o que vem explorando nas profundezas do mar?

A Mulher do Sétimo Andar é chegada a fazer isso. Escreve lá em riba, no título da crônica: Três homens e quatro cães. E põe-se a divagar, seguindo o fluxo dos pensamentos que viajam com ela nas suas caminhadas. Desculpem, queridos, volto o fio à meada.

22 de abril de 2022. Outro personagem do calçadão. Também é negro. A Mulher do Sétimo Andar se acostumou a estimar a idade dos caminhantes pela postura do andar ou correr. Esse terá cerca de sessenta anos, um metro e oitenta e cinco de altura aproximadamente. Veste-se à vontade, porém elegantemente: bermudas cáqui com vários bolsos, camiseta marrom claro com detalhes em lilás, do mesmo tom do lilás do boné. Caminha sem pressa, usando uma sandália de dedo de boa marca. Talvez roupas e sandálias compradas em Miami. Imagino-o funcionário público aposentado de alguma carreira no judiciário.

Também leva um cão de raça pequena a passear sem coleira. A Mulher do Sétimo Andar segue-o de perto, adaptando seu ritmo de caminhada ao dele para observá-lo melhor. Vê quando o cãozito faz festa com uma cadelinha, e ele segue impassível, apenas olhando para trás quando já mais distanciado do enlevo canino. O obediente cão volta a segui-lo de perto.

A Mulher do Sétimo Andar apressa o passo, ultrapassa o meretíssimo, e simula um alongamento num tronco de coqueiro, aquele tipo de alongamento de quem parece estar tentando derribar a árvore com as duas mãos, enquanto as pernas se alongam alternadamente. Faz isso na direção contrária, de tal formas que possa ver o personagem de frente quando ele a ultrapassar.

Passa sério e percebe que está sendo visto por trás dos óculos escuros daquela mulher. Barba branca, bem aparada, óculos de grau sem proteção solar. Miopia avançada. Não terá feito ainda cirurgia de catarata. Apenas retribui o olhar, sem sorriso. Uma lorde. Há que ter havido nobres na sua ascendência africana. Fosse essa caminhada no calçadão de Pituba, na Bahia, um personagem mais comum. Aqui no Recife, capital da Casa Grande, os negros mais raramente se distanciam da Senzala.

Dia abençoado de bonito e ensolarado, essa sexta feira imprensada entre um feriado e um sábado.

23 de abril de 2022. Uma desfeita com o sábado, que amanheceu anunciando chuva. A Mulher do Sétimo Andar cruza com várias carroças humanas no calçadão, a caminho de alguma réstia de sol em seus pontos de venda na areia da praia. Um deles, velho conhecido seu, banguela, corpo curvo ao peso da carroça lotada de cadeiras, guarda sóis, isopor com gelo, bebidas. Seu bom dia é o mais caloroso dos poucos que restaram depois da pandemia.

Aparece o terceiro homem com o quarto cão, pequeno e branco como os três que o antecederam nessa história. Porém o bichinho está segurado numa coleira. O homem é branco. Tem cara de vovô. Caminha pouco, logo se senta no banco do calçadão, o cachorrinho ao lado dele. Fica para trás. A mulher pensa: faltou melanina nesse homem. E segue seu caminho de volta pra casa, com cenas e diálogos do filme de Lázaro Ramos ainda frescos na sua memória.

Rol

Do lugar de onde escreve a Mulher do Sétimo Andar, ela descansa a vista da tela do computador em três cenários. À esquerda, o Oceano Atlântico com a imensidão de seus verdes, o murmurar das ondas na madrugada, a areia cor de areia. Vê também algumas copas verdes de castanholas e coqueiros, que, à altura de sua vista, sentada na cadeira, aparecem como fossem imensos vasos de planta suspensos no ar.

À Frente, quatro pequenas prateleiras com um metro e quinze de largura. Como a altura entre elas é apenas de quinze centímetros, acomoda bem, sem litígio entre seus habitantes, pequenos artesanatos, desses que a gente vai acumulando de viagens pelo mundo, ou vestígios d’antanho. Na primeira, uma banda de pífanos, do Alto do Moura. Dois grupos de retirantes, um, cor de barro, o outro, colorido. Caminham na direção do mar. Uma coleção de minúsculas panelinhas de barro de casinha de boneca, mimosas, com florzinhas de nada pintadas com esmero, da feira de Garanhuns. Fosse uma cozinha colorida em tons fortes de azul marinho, azul claro, verde, vermelho, cor de rosa. No meio deles, feliz da boa companhia, um presente do filho caçula: uma cerâmica de barro cru, escrita embaixo o nome ilegível do artesão e o ano de 1973. Nessa pequena peça, há um tablado, em cima do qual uma mesa com livros e cadernos. Uma mulher à mesa, sentada na cadeira, escrevendo no caderno. Numa placa na borda da mesa está escrito: Socióloga.

Na segunda prateleira, patos de muitas viagens nadam em direção ao mar. Atrás deles, ecleticamente, há um cachimbo da paz dos índios astecas e uma embalagem para cigarros sem filtro de couro trabalhado, presente de um galego, irmão, o mais baiano que ela conheceu, o velho e bom Calixto. Contém um brasão atrás e, à frente, uma cena de tourada, o vermelho da indumentária do toureiro muito vivo ainda, como se vida tivesse aos olhos da mulher, que relembra uma das mais lindas e coloridas cenas que viu pelo mundo, uma tourada.

A última prateleira conversa com a primeira. Bois de barro, cavalo marinho, um cofrinho de guardar moedas de menino pequeno, três pequenos vasos de flor feitos de  cerâmica vulgar, dessas cujo dourado das palavras e das bordas brilha ao sol, tendo num deles escrito “lembrança de Garanhuns”. Nos dois extremos dessa prateleira está a África: um pé de baobá minúsculo feito de palhas pintadas; uma negra vestida de branco, com o ojá na cabeça, comprada em janeiro de 2019 numa feira de rua da Guiné Bissau.

A terceira prateleira contém os barcos menores da Home Fleet. Na marina da Mulher do Sétimo Andar, há barcos do mundo inteiro por onde viajou com o marido, que gostava de comprar ou ganhar barcos e carros antigos. Uma barquinha de Salem, o lugar das Bruxas, cenário de Edward Hopper na Nova Inglaterra, onde existe a ele dedicado um museu. (Ah, quantos museus essa mulher visitou na companhia de seu marido! Com ele, artista plástico, aprendeu segredos das cores, dos estilos…). Mais três barquinhos de além-mar. E cinco minúsculas embarcações, verdadeiras nanotecnologias, dentro de lâmpadas sem uso. Artes nossas.

A marina com os barquinhos da terceira prateleira conversa com outra, que a Mulher do Sétimo Andar pode ver enquanto sentada à mesa de trabalho, se olhando para o lado direito.

Há uns sete anos, ela chamara seu marceneiro, para quem encomendou duas prateleiras grandes, da largura de toda parede da sala com vista para o mar, medindo cinco metros e quarenta. Mandou afixá-las no alto da parede, à altura da vista e não das mãos. Há que usar escada para tirar a poeira dos objetos que ornam essas prateleiras. Lá está, ao lado esquerdo, o restante da marina. Barcos maiores, de muitas procedências, todos pacientemente esperando a Guerra do Fim do Mundo. São sete embarcações. Duas delas, de tamanho menor, estão por sobre um baú de madeira de lei, encomendado por uma moça apaixonada que, em meados dos anos de 1930 do século passado, ali guardava as cartas do noivo, cartas de amor, com fechadura e chave para que os primos irmãos não devassassem seus segredos.  Uma imagem negra de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, e uma figura de madeira feita como ex-voto e ali representando uma entidade mítica, compartilham o espaço com as embarcações e o baú.

***

Quinze de abril de dois mil e vinte e dois. Sexta Feira da Paixão. Procissão do Senhor Morto. Nos alto-falantes pendurados nos postes de rua de Garanhuns tocava O Lago dos Cisnes de manhã à noite, expulsando nesse dia Nubia Lafayete, Nelson Gonçalves, Orlando Silva…

A procissão de Bezerros. Zuzinha Guilherme e Ioiô Guilherme cantando dolentes hinos, acompanhados pela mesma banda de música dos dobrados em dias de festa. Bandas de música herdeiras do Passo Doble ibérico. Meu pai chorando na janela da casa na rua da Matriz, espiando a banda passar tocando um dobrado. “No céu, no céu, com a mãe de Seu Ioiô estareeee ei”, cantava a velhinha na procissão, postada logo atrás de meu avô.

Na procissão de Nossa Senhora do Carmo, padroeira do Recife, que sai da Igreja dos padres carmelitas da rua Dantas Barreto nas tardes do dia 16 de julho, predomina a cor amarela. Das flores trazidas pelos fiéis. Das que se vendem na rua. Das vestimentas de mais da metade dos que vão à procissão. Porque Nossa Senhora do Carmo vem a ser a mesma Oxum trazida da África, dona dos rios e das cachoeiras. E quem ainda quiser apreciar vestígios da religião católica do Brasil, herança dos tempos coloniais, há que assistir a uma procissão de Nossa Senhora do Carmo no Recife.  

A procissão do Senhor Morto de Olinda. Os mesmos músicos que no carnaval sobem e descem as ladeiras tocando frevo na festa pagã que antecede a Quaresma, acompanham a procissão com hinos religiosos de antigamente. Músicas que há muito tempo a igreja católica se esqueceu de cantar nas missas, e passou a macaquear os evangélicos. Nem assim conseguiu chegar ao povão, que prefere as promessas de consumo dos pastores.

Procissão do Senhor Morto. As ruas se vestem de roxo. O nosso país está vestido de roxo, esperando algum colorido de carnaval.

Papéis acumulados

“Minha querida Teresa:

Nos últimos tempos, ando rasgando papéis acumulados muitos anos e que, de repente, nem sei por que guardei. Entretanto surge, vez em quando, belas compensações, e uma delas trouxe-me um verdadeiro alumbramento.

Encontrei – guardadas por Dulce – algumas mensagens que recebemos quando do nosso casamento em 1949 e lá se vão 67 anos decorridos. Entre elas, uma se destaca, além do carinho e atenção que a reveste.

A surpreendente verve poética de um querido amigo e médico dedicado chamado José Antônio Sales de Melo (Doutor Sales), expressa num singelo cartão que reproduzo para você e toda a família (claro que o original é muito importante e guardarei). Observe que, pelas circunstâncias, a sua inspiração foi lépida e pronta. Já se vê que suas competências iam muito além da medicina!

Beijão afetuoso para todos de Ivan Rodrigues.”

No verso do minúsculo cartão de visita do médico está escrito:

“Ivan:

Minha profissão é de escravo! Um chamado ingrato tirou-me o prazer de assistir ao seu casamento. Mas, enquanto trabalhava, meu pensamento estava com você e Dulce junto do altar, desejando-lhes as melhores felicidades. E nessas divagações surgiu esta quadrinha para vocês:

Que a vida seja de encanto / Pra Ivan e sua amada / E Deus lhes cubra com seu manto / Da ventura desejada.

Garanhuns, 7.7.49”

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A comemoração (em memória) dos 100 anos de meu pai, pelos familiares e amigos, aconteceu, primeiro, no Mosteiro de São Bento de Garanhuns. Houve uma missa, celebrada por Dom Gerardo Wanderley, àquela altura, 2005, já velho e ainda mais afiado nas palavras. Contou algumas histórias do Dr. Sales, que era um grande contador de histórias. Da velhinha, paciente dele desde sempre, no leito de morte pedindo para o Doutor Sales chamar o Prior do Mosteiro para a extrema unção. Confessou-se, recebeu os últimos sacramentos e houve um diálogo com o velho monge.

– A senhora quer ir para o céu?

– Quero Dom Prior. Mas não tem avexame não.

Em Garanhuns há um hospital infantil de referência para a região do Agreste Meridional de Pernambuco. Chama-se Hospital Palmira Sales. Fez parte das comemorações uma visita a esse hospital, onde foi descerrada uma placa e duas pinturas à óleo, uma de minha avó Palmira, a outra de meu pai.

Aquele hospital nasceu de um Ambulatório mantido pela paróquia da Boa Vista de Garanhuns, um bairro alto da cidade. Nos anos quarenta e cinquenta do século passado, aquele bairro era de moradias modestas, carentes de serviços médicos. Antes de começar a atender no Consultório, às nove horas da manhã, o Doutor Sales, das sete às nove, dava consultas gratuitas naquele Ambulatório. O Padre Matias, um holandês que adorava cerveja, era o pároco da Boa Vista. Ambicioso, começou a elaborar um plano para transformar o ambulatório em um hospital infantil. O Doutor Sales comprou a ideia. Acrescentou a seus muitos expedientes de trabalho, os contatos com empresários que se dispusessem a contribuir para a construção do hospital.

E assim foi feito. Lembro que fomos todos de casa para o dia da inauguração. Era uma daquelas noites invernosas de Garanhuns. Eu e minha irmã mais nova vestíamos capa de frio branquinha de lã, feitas pelas mãos de artista de minha mãe. Ambas dormimos no colo dela, enquanto duraram os enfadonhos discursos. Voltamos para casa dormindo no mesmo colo, aquele sono bom de menino pequeno, que desejaria que a viagem de carro nunca acabasse, e pudesse ficar dormindo a noite inteira naquele colo quentinho e balouçante.

Ficaram as histórias de meu pai, patriarca, sentado à cabeceira da mesa às refeições de casa, deliciando-se em ter ouvintes para os causos que ele contava. O discurso do prefeito: Em nome do município, ele agradecia a colaboração do Senhor Vitta, ali representando também seu irmão que não pudera comparecer, o Senhor Fratelli.

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A notícia da morte de Ivan Rodrigues levou-me a essas reminiscências. Fui cascavilhar um arquivo gordo ao qual havia nomeado “Vestígios”. Obrigada, Ivan, por me fazer revisitar esses vestígios.

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10 de abril de 2022. Minha mãe estaria completando hoje 107 anos.

Ontem seus quatro filhos ainda vivos – morreu Plínio – se reuniram na casa de Teresa. Estavam todos ansiosos por aquele almoço, marcado para uma hora da tarde. Denise ligou ao meio-dia, já pronta, quando Teresa ainda ia tomar banho. Chegou pouco depois. Totonho também chegou antes da hora. E Rosa, pela primeira vez desde o início da temporada recifense, tomou o café da manhã antes da hora costumeira (meio-dia), contentando-se só com as frutas.

Quando a anfitriã chegou à sala, já estavam todos muito bem acomodados: Rosa, no lugar que ela escolheu como seu, um certo recanto do sofá com vista para o mar; Totonho na rede; Denise entre os dois, no outro sofá. Teresa sentou-se na poltrona. Reinou o espírito da casa de Garanhuns, da casa dos avós em Bezerros. As histórias de família foram motivos de riso. Não houve cobranças porque ao passado nada se cobra. Vivemos uma epifania.

Recife feia

A Mulher do Sétimo Andar saiu a caminhar como faz todas as madrugadas, sem lenço e sem documento, mas o sol não é o de quase dezembro. É o sol ameno dos dias outonais do Recife. A pele branca agradece os dias nublados. Já retornava para casa em passo rápido, quando vê o sorriso nos olhos do Pintor das Madrugadas na direção contrária. Conversam rapidamente, amenidades, pois cada um tem sua meta a cumprir na caminhada. A próxima exposição dele, as programações musicais dela… Nada mais que dois minutos. O desabafo saiu sem ela querer. Essa Mulher do Sétimo Andar é chegada a impulsos inesperados.

– Tira essa estrovenga da cara, meu.

– Qual estrovenga? Os óculos? – e tirou os óculos escuros.

– Não, homem, a máscara. A brisa do mar é suficiente para matar o vírus.

– Ah, é o hábito.

Será? Pensava a Mulher do Sétimo Andar quando retornou à caminhada. Entre vários amigos, ela percebe como um medo social, que na verdade precedeu à Pandemia, como esse medo se aprofundou em quase pânico. No calçadão, as pessoas perderam o saudável hábito do bom dia amigável. Encolhem-se ante a aproximação de seus semelhantes, como fossem estes uma ameaça. Restam os animais domésticos, únicos seres confiáveis. Doença mais difícil de curar do que o vírus.

Mas continuemos a caminhada. O fato mais recente é que uma mulher maltrapilha, originária de algum de nossos vizinhos países sul-americanos, voltou a se instalar no cagódromo de cães, a área divisória entre o calçadão e a areia da praia. Armou uma precária barraca de acampamento, junto com sua carroça de recolher lixo reciclável. Lá fez sua morada com nove cães. Na véspera, a Mulher do Sétimo Andar passara por lá muito cedo, mal o dia claro, e estavam todos a dormir, ela e os cachorros. (Ou deveria dizer, para seguir a norma do politicamente correto, cachorros e cadelas?) Logo a seguir, viu também a dormir, encostados numa barraca de coco, um homem, uma mulher, e suas tralhas. Vez em quando alguns conseguem furar o bloqueio do policiamento, montado para que a periferia não invada aquele espaço público – talvez um dos poucos na cidade inteira – destinado ao usufruto exclusivo dos ricos.

Ela sabe, a mulher dos nove cachorros, que seu tempo ali será curto, como foi em outra temporada. De algumas mocinhas caridosas e amantes dos animais, já teve até prato de comida para os cães. Mas o esquema é pesado, dona, não estrague a visão dos ricos. Eles suportam apenas a merda de seus próprios cães, não de uma cucaracha qualquer.

Porque a Recife de hoje é uma mulher maltrapilha enfeitada de joias preciosas antigas, as que conseguem se manter em pé; e os Shoppings e Empresariais, que vão convivendo como podem com a mulher maltrapilha. Basta andar com olhos para ver. Siga pela avenida Antônio de Goes, por exemplo. Nessa avenida os edifícios empresariais nascem em profusão ano após ano, seguindo o exemplo do que foi tão ousado a ponto de adentrar a corajosa Brasília Teimosa. É suficiente olhar para cima e ver todas as gambiarras da fiação da rua. Recife feia. Ou, por outra, precisar fazer uma conversão à esquerda nessa avenida. Aí vai entrar pelas ruas de trás, o antigo Pina, com seus casebres, grades enferrujadas nas portas, vendinhas, precárias oficinas de consertos de tudo e de mais alguma coisa. A borracharia na qual o marido gordo, com uma barriga de muitos anos de cerveja, sem camisa, está sentado numa cadeira de balanço, esperando pneu furado, enquanto a mulher dele varre a calçada.

E os urbanistas, coitadinhos, vão tentando como podem abrir espaços de beleza numa cidade, malgrado tudo, bela, cortada por um rio cantado por João Cabral de Melo Neto. Em vão. Se o espaço for público, a mulher maltrapilha dele se apropria, com sua feiura, sujeira, mal cheiro, cães sarnentos, cola e outras drogas de pobre. Cerca o espaço, ora, ou põe policiais a vigiar. Difícil conseguir tão grande frota de segurança. E assim caminha Recife.

Moço bonito

A rotina da moça era assim: acordava com o cacarejar das galinhas do quintal da casa onde morava, o número 56 da rua Professor Edgar Altino. Na Estrada Real do Poço ainda não havia o calçamento que hoje em dia imita pedras antigas. Nesse tempo, estudante do Curso Pedagógico no colégio das freiras, costumava levar bloco de carta de folhas finíssimas, e escrever no silêncio da margem esquerda do rio Capibaribe, assentada em um tronco de árvore derrubada pelo rio. Cartas de amor. Cartas de amizade. Esse mesmo rio Capibaribe que, mal-agradecido, depois de ter testemunhado tantas missivas adolescentes, tomou-se de uma fúria e saiu de seu leito a caminhar em guerra por ruas e calçadas e casas adentro, trazendo cobras e lagartos. Tantas perdas… Levou os cadernos com os diários da moça. Levou as cartas.

Formada professora aos dezoito anos, principiou a trabalhar, para nunca mais parar, mesmo aposentada, mesmo velha. Porque sabe, como Tereza Costa Rêgo, que o trabalho é que nos mantém vivos. Acordava às cinco e meia da madrugada, mal o dia clareava. Toma um banho rápido, prepara o lanche da escola, toma café, e às seis e meia está a caminho do Instituto Santana. Seu turno é das sete às dez e meia. Até o final do ano, esses meninos deverão estar alfabetizados.

Tempos depois, numa seleção para professores da Puc de São Paulo, um dos entrevistadores fazia um sorriso de mofa e perguntava, folheando o curriculum vitae da candidata: o que a experiência de professorinha primária poderia contar ponto para a proficiência no ensino universitário? Naquele momento, a nordestina, ainda intimidada com a sapiência paulistana, nada respondeu. Muita vida depois, deu-se conta de que, ajudar crianças a entrar no mundo das letras, talvez tenha sido o mais nobre de seus trabalhos.

Saía da escola pelas onze horas, depois de passar o turno para a professora das 10:30 às 13:30, que depois passaria o bastão para a do terceiro turno, das 13:30 às 17 horas. Uma pobre escola estadual no que hoje é o Parque Santana, então um bairro de casinhas pobres, quase mocambos. A passo sem pressa, voltava para casa. Lembra que até um certo ponto de seus vinte minutos de caminhada, alguns alunos a acompanhavam. Nilton era um menino magrinho, desses que dá trabalho para prestar atenção nas aulas, e que dizia, quando passavam carros na avenida Dezessete de Agosto: passando calhambeque, que eu só ando de monobloco.

Em casa a professorinha almoçava, descansava meia hora e voltava à labuta. Tomava o ônibus de Dois Irmãos para ir às aulas do Curso de Pedagogia na Faculdade de Filosofia do Recife. Dali, na boquinha da noite, ia caminhando até alguma lanchonete do entorno da Faculdade de Filosofia de Pernambuco. Às sete da noite entraria no seu terceiro turno, o curso de Sociologia e Política. O pátio daquela Fafipe lhe reservaria muitas aventuras.

Sentava-se ao fundo da classe. Às vezes esquecia de trocar os óculos escuros pelos claros, e foi assim que chamou a atenção do professor Nelson Saldanha, que lhe pediu – a moça que está de óculos escuros – comentário sobre o tema que tratava em aula. Lembra apenas que ficou vermelha de vergonha, uma marca que acompanharia aquela moça pelos quatro anos em que estudou naquela Escola.

Naquela Escola abriu-se uma larga porta. A mocinha deixou para trás o projeto de Educação, e foi se chegando aos poucos à luta estudantil, com a obrigatória passagem pelo mundo clandestino dos partidos políticos. O seu, foi a continuidade de um compromisso que assumira com outra roupagem desde muito cedo, no tempo do colégio das freiras, o compromisso de salvar o mundo pela religião. Agora a religião era outra, de rituais pagãos e secretos. Foi acumulando frustrações de tanta leitura que gostaria de fazer e não havia tempo, porque havia muitas obrigações, e as leituras se reduziam a pobres textos de uma teologia da qual ela passou ao largo.

Aos olhos de um colega que fazia o curso de Sociologia e Política por puro deleite, posto já ser um profissional da área de planejamento, que chegava ao pátio da Escola em um Karmann Ghia vermelho, essa moça, que corava quando tomava a palavra nas assembleias estudantis, a cada discurso de campanha para ser presidente do Diretório Acadêmico, era motivo de reportagens que ele fazia, em intervalos de trabalho, a seu amigo, um dos sócios da empresa de planejamento na qual ele era funcionário.

Um dia, um dos militantes da Ação Popular, seu colega de Escola e militância, fez a festa de casamento num bar de Olinda, uns bares que havia à beira mar, de higiene duvidosa, onde não era incomum verem-se ratos circulando entre as mesas. Lembra que nesse dia, um sábado, houve reunião do Diretório Acadêmico à tarde. A moça foi para a reunião de bobs na cabeça, amarrados por um lenço de seda. Vestia um vestidinho de organdi com ligeiro estampado de flores, de alcinhas. Acabada a reunião, no precário banheiro daquela escola, tirou os bobs e acomodou em uma cesta de palha de bananeira, que era sua pasta executiva, fez uma ligeira maquiagem, e foram todos que estavam na reunião à festa de casamento.

Que festa, meu irmão! Depois de várias caipirinhas, uns salgadinhos, enquanto tocava alguma música em um canto, em outro, uma morena bonita cantava ao microfone para encantar seu namorado. Nada disso impediu a moça, que vestia um outro figurino distinto em tudo da sainha, blusa e alpercatas, uma espécie de uniforme inconfundível aos olhos das forças repressivas em dias de passeata; nada impediu que ela, em outro recanto do bar, puxasse uma ciranda. As cirandas que frequentava na praia de Itamaracá, a ciranda de Lia, ao tempo em que Lia era apenas a de Itamaracá. Fez-se Lia e saiu arrebanhando os que estavam em volta, fazendo o círculo crescer, até tomar quase o espaço inteiro do bar.

Na segunda feira, uma colega de curso chegou à Escola com um recado. De um moço bonito, alto, de olhos verdes, bem posto na vida, cobiçado por todas as moças casadoiras porque, além de seus atributos físicos, era um partidão, sócio de empresa, dono de um belo apartamento onde costumava reunir boêmios e intelectuais nos almoços aos sábados. Ele queria conhecer aquela moça, que o havia puxado pela mão para dançar na ciranda, quando ele, distraído do cantar da morena, postara-se no entorno daquela dança circular.

– Mas Helena, eu não sei quem é esse rapaz, não tenho dele a menor lembrança.

Pois naquela ciranda a moça segurava, com a mão esquerda, a do colega do Karmann Ghia vermelho, num namoro ali principiado, na festa. Com a mão direita, ia arrebanhando outros cirandeiros para compor a roda. Naquela noite, os namorados haviam saído dali para tomar uma água de coco e ver corrida de submarinos à beira mar em Boa Viagem.

Nessa época, segundo semestre de 1968, a moça já não dava aulas nas classes de alfabetização do Instituto Santana. Vivia semi-clandestinamente, por ter participado do Congresso de Ibiúna. Para ganhar um dinheirinho, fazia entrevistas e preenchia questionários de pesquisas sociológicas. Os recados se sucediam. À Helena foi prometido mundos e fundos se ela conseguisse arranjar o primeiro encontro.

Lembra o cenário. Estava aguardando ser recebida para preencher um questionário numa repartição do governo do estado à rua Cruz Cabugá. Enquanto esperava, viu que havia um orelhão no corredor. Usando as fichas que tinha sempre à mão, ligou para o moço bonito. Foi um impulso. Era a primeira vez que ouvia a voz dele. De suas feições e porte elegante ainda não tinha ideia. Marcaram o primeiro encontro para o final de semana. À noite, no pátio da faculdade, conversou com o moço do Karmann Ghia vermelho para encerrar um namoro, que já vinha mesmo arrefecendo, fogo de palha de uma festa.

E pronto, entrou por uma perna de pinto e saiu por uma perna de pato; sinhô rei mandou dizer que contasse mais quatro. Respondi assim a um de meus leitores que me pediu, na última carta, ops, comentando a última crônica, Bahia de Todos os Santos, pediu-me que eu contasse como a Mulher do Sétimo Andar conhecera aquele baiano, filho pródigo de terras da Galícia.

Bahia de Todos os Santos

Algum de vocês já viajou numa nave do tempo? Se ainda não, então vá à Bahia. Como diz o poeta: você já foi a Bahia, nega? Então vá. Viagem ao futuro é mais arriscado. Porém ao passado, é só desembarcar no aeroporto, seguir de carro por umas ruas ladeirosas, casas antigas, igrejas, comércios. Chegar numa rua chamada da Mouraria, a lembrar o tempo dos portugueses, e, quase defronte a uma casa velha, mal tiradas as bagagens do carro, atravessar a rua, e lá está: um tacho de acarajé fervendo, o Acarajé do Baiano. Sua sócia, uma baiana sentada como anchas se sentam as baianas de roupas brancas e turbante na cabeça, cuidando da mistura, vatapá, camarão seco, pimenta, tomate picado. O colorido da África, o cheiro do óleo de palma, que é como se chama o azeite de dendê em terras africanas, aquela mistura cheia de vida do amarelo e da cor de laranja.

Uma semana a Mulher do Sétimo Andar passou fazendo essa viagem no tempo. Eram os idos de 1969. Os namorados haviam feito uma viagem de Fusca do Recife a Salvador, passando em Penedo a primeira noite. No dia seguinte, a noiva será apresentada à família do noivo, pousando de virgem, hospedada na casa da futura cunhada, marido e filhos. A caçula tinha sete anos e já era buliçosa, líder das meninas, arrumara alguma encrenca na vizinhança. Havia sido desalojada para o quarto dos dois irmãos, para dar lugar à futura tia.

E a alienígena foi pisando com cuidado em terras galegas da Bahia. Um clima acolhedor de recepção para a futura esposa do filho pródigo. Na casa do tio, um jantar. A comida galega. A farta mesa, o vinho, o indispensável pão. Conheceu a noiva destinada pelos desejos do pai dele como futura consorte do filho, para que ele um dia retornasse ao seio da família galega. Desejo vão porque esse filho, desde que se desgarrou de casa aos dezoito anos, não mais retornou. A não ser quando aquela alienígena, com o poder de que são donas as rainhas do lar, foi lhe trazendo aos poucos de volta, a cada filho que nasceu, a cada viagem do avô, que via naquele filho a realização de seu sonho engenheiro. Na casa do filho, em São Paulo, o sogro ia fazendo daquela nora a depositária de seus segredos, de seus desejos de outrora, do que nunca contara antes a ninguém, porque nessa vida ele apenas cumprira um fado traçado na terra de onde viera, Gajate.

A alienígena que precedera a Mulher do Sétimo Andar, com quem esse filho pródigo havia se hospedado em um hotel em viagem prévia à Bahia, possivelmente não teria sido vista com bons olhos. Eram liberalidades excessivas para os padrões galegos. Com a escolhida, ele aprendera a lição. Ela, na casa da irmã. Ele, na casa do pai. Em horas mortas das tardes daquele julho de 1969, faziam amor clandestino na casa do pai.

Existia um restaurante chamado Dona Flor, na ladeira da Fonte, próximo ao teatro Castro Alves. Sem palavras, que as ações contam mais que as palavras, a noiva acabara de ser acolhida no seio da família galega. O noivo, também sem carecer palavras, já era aceito pela família dela. Pela vontade da mãe da noiva, com foguetões e tiros de canhão. Pois, até então, a filha só se ocupava em fazer revolução.

Ela se lembra que comeram naquele restaurante Dona Flor uma moqueca de peixe, precedida de divinas casquinhas de siri. E foi nessa noite que, também sem solenidade, lhe foi proposto casamento. Parecia algo tão distante… Ela tinha planos de fazer um mestrado em Paris. Isso se faz depois, dizia ele desconfiado. E se fez depois, mestrado, fuga para São Paulo, doutorado, filhos… Uma vida.

De repente, como se o tempo realmente fosse uma máquina que a gente move para trás e, às vezes, perigosamente, também para a frente, em planos, fantasias, de repente, aquela menininha caprichosa e cheia de dengos, aquela princesinha que só tinha sete anos, completa sessenta. E se tem uma mulher que se pode dizer representante da Bahia, da alma da Bahia, é essa mulher. Que tem a coragem de morar na mesma rua da Mouraria de seus avós, carregando com leveza um antepassado nascido num torrão da Espanha onde corre um fio d’água pelas ladeiras do pequeno povoado para desembocar no rio Oitavén. Mas que ao mesmo tempo é parte integrante da alma mestiça da Bahia. Que convive com os da rua, porque não tem garagem na velha casa da rua da Mouraria, casa que mudou quase totalmente de feição por dentro, espichando-se pelas velhas casas vizinhas que foram sendo incorporadas. Uma pensão antiga, que não abrigasse estudantes quaisquer, mas aqueles que, como ela, fazem arte. Porque a Bahia é toda ela uma grande arte, um museu do que temos de mais alegre e colorido da raça brasileira, trazida pela sonoridade, pela dança, pela comida e pelos rituais herdados da África.

Na sua festa de sessenta anos, num amplo e lindo espaço às margens do mar no Rio Vermelho, havia um certo cerimonial para entrar, porque exigia-se carteira de vacinação em dia, e os nomes de cada um que chegava eram checados na lista de quase trezentos convidados. Como boa baiana, uma festa íntima para trezentas pessoas. Cerca de duzentas estavam lá. Do reitor da Universidade Federal da Bahia, professores, alunos, orientandos, ao baiano do acarajé da rua da Mouraria; a família, amigos próximos. E a tia, única tia, outrora alienígena, mas no sangue da qual já circulava há muito, por osmose, o sangue galego.

Festa é bom antes, na azáfama dos preparos e das expectativas; durante, o clímax, fosse o enredo de um romance; e a crônica do depois. Ah, a crônica do depois… Tempo de desembrulhar os presentes. Viu como fulana estava vestida? Céus, com aquela roupa ela envelhece, parece uma senhora mais velha do que é. E a aniversariante? Não fez outra coisa a não ser dançar desbragadamente, mais do que todos. Não se sabe onde foi buscar tanta energia. Ou melhor, sabe-se sim: pela alegria dos abraços, que era só quando ela parava de dançar, para cumprimentar cada um que chegava.

Na manhã invernosa da Bahia, quando o sol não deixa de aparecer depois das chuvas madrugadoras, a Mulher do Sétimo Andar escreve esta crônica no espaço do que foi antes um quarto qualquer na casa dos avós, hoje transformado em escritório na casa da neta. Aqui, nesse escritório, toda uma parece é ocupada por memórias e futuros. Um futuro que dá a volta para terras d’ Espanha através da bisneta.

Nessa parede de fotografias, vê a Mulher do Sétimo Andar no dia do casamento, sete de março de 1970, cortando o bolo com o noivo, que habitou esta casa até abandoná-la para estudar em São Paulo aos dezoito anos de idade, num longínquo 1959.

E lá está também, na galeria dos antepassados, uma lembrança amarga, em maior moldura, no alto da parede de quadros. Um filho da Galícia igualmente pródigo, que não pode realizar sua paixão por outra alienígena, e por isso foi morar no reino de Iemanjá no fundo dos mares da Bahia. Um assunto tabu, desses sobre o qual não se fala, a não ser quando aquela nova alienígena conseguiu furar o bloqueio e entrar no seio dos galegos e, mais que isso, ser a confidente para que o sogro pudesse enfim contar a alguém tudo que lhe apertou a garganta uma vida inteira.

Salve a Bahia de Todos os Santos. Os santos de todas as religiões. Os santos que, junto com os negros escravizados, vieram da África habitar as terras da Bahia.

PS: Dedico esta crônica a ma belle soeur, Maria del Rosário Suarez de Alban

Dia Internacional da Mulher

A Mulher do Sétimo Andar recebeu logo cedo a primeira mensagem. Um vídeo que nem era de comemoração ao dia, mas calhou muito bem, como uma luva.

Uma negra de turbante na cabeça. Começa assim:

– Boa tarde. Hoje é segunda feira, dia de Exu. Estou aqui nas Dunas, Lagoa do Abaeté, e a gente já está vendo aqui que a obra da construção desse espaço, que querem que seja o nome “Monte Santo Deus Proverá” já começou aqui. Então eu estou aqui denunciando…

Enquanto ela grava a mensagem, tendo ao fundo o barulho de um trator devastando as dunas, é interrompida por um homem uniformizado de preto, que se diz embaixador do evangelho e está ali para assegurar a continuidade da obra. Ouve-se ao fundo a voz desse homem esperneando seus dogmas. E a negra, altiva, se afirma, “pois eu sou filha de Oxum e embaixatriz da África. Sou de Oxum”. “Sou de Deus”, revida o evangélico. E a mulher: “Viva Oxum, vivam todas as mulheres ancestrais que me antecederam, como Macota Valdina, Mãe Estela, Mãe Menininha do Gantois e Mãe Gilda.” Impressionante a coragem e firmeza daquela mulher negra.

O vídeo, mandado não intencionalmente no oito de março, rapidamente tornou-se a mensagem pelo Dia Internacional da Mulher, para aquela do Sétimo Andar. Se ela usasse Instagram, valia postar. Aliás, tem, mas não usa, como tantas outras ferramentas da tecnologia a seu dispor. Espalhou o vídeo, ao qual acrescentou. “Isso sim, é comemorar o Dia Internacional da Mulher, que não é de florzinhas e parabéns, mas de luta.”

Esse vídeo emocionou deveras a Mulher do Sétimo Andar. Sentiu nele a firmeza, a beleza e a centelha do que acontece de importante na nação brasileira. Pois é nisso que ela acredita hoje em dia, depois de ter vivido tantas utopias nessa vida. Acredita que a mudança de nossa sociedade, contaminada em suas raízes pela Casa Grande e Senzala, só será possível com a libertação do povo negro pela sua própria luta. E luta não são palavras de dicionários ideológicos. Luta são atitudes. Como daquela negra americana que ousou se sentar num banco de ônibus reservado aos brancos.

E pensou: fiz bem em deixar meu título de eleitor para sempre arquivado no colégio eleitoral do distrito de Nogueira, município de Aiuruoca, no tempo em que morava na Serra da Mantiqueira, e naquele tempo pensava mesmo que aquela seria sua morada até o final da vida. Ah, quanta ilusão! Mas valeu o sonho, como valeu! Sonhar é bom. De vez em quando.

O jogo eleitoral continuará acontecendo, ano após ano, ilusão após ilusão. E a barreira de classes se aprofundando a cada dia, a cada ano, a cada decênio do século XXI, como um vírus muito mais grave que o Corona.

O lado dos pobres tem hoje sua fé, seus líderes nos pastores evangélicos, seu comportamento medieval de separação radical do bem e do mal, de deus e do demônio. Aboliram da escrita miúda o ponto de interrogação, encolheram o português às pobres mensagens escritas, poucas, porque basta o áudio. São todos irmãos. Pode-se vê-los nas conversas dos empregados de supermercados, em fragmentos de conversas no calçadão, que aliás é o “campo” de observação privilegiado da Mulher do Sétimo Andar.

Hoje mesmo, caminhando pelo calçadão, ela cruzou com uma mocinha branquinha, bem nascida, que portava na mão direita a coleira do cachorro e na esquerda um saquinho de plástico para o cocô do animal. Mantendo o distanciamento necessário desses tempos, a Mulher do Sétimo Andar parabenizou a mocinha. Que não entendeu por que, até que soube que era pelo simples fato de ela pensar nos outros. Pois aqui, a regra é usar toda a área verde entre o calçadão e o mar como um grande cagódromo de cães. E sempre há o risco de um cocô no meio do calçadão. O de hoje, por exemplo, já havia sido pisado por sapatos incautos que caminham ou correm sem olhar para o chão.

As placas de aviso dos tubarões continuam lá, intocadas. Os tubarões também, que há muito pararam as pesquisas e quaisquer atitudes do poder público sobre o assunto. Ô seu prefeito, manda fazer muitas plaquinhas assim, ó: Papais e mamães de pet. Pensem que essa área é pública. Não a transforme num grande cagódromo. Já perdemos o mar para os tubarões, não vamos perder todo esse imenso espaço entre o calçadão e o mar para os cocôs de seus filhinhos.

Claro que esse aviso nada diz à metade dos passeadores de cães, que são as empregadas domésticas, enquanto sinhô, sinhá, sinhozinho e sinhazinha dormem o bom sono da madrugada. Mas talvez para os papais e mamães de pets que saem eles próprios a passear…

Bobagens que só se passam na cabeça dessa Mulher do Sétimo Andar. Pois lá o prefeito vai querer saber de obra que não dá nenhum retorno eleitoral? Obra e-du-ca-ti-va? Antes da pandemia, ela se lembra de umas lixeiras, só para fazer de conta, colocadas no meio das barracas de praia em ano eleitoral, frágeis ao simples quebrar das ondas quando a maré estava alta. O detalhe é que elas eram escritas em cada lado com propagandas. A Mulher do Sétimo Andar até escreveu na época uma crônica sobre isso.

Deixa de besteira mulher, você nem vota mais em nenhum deles… Pra quê? Manda na cidade, quem? As grandes construtoras, e o bolso dos que se beneficiam do percentual do custo das obras, políticos e administradores.

Uma amiga dessa Mulher do Sétimo Andar comentou outro dia, toda orgulhosa: Meu prefeito está fazendo as calçadas. E ela pensou, mas não disse: Uma esmola para o lado rico da cidade, pois o que importa mesmo são as caixinhas, que serão muitas. A máquina é pesada. Muitas bocas para alimentar.

Mas deixemos o calçadão e as calçadas e voltemos ao Dia Internacional da Mulher. A Mulher do Sétimo Andar espalhou o vídeo da Filha de Oxum a vários de seus contatos. A primeira reação foi de uma amiga que comentou

– Guerreira!!! Saravá!!

E em seguida postou a mensagem dela, dentro de um quadrinho discreto de cor rosa claro, com dois galhinhos em bico de pena ladeando a palavra Mulher,

– Feliz dia da Mulher. “Eu tenho medos bobos e coragens absurdas” Clarice Lispector.

E pergunta, em seguida,

– Clarice pode, não pode? Duas carinhas, uma piscando o olho e a outra com um beijinho na bochecha.

Ao que a Mulher do Sétimo Andar responde

– Claro. Clarice sempre pode. Grande Clarice. Beijo.

E o Dia Internacional da Mulher transcorreu repleto de mensagens na telinha do celular. De homens apaixonados, como um que mandou num dos grupos de whatzapp a música “Mulher”, de Erasmo Carlos e, achando pouco, mandou também a música “Tu és divina e graciosa estátua majestosa do amor por Deus esculturada. E formada com ardor da alma da mais linda flor…” E por aí vai. A mocinha que cantava, de cabelos ondulados e ruivos, era acompanhada por um violino e um violão, todos no meio de um bosque numa linda manhã ensolarada. De outro amigo, que curte as mulheres e nunca deixou de mandar mensagem para todas as amigas nesse dia, ela recebeu o sambinha Sonho Meu. E dançou na sala enquanto ouvia.

Recebeu mensagem animadora com frase de Mafalda. Ou filosófica, de Simone de Beauvoir, “Que nada nos limite, que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja nossa própria substância.”

Foi mesmo um dia especial esse Dia Internacional da Mulher. Uma sensação boa de que as pessoas estão começando a sair do grande pesadelo do confinamento. O abraço se aproxima, minha gente!

Mas o melhor mesmo desse dia foram as mensagens da cumade. A Mulher do Sétimo Andar pensou:

– Ah, como gosto dessa cumade! A afilhada perdi, mas ela é madeira de lei, sólida feito Pau Pombo de Garanhuns.

Dessa cumade recebeu muitas, todas exaltando a mulher. “Parabéns para nós, mulheres, que nunca vamos morrer de frio, porque SEMPRE estamos cobertas de razão”, e os emojis morrendo de rir. Outra, com um casal jovem vestindo camisetas negras, escrito na camiseta dele “Primeiro, Deus criou o homem.”, e na dela “Depois, teve uma ideia melhor.” Outra ainda, com a fotografia de uma mulher negra, dizia: “Metade do mundo são mulheres. A outra metade os filhos delas.”

E a cumade refletia,

– Eu as vezes penso que sou poderosa. Acho que é por isso que curto tanto esse dia. Doideira, né cumade?

– Doideira boa, cumade.

O Dia Internacional da Mulher terminou se espichando pela semana e só terminou no sábado, quando a Mulher do Sétimo Andar assistiu a duas sessões seguidas de Belfast na telona do cinema. De tudo o que viu no filme, que lhe recordou o tempo em que esteve tão próxima ao drama da imigração, o tempo em que escreveu “Brasileiros longe de casa”, o que lhe tocou mais foi uma das cenas finais, o momento em que o marido reconhece o papel central da sua mulher naqueles anos de guerra. Sem a seriedade e dramaticidade das telas, mas em tom jocoso e até como provocação, ela ouvia da boca de seu marido: rainha do lar. Algo mais cafona? E ele ria. Contudo, nesse momento da vida, tal uma guerreira que nunca larga as armas, era assim mesmo que a Mulher do Sétimo Andar se sentia: rainha do lar. Que estava justamente nesse momento da vida amarrando numa trouxinha o que lhe era essencial, e partindo para mais uma mudança. Para juntar de novo a sua família, depois de uma guerra que perdura desde 2001.

Feliz Natal

A Mulher do Sétimo Andar acordou com uma lista de providências e compras prévias às festas. Enquanto o shopping não abre, abriu o computador. Não é que ela queria escrever. Ele, o computador, quem fez o convite. E, se vocês não sabem ainda, fiquem sabendo. A mulher, diferente do ser humano em certas idades de afirmação, quando a tudo dizem não, a mulher é um ser que diz sim. Sim, computador, eis-me aqui para dizer que, com essa lista de compras de hoje, vejo-me na personagem de Virgínia Woolf, Mrs. Dalloway.  Ah, sem dúvida com muito mais a fazer do que aquela lady inglesa que, para a festa, carecia comprar apenas as flores.

De onde a Mulher do Sétimo Andar escreve, na sua mesa de trabalho, espia os três pequenos presépios feitos por mãos de artesãos. Do presépio feito pelo filho na escola, sobrou apenas uma tosca árvore de natal. O barro era por certo muito vagabundo; quebrou a manjedoura com um Menino Deus e uma Nossa Senhora zelando o menino. Eram somente essas as três peças de seu presépio. Seguramente Freud explicaria aquela sagrada família de meu filho aos quatro anos de idade.

A história de Maria da Conceição é das mais bonitas do evangelho. Veio o anjo Gabriel enviado por Deus a uma cidade da Galileia chamada Nazaré e anunciou: “Eis que conceberás em teu seio e darás à luz um Filho, e por-Lhe-ás o nome de Jesus”. “Como se fará isso, se não conheço varão?” “O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra. Por isso também o Santo que nascer de ti, será chamado Filho de Deus”. Então disse Maria: “Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra.”

James Joyce, um escritor que sacou a alma feminina melhor do que Chico Buarque de Holanda, conclui o périplo de Leopold Bloom, um homem comum, com o sim de outra mulher, em tudo por tudo não apenas diferente, mas oposto ao sim de Maria. Ao sim de Maria, José, também um homem comum, carpinteiro, passou a ser personagem secundário na história. Está aí sua grandeza. A mesma de Leopold. Ele não poderia dar a Molly o que ela com outros homens. Acomodou a vida à sua maneira, guardando a esperança, quem sabe um dia? Até que, naquele fatal 16 de junho em que tudo aconteceu, aconteceu o sim de Molly. Sim, ela iria trazer seu café da manhã na cama. Sim, ela seria sua mulher e os dois teriam para sempre a felicidade possível.

Porque é importante sempre dizer sim à felicidade possível. Foi essa a conclusão da Mulher do Sétimo Andar, que precisou encerrar essa crônica correndo para não pegar o shopping tão cheio de gente, e aproveitando para desejar a todos um feliz natal!

Diário paulistano 12 de dezembro de 2021

Ouço pela janela do meu quarto ruídos de construção civil, como fossem combates num campo de batalha. A cidade cresce para cima trepada em cimento tijolo e aço. Só na Cristiano Viana, entre a rua Arthur de Azevedo e a avenida Rebouças, três espigões em plena idade de crescimento. Caminho a pé no bairro de Pinheiros. Calçadas do Recife.

            Encerrei meu livro “Agreste, Agrestes” (1982) com a declaração do velho Antunes Gomes: “o coração do Brasil é São Paulo, é ou não é?”. Seu José era um sitiante de Garanhuns, a quem entrevistei em sua casa, em São Paulo, depois de ter gravado depoimentos com seus parentes que permaneciam morando no Agreste. A imagem de São Paulo como o coração do Brasil se renova a cada vez que venho a essa metrópole para matar as saudades. Esse coração é de outro país, construído, diverso do Coração do Brasil visto pela câmera de Daniel Santiago. Construído pela diversidade de gentes que foram chegando daqui e dali, de além-mar.

            Os passarinhos de cá, que não adormeceram com o coaxar dos sapos, despertam mais cedo que a madrugada dos operários. Duas horas, principiam a cantar. Como a enunciar vamosembora gente, que a noite não é nada. Sabem que às sete horas em ponto terá inínio o Pápápápá… pémpémpémpém… a geladeira contracena aqui na cozinha. Daqui a pouco vou tomar meu café da manhã. One more day in my second city.

            Talvez seja esse ar grandiloquente de São Paulo crescendo, o barulho ensurdecedor de tratores, máquinas potentíssimas para levantar gigantes, talvez seja isso que me dá o mesmo fascínio de Nova York. O ritmo de São Paulo é um. O do Brasil é outro.

            Caminhar no Parque do Povo. Simbólico da distorção brasileira entre o que se nomeia e no que resulta. No cruzamento da Avenida Brigadeiro Faria Lima com a Avenida Presidente Juscelino Kubitschek, jovens executivos caminhando apressados, profissões de muitas finanças, uma certa alegria dos bem sucedidos; o entorno do Itaim Bibi na hora do almoço. A Rodovia Castelo Branco. Isso é São Paulo.

            Aí me lembrei do filme Mariguella. Dessa vez vim a São Paulo sem nenhum objetivo prático, “tipo”, dentista (que horror, usando esse insuportável jargão juvenil). Vim apenas porque recebi um convite para um jantar, no qual o anfitrião me oferecia, caso eu aceitasse o convite, flores, banda de música e foguete. Aquilo me despertou tamanha fantasia, que não resisti: no mesmo dia comprei o bilhete aéreo para duas semanas em São Paulo. Como se aquele convite viesse carregado de sugestões. Sim. Duas semanas para estar com os amigos velhos, para lamber a cria, para alimentar o espírito com a arte. Valeria se fosse só para ficar uma hora inteira sentada defronte e especulando de perto Cícero Dias espiando o mundo pelo Recife.

            Como enriqueceu minha compreensão desse formidável filme as prosas com os amigos… Sem nenhuma intencionalidade, Mariguella ficou sendo a palavra de ordem que entrou em todas as boas rodas de conversa. Os de minha geração vivemos aquela história de alguma forma. Independentemente do julgamento crítico do filme, ele nos toca em nervos sensíveis.

            Encerrei meu passeio em Sampa caminhando pela Avenida Paulista num sábado ensolarado. A Avenida Paulista de todas as raças, de todos os credos.