Num sábado chuvoso de março, o inverno chegando, chuva com saudades do verão – dá fuga para uma caminhada –, saio de casa a pé pela rua Capitão Rebelinho, rua que segue como Amazonas. Nessa Amazonas estava o meu destino. Eram duas e meia da tarde. O anfitrião da casa me espera com uma cerveja geladinha. Gravador do celular ligado (ah, quanta diferença dos pesados gravadores de fita cassete de minhas primeiras entrevistas…), vejo-me de novo no mundo fascinante do Choro.
Retomo uma “Conversa de Cordas” principiada lá atrás nesse blog. Entra em cena mais um personagem. Este, bom contador de histórias, uma memória privilegiada. Antes da Pandemia, quando nos reuníamos às sextas feiras em uma salinha acanhada do bar Antiquários, quando a noite já avançava pela madrugada, eu sempre lamentei que o vento levasse a prosa de Nuca Sarmento. Dessa prosa, compartilharei hoje alguns fragmentos com meus leitores.
Estou certa de que essa conversa de cordas vai longe… pois ainda nem transcrevi a entrevista gravada com Luiz Nassif em São Paulo. Ele se referia à vasta produção musical de Pernambuco, frevo, maracatu, baião, ciranda, coco… Mas foi sobretudo o Chorinho que o levou mais de dez vezes ao Recife, para compartilhar com os de lá rodas de Choro. Na entrevista, Nassif se referiu a Canhoto da Paraíba como um divisor de águas na história do Chorinho brasileiro. Nuca Sarmento foi a pessoa certa para pintar em cores vivas a figura de Canhoto da Paraíba. Sem pressa na sua conversa pausada, ao ritmo recifense do português castiço, bonito, de frases bem pronunciadas. Um encadeamento tão harmonioso na fala quanto no seu canto e violão.
Deixemos o mestre Canhoto esperando na sala. Visitemos primeiro o mestre Nuca, que em junho vindouro completará sessenta e seis anos.
– E a música, Nuca, como entrou na tua vida?
Aos pouquinhos, sem antecedentes na família. O pai, telegrafista, tinha bonita voz. A mãe, sua primeira ouvinte de arroubos juvenis, entusiasmado em soltar a voz para imitar os seresteiros. E ela dizia, sem pensar que aquele puxão de orelhas seria decisivo na carreira do futuro violonista, cantor e compositor. “Você não está cantando, meu filho, está gritando”. A voz da mãe era maviosa, tipo a de João Gilberto. João Gilberto foi personagem que marcou a trajetória de Nuca Sarmento.
Influenciado pela época de sua juventude, Nuca havia enveredado pela Jovem Guarda. Nesse tempo, fazia parte de um conjunto de música que tocava em bailes à noite, em boates como “Eu e tu”, “Cancela…” Mas também acompanhava os festivais da Record, torcia pelos concorrentes com todo fervor de quem defende as cores do time de futebol. E assim foi conhecendo o mundo da música. Percebeu que Roberto Carlos, Caetano, e muitos outros, eram influenciados por João Gilberto. Precisava conhecer mais a música desse baiano de Juazeiro. Nessa época, com dezesseis anos, a namoradinha lhe presenteou com uma radiola portátil. No dia seguinte, com um dinheirinho do couvert das noitadas, foi na Aki Discos, na rua Matias de Albuquerque, e passou a tarde ouvindo todos os discos daquele gênio de nossa música. Voltou para casa tendo comprado os quatro LPs existentes na loja.
Mais ou menos por essa época foi aberta uma Casa de Serestas em Tejipió, o bairro da cidade do Recife onde nasceu Nuca Sarmento. Foi então que ele começou a ouvir o Chorinho. Não perdia noite. Já não se interessava pela Jovem Guarda. Com o tempo, conseguiu um lugarzinho para tocar no intervalo dos músicos. E foi lá que conheceu Canhoto da Paraíba, também um divisor de águas na vida de artista de Nuca Sarmento.
Enquanto o conjunto de Canhoto tocava, Nuca não saía de perto, prestando a maior atenção. Quando terminava a apresentação, os músicos se sentavam numa mesa grande para jantar. Nuca ia se aproximando de Canhoto. “E aquele arranjo que você fez na música Chão de Estrelas?” Quando terminavam a comida, Canhoto, que daria carona em seu carro para todos os demais membros de seu conjunto, não tinha pressa. Ensinava arranjos a Nuca. E os outros reclamavam: “Vamos embora, Canhoto, isso é um tetéu, parece que não tem sono”. E Nuca até recebeu a composição de uma música, que se perdeu, como tantas, o “Choro do Tetéu”.
Daí por diante, Nuca Sarmento começou a frequentar a casa de Canhoto da Paraíba, que morava no bairro de Sítio Novo, em Olinda. E chegou a registrar detalhes da vida do músico paraibano em um livro datilografado em papel A4, que se perdeu na separação do primeiro casamento. Das histórias que Canhoto lhe contava… Depois de já ser músico com fama nacional, Canhoto voltou à sua terra, Princesa Isabel. Lá encontrou um amigo de infância, desempregado, com doença de Parkinson. E o amigo: “Ô Chico, rapaz, você é famoso no Recife. Arruma um emprego para mim”. “Arranjo sim, amigo velho. No Mercado de São José”. “E o que vou fazer nesse mercado?” “Você vai botar canela em pratos de papa”.
Era espirituoso, Francisco Soares de Araújo, o Canhoto da Paraíba, como ficou conhecido. Olho a foto dele na capa do LP com uma bonita dedicatória a Nuca em 3 de junho de 1995. Um rosto redondo feito o de Luiz Gonzaga, cara inconfundível de sertanejo nordestino, um riso aberto. Na foto do disco, Canhoto, Zé do Carmo, Antônio Carlos Barbosa, Dona Cêça, Rossini e Jacó do Bandolim.
Decisivo na carreira musical de Nuca Sarmento foi seu irmão mais velho, Eriberto, de saudosa memória. O Camarada, como Nuca a ele se refere carinhosamente. “Não fosse o Camarada, eu não teria me encaminhado para a música”. Ainda menino, Nuca assistia às aulas de violão do irmão. À noite, depois que Eriberto pegava no sono, ele ia, pés de lã para não acordar o irmão que dormia num quarto só dele, e, subindo em um tamborete, tirava o violão de cima do guarda-roupa. Trancado no banheiro para ninguém ouvir, tentava tirar uns sons.
O pai era habilidoso, fazia qualquer conserto em casa, tinha todo tipo de ferramentas. Nuca resolveu fazer seu próprio violão. Uma lata de goiabada, o bojo. O braço, um cabo de vassoura cortado ao meio na vertical. Para as tarraxas, parafusos. E três cordas de fios desencapados. Como não tinha os trastes, que é o que divide as notas, tinha que exercitar bem os ouvidos. Um primo, vendo o interesse do menino, lhe deu um violão velho, que ele recuperou com esparadrapo e comprou cordas novas de aço. E assim, aproveitando o que a vida em casa lhe oferecia, Nuca foi desenvolvendo sua arte.
Em 1969, o “Camarada” conseguiu o primeiro lugar em um Festival Nordestino de Música Popular e ganhou como prêmio um carro Dodge Dart da Chrysler. Tinha vinte e um anos e Nuca era um garoto de seis. Um festival importante em que concorreram, junto com Eriberto, cantores em começo de carreira e que depois viraram sucesso, como Alceu Valença, Fagner (sua música era nada menos que As velas do Mucuripe). Era a época da Tropicália e a música composta por Eriberto e defendida por um conjunto chamado “Os Diamantes” (tipo Beatles) e a orquestra do maestro Duda, tinha o espírito da tropicália.
Nuca sonhava em fazer música, ser compositor. Seguir a trilha traçada pelo Camarada. A primeira parceria dos irmãos nasceu na cozinha de casa, uma casa nova que o pai construíra no vizinho bairro do Barro. Nuca ainda estudante de colégio. Com o primeiro samba, apresentado num Festival em Jaboatão, tiraram o terceiro lugar. Fizeram juntos um segundo samba. Depois, um frevo, onde inovaram, pois neste havia um contracanto. Mas tiraram apenas o quarto lugar e somente os três primeiros colocados fariam jus ao prêmio da gravação. Mas então, uma bela surpresa. São procurados por Aguinaldo Batista, organizador do festival, e comunicados de que haviam recebido menção honrosa e, portanto, também seriam premiados com a gravação. Foi o frevo “Mela-mela”. 1973, plena ditadura, censura, foram obrigados a retirar da letra a palavra “mela-mela”, pois o Corso de carnaval na Avenida Conde da Boa Vista, com a divertida prática do mela-mela, acabara de ser proibido. No lugar, colocaram as palavras “abre alas”. Aos censores da ditadura, tão mal preparados para o ofício, escapou o título do frevo, que continuou o mesmo.
Vai começar o jogo do Campeonato Nordestino. Uma bandeira vermelha e branca está estendida na janela da sala de Nuca. Chega Vinícius lá de dentro para assistir ao jogo com o pai e torcer pelo Náutico. Os cachorrinhos se agitam com a chegada de Lane da rua. Hora de encerrar a entrevista.