Brasileirinho

No bairro de Areias, no Recife, nascia Adalberto Cavalcanti da Silva Filho, a meia noite e quinze minutos do dia 16 de janeiro de 1961. Filho de pai alfaiate e mãe dona de casa. As primeiras letras ele aprendeu com uma professora pobre de Jó que morava na Vila das Lavadeiras. Enquanto dava aula particular ao menino, essa velha professora cozinhava feijão em fogareiro de lenha. Beto chegava de volta em casa cheirando a fumaça. Sabendo o beabá, foi estudar em uma escola na Vila dos Contínuos, no mesmo bairro de Areias.

Ao estilo das Vilas Populares de Santo Amaro, o governador Agamenon Magalhães havia construído naquele bairro várias vilas populares, das quais se notabilizou a Vila das Lavadeiras. Lá surgiu a “Troça Carnavalesca Mista Lavadeiras de Areias”. No Recife, para os que não sabem, é preciso fundar um bloco de carnaval para ter alguma credibilidade. Pode ser um escritório de advocacia famoso, que criou o “Paraquedista Real”… Ou as lavadeiras de Areias.

Aliás, foi por isso que em vez de blog, optei por nomear essa minha prosa com os amigos de bloco. Bloco Momentear. Por que momentear? Aí é outra história, que prometo contar um dia. Porque agora a história é outra. Hoje estou iniciando uma nova série de crônicas, as quais resolvi nomear “Conversa de Cordas”. Com esse título, estou plagiando descaradamente o primeiro personagem das histórias e causos que farão parte dessas crônicas. Betto do Bandolim.

Foi morando em Areias que Betto descobriu-se músico.

Diferente de tantos outros intérpretes e compositores brasileiros, ele não tinha ninguém de sua família que tocasse instrumento algum. Em casa, a única música que se ouvia era pelo rádio. A mãe gostava de um programa de seresta às três horas da tarde chamado “Caixinha de Pedidos”. Betto não se lembra em qual emissora, mas lembra perfeitamente do prefixo musical: Brasileirinho. O menino dormia e acordava com esse chorinho no juízo. Por vezes passavam-se dois, três dias, sem tocar. Ele sentia falta. E no dia em que tocava de novo, o menino abandonava qualquer brincadeira de carrinhos de lata, de manguitos enfiados por quatro palitos fazendo de bois, e vinha ao pé do rádio prestar atenção. Às vezes era outro pequeno trecho da mesma música. Depois ficou sabendo que o instrumento era um cavaquinho. Apaixonou-se pelo cavaquinho sem nunca ter visto seu objeto de amor.

Talvez mais importante do que as músicas que Beto ouvia naquele programa de rádio – Orlando Silva, Sílvio Caldas, Dalva de Oliveira, Carmem Miranda, Carlos Galhardo, Isaurinha Garcia, Alcides Gerardi, Roberto Silva, Carmem Costa, a divina Elizeth Cardoso, os Trios Irakitan, Los Panchos, Núbia Lafayete (ah, adoro!), Orlando Dias, Francisco Alves, Araci de Almeida, Ivan Cury… (a lista é grande). Mais até do que o rádio, o que terá marcado decisivamente os ouvidos de menino ávido por música, foram as cantigas da mãe. Ah, as mães donas de casa… ao fazer as comezinhas tarefas domésticas, cantam. E as cantigas que ninaram o sono do menino Beto? Para além do Xô xô pavão, Sertaneja, Lábios que beijei, Índia, Tudo acabado, A deusa da minha rua, Boemia, Normalista, Chiquita bacana, Velho realejo…

Assim cresceu o menino Beto.

Havia na sua vizinhança umas festinhas na casa de uns e de outros, para dançar e paquerar as meninas. Eram chamadas “Assustado”. Nesse tempo, ele era gozado como “moço velho”, porque preferia juntar-se aos mais velhos, que ficavam afastados dos moços ouvindo e cantando canções de Carlos Galhardo, Orlando Silva…

Um dia, numa dessas festinhas, viu pela primeira vez o cavaquinho. O homem que tocava o instrumento percebeu o interesse daquele menino, que trocava a companhia dos amigos pela dos homens que tinham idade de ser seu pai. Perguntou, Quer comprar? Beto ficou desconfiado, tímido como sempre foi, e respondeu que não tinha dinheiro. Nesse dia, usava no pulso um relógio vistoso, azul, da marca “Megalo”, que ganhara do pai. Tinha então de 11 para 12 anos. O homem fez uma proposta. Quer trocar esse relógio no cavaquinho? Volta o garoto para casa radiante de felicidade, ansioso para experimentar nas cordas do cavaquinho as notas do Brasileirinho. A bronca do pai foi plenamente compensada com o prazer de desfrutar da companhia do novo amigo. De ouvido, tentava tirar as músicas do rádio, as valsinhas de ninar, tudo que a memória infantil costuma guardar em lugar sagrado.

Já estava com 16 anos quando conheceu Dilson Reis, vizinho no bairro de Areias. Através dele, chegou a Marco César, Canhoto da Paraíba, o Conjunto Pernambucano de Choro. Chegou a Eliane Caldas, que lhe conseguiu uma bolsa no Conservatório Pernambucano de Música. Lá concluiu os seis anos de formação. E nunca mais se afastou da música. Marco César, que o apresentara a Eliane Caldas dizendo, “Esse menino não pode ser desperdiçado”, também foi decisivo para a troca do cavaquinho pelo bandolim, com um argumento irrefutável: “Se você gosta mais e toca mais Jacó do Bandolim do que Waldir Azevedo, seu instrumento é o bandolim e não o cavaquinho”.

Quando vou ao Poço das Artes, gosto de ficar numa mesinha solo, para que ninguém puxe conversa comigo enquanto me entrego à música instrumental. Mas o melhor mesmo é uma Roda de Choro, com os improvisos entre os instrumentistas, uma verdadeira jam session, inventada pelos negros americanos e aqui pelos nossos chorões, salve mestre Pixinguinha! Roda de choro como tive o privilégio de assistir na casa de Betto, anos atrás, num almoço domingueiro em que estava no Recife, para se juntar aos chorões de cá, o paulista Luiz Nassif.

As histórias e os causos são muitos e apenas comecei a contar. O título “Conversa de Cordas”, como já disse, plagiei de Betto do Bandolim, que ele usou para nomear a série de apresentações com outros instrumentos de corda naquele bistrô. Assisti à primeira, na boquinha da noite do domingo 17 de outubro passado. A conversa de cordas daquela noite foi entre Betto do Bandolim e Bozó Sete Cordas. Voltando para casa, percorrendo as tranquilas ruas arborizadas do meu amado Recife, foi nesse dia que pensei em espichar o prazer dos ouvidos com o prazer da escrita.

Além das trajetórias de vida, as histórias que são contadas nos intervalos das músicas. Se eu fosse americana, por exemplo, registraria uma que ouvi entre Wilton Marsallis e Eric Clapton no Lincoln Center de Nova York. No mesmo tom, nessa noite do dia dezessete de outubro, soube como Betto do Bandolim conheceu Bozó Sete Cordas. Foi através de José Maciel Pinheiro, tesoureiro do Banco do Brasil, também criador de gado de corte, homem de dinheiro, pandeirista não profissional, conhecido como Maciel do Pandeiro. Esse Maciel do Pandeiro morava naquela ocasião em Tijipió, onde também morava Bozó. Tão logo ouviu Betto tocar, resolveu que aquele bandolim e aquele violão tinham que se conhecer. E assim foi. E assim continua sendo.  

Antes de assistir a essa apresentação entre Bozó e Betto, eu já presenciara uma outra conversa de cordas que me levou, inclusive, a escrever uma crônica (“Viva o Chorinho”), publicada na “Revista Será?” de 16 de dezembro de 2012. Lá se vão 9 anos…  

Naquele então eu assistia às noites de Choro comandadas pelo mestre Bozó Sete Cordas no Bar Retalhos, à brisa do rio Capibaribe, na rua da Aurora. Numa dessas noites, aconteceu um improviso entre Betto do Bandolim e Vinícius Sarmento ao violão, Vinícius mal saído dos cueiros e já músico grande. Mal ouvi os primeiros acordes, abandonei a mesa da calçada onde estava com a turma de Sílvio, e entrei na sala onde os músicos tocavam. As mesas de dentro, não mais que dez ou doze, ficavam apertadas nas duas pequenas salas da casa e estavam todas ocupadas. Mas aquele era um dia de confraternização e uma cadeira vazia me acolheu com simpatia. Como costumava fazer quando ia aos sábados para assistir ao “Choro Miúdo” de Bozó, tentei abstrair o barulho das conversas para me concentrar só na música.

Num certo momento, comecei a perceber uma corrente de energia, que fosse fluindo da música, da conversa daqueles dois instrumentos, para os animados e distraídos conversadores das mesas. E aí aconteceu o milagre, nessa nossa cultura brasileira barulhenta: o reconhecimento do quão pouco podemos dizer que possa ser melhor do que a música. Com pouco, como acontece nos instantes mágicos, todas as mesas estavam em completo silêncio. Palmas aos improvisos. Momentos de êxtase.

É isso aí, queridos leitores. Até a próxima Conversa de Cordas.

Viva Bulindo

Para morrer, basta estar vivo. Mas ninguém morre antes da hora. E tem mais: a pessoa não pode andar distraída, que a morte só quer uma desculpa. A Mulher do Sétimo Andar, vocês já devem ter percebido, anda sempre com a cabeça na lua. Ou nas estrelas. E aconteceu duas vezes em sua vida que a morte lhe fez um susto danado. Sempre no mês de outubro.

A primeira vez foi no outubro de 1968. Vinha caminhando numa lama de dois dias chuvosos. Um pé calçava seu tênis de número 36. O outro, um chinelo de número 41. Naquele sítio não havia cama para dormir. À noite todos se ajeitavam como Deus é servido. Na véspera, ela se acomodara em um dos bancos compridos como de um circo, aliás, era mesmo a armação completa de um circo, que só teve serventia para uma única assembleia. Ao acordar, ela já não encontrou o outro pé do sapato e calçou um chinelo que avistou no banco logo abaixo do seu. Nos primeiros dias foram servidas as três refeições. Na véspera, porém, coubera-lhe metade de uma barrinha de chocolate.

Naquela manhã anunciava-se que finalmente começariam os trabalhos e a situação de alimentação seria regularizada. A Mulher do Sétimo Andar retornava do banheiro, que ficava na extremidade oposta ao circo. Com o tênis no pé direito e o chinelão no esquerdo, ela vinha caminhando com dificuldade na lama escorregadia, quando ouviu os tiros. Assustou-se. Ao tentar correr para alcançar logo o lugar onde estavam os outros, caiu. Viu quando o dinheiro, parece que também amedrontado, pulou do bolso do casaco e se esparramou pela lama. Naquele momento, teve certeza de que o tiro a havia atingido e pensou, Mas que morte mais besta! Foi apenas um lampejo de segundos. Logo se levantou, deixou as cédulas enlameadas no chão e caminhou o mais rápido que conseguiu para encontrar os companheiros.

A tropa de Fleury era composta de 12 policiais. Dali, caminharam 12 km até chegar à praça de Ibiúna. Nunca verificou se alguém terá fotografado aqueles setecentos estudantes avançando em três imensos cestos de pão francês no centro daquela praça.

***

A segunda vez foi nesse outubro de 2021. A Mulher do Sétimo Andar havia pedido remédios na farmácia. Certificou-se que entregariam o pedido antes das nove horas da noite. “Durmo cedo”. “Sim, sim, minha senhora. Pode ficar tranquila”. Deu nove horas, nove e meia, nada. Então ela foi dormir. No quarto, fechou a porta, ligou o ar refrigerado, leu um pouco e logo adormeceu.

Foi acordada mais ou menos às onze horas da noite com uma lâmpada sendo acesa bem defronte aos seus olhos. Viu a luz da sala de interrogatório na Avenida Tiradentes em São Paulo. Ou seria o juízo final? Três pares de olhos assombrados na sua direção, e logo a voz da irmã, pegando no seu braço, quase gritando: “Tá bulindo, tá viva! Graças a Deus!” – A Mulher do Sétimo Andar mal teve tempo de abrir os olhos. – “Como você pede remédio na farmácia e depois vai dormir?”– E o cunhado – “Eu não disse, que ela estava era dormindo? Vamos embora, deixa a pobre voltar a pegar no sono”. “Venha pelo menos fechar a porta” – replicou a irmã, com a voz ainda embargada – “Como é que a pessoa vai dormir e deixa a porta só no trinco?”

Era muita coisa para explicar de uma vez só. Não conseguiria conciliar o sono. Passou a chave na porta e veio ao computador escrever.

Se… claro. Se tivesse, só por desencargo de consciência, ligado à portaria para avisar que, caso o entregador da farmácia ainda viesse… Mas não. Já sabendo a falta de compromisso tão comum por essas plagas…

À tardinha daquele dia, havia ido verificar detalhes do salão de festas, o qual usaria pela primeira vez desde que morava naquele prédio, para receber uma tropa boa de amigos das noitadas de música. Na volta, o celular tocava na mesa do escritório. Correu para atender e esqueceu de voltar para trancar a porta. Das distrações dessa Mulher do Sétimo Andar. Assim, dormiu com a porta de entrada só no trinco.

Bom, dos males o menor. Não arrombaram a porta. Ligou depois para a irmã e ela detalhou a cena. Do porteiro, um dos mais antigos do prédio, preocupado porque aquela moradora não atendera o interfone nem o celular nem a campainha da porta, sendo que há menos de um mês a dona Regina, do sexto andar, havia morrido de repente de um ataque cardíaco. Ele contou tudo isso à irmã e ao cunhado, enquanto subiam pelo elevador.

Na verdade, ela morreu, mas foi de pena da irmã. Que, boa e generosa, revidava, “Tudo bem, o que importa é que você está viva. Graças a Deus.”

***

Enquanto escrevo, transporto-me ao quarto de minha mãe no seu velho casarão de Olinda. Seu estado de saúde piorava dia a dia. Naquela tarde, eu e Denise estávamos com ela e precisamos chamar a ambulância do seguro saúde. Minha mãe pediu para avisar a Totonho. Enquanto era atendida pelo médico, ficamos com ela no quarto os três filhos que moram no Recife. Passada a crise, num certo momento me sentei na cabeceira de sua cama. Quarto de mãe guarda algo de sagrado. Passei a mão nos seus cabelos brancos. “Está melhor, mãe?” – Ela olhou para mim com um sorriso entre aliviado e irônico, a fina ironia inglesa de dona Octávia. “Estou bem, minha filha. Estou viva”.

Quanto a mim, estou viva, bulindo. E, com fé em Deus, o outubro derradeiro não vai se avexar em vir nem tão cedo.

Diário do Pina

Conceição – 28 de setembro de 2021

Nasci branca, branquinha da silva. Um belo dia ela resolveu que não: Eu era mulatinha da silva. Gostei mais do que ser branca. Mas demorou a cair a ficha. A dona Isabel, dona da primeira escola onde estudei, lembro daquele dia. Meu pai conversando com ela no pátio da frente da escola, que se parecia com o quintal de minha casa. Mangueiras. Lá havia também um balanço pendurado num dos pés de manga onde meu pai ficou me balançando enquanto conversava com a dona Isabel. Depois ela nos levou a uma sala de visitas da casa onde morava, que ficava junto ao prédio das salas de aula. Lá nos serviu um suco de caju, tão docinho! E cantou para mim Bonequita linda dos cabelos louros. Meus cabelos eram louros? Preto era louro?

            “Meu cabelo é bom, Carmem?” Carmem só dizia a verdade. E ela disse: “Mais ou menos. É cacheado. Mas não é pixaim que nem o meu.”

            Hoje espio aquela menina do longe de meus sessenta anos. Aquela escritora me criou com uma felicidade que é uma espécie de milagre que só acontece aos meninos pequenos. Só fui me dar conta da menina triste pelos retratos no álbum de fotografias.

            Foi por essa época, aos treze anos, quando descobri a menina triste que morava dentro de mim. Tomei-me de uma revolta!

Milagre – 29 de setembro de 2021

A Mulher do Sétimo Andar despertou com a Aurora. Havia caído uma chuvinha de madrugada, mas não impediu o sol de aparecer na sua hora costumeira de verão. Desligou o ar refrigerado, abriu as cortinas do quarto, e a vontade era sair voando em direção à praia, feito os pombos vagabundos. Vai com calma, dona moça.

            Para ela, essa quarta feira passou a ser o Sete de Setembro, inauguração oficial das praias do Recife. Antes tarde do que nunca! Quantos empecilhos vinham adiando esse dia… Imaginem, até uma Corona. Mas tudo passa nessa vida. Hoje ela estava livre, de alta.

            Atravessa a avenida e dá-se o milagre. Vocês que pensem que milagre é coisa rara, que ocorre em grandes acontecimentos. Alguns, espetaculares, como aqueles narrados pelos evangelistas, da multiplicação dos pães, da transformação da água em vinho… Milagre é coisinha à toa, que pode acontecer na sua cara e você nem percebe por que não presta atenção. Parar de ouvir o barulho insuportável dos motores dos automóveis, em troca da cantiga do vento e do mar é um desses milagres. E é tão fácil… Basta atravessar a avenida, a passarela que separa o calçadão da areia da praia, e pronto. Lá está o deleite supremo para os ouvidos. E para os olhos. Com alguma sorte, também para o olfato: o cheiro inebriante dos sargaços. E, como se não bastasse, a sola dos pés ainda pode sentir o roçar daquele tapete verde escuro das algas marinhas; as pequenas correntezas das piscininhas que Iemanjá, mãe, avó, oferece aos meninos pequenos. Sim, porque Iemanjá, que há muito emigrou da África para o Brasil, tem seu trono de rainha no Alto Mar defronte às jangadas dos pescadores. Aqui mesmo, no Pina. De onde saem as oferendas à Conceição todo dia oito de dezembro.

Pintor das madrugadas – 30 de setembro de 2021

Ela havia voltado à rotina das madrugadas. Nesse último dia do mês de setembro, fez o mesmo percurso do dia anterior. Porém os dias nunca são iguais uns aos outros. Estava em pé no quebrar das ondas espiando a aurora. Os pés iam se afundando na areia, a ver até quando o corpo se equilibrava, numa brincadeira que aprendera em menina e depois ensinara a seus filhos meninos. Quando se volta para principiar a caminhada até o Buraco da Velha (quem sabe hoje um banho de mar?), vê um homem vestido com bermudas e camiseta, fotografando o nascer do sol. Ao se aproximar, reconhece o pintor de antes da longa quarentena de 2020/2021. Ele se aproxima e lhe chama por outro nome de mulher.

            – Ah, desculpe, acho que fiz confusão.

            – Você não é aquele pintor que gostava de fotografar a aurora, as jangadas saindo ao mar?

            – Ah, sim. Isso mesmo. Agora me lembro. Você escreve, não é isso?

            O mesmo rosto redondo, o mesmo tipo de vestimenta com cores claras e combinantes. Talvez, mais fios brancos de barba. Os cabelos (seria careca?) encobertos pelo boné.

            – Veja, hoje você ficou compondo a paisagem.

            – Que cores fantásticas deste alvorecer, não? Ah, por favor, me manda! Prometo, em torna, te enviar a crônica de hoje. O número do telefone dela foi registrado no celular dele. Ao longe, em cima de um dos arrecifes, viram uma figura magra, enigmática, em posição de ioga, mãos postas, mirando o sol e o infinito.

            – Vamos deixar ele em paz, não é?

E continuaram seus caminhos, uma em direção ao norte, o outro ao sul. Ele caçando imagens. Ela caçando histórias.

Sedução

(Essa crônica é dedicada às minhas amigas feministas)

A vida corria serena naquele Sertão de Minas Gerais. Até o dia em que Iô Liodoro trouxe Dona Lalinha para dentro de seu casarão do Buriti Bom.

O nome dela mesmo é Leandra. Casos. Como o acontecido ali mesmo, o da nora de iô Liodoro. Dona Lalinha – a das mais mimosas prendas – conforme se diz: moça-de-corte, dama do reino, sinhá de todo luxo – e linda em dengos, que nem se intentada a todo instante diante dos olhos da gente. Dona Lalinha. Mulher de iô Irvido. Tido quase ano que ela estava ali, no Buriti Bom. Iô LIodoro caçara a capital, tinha trazido Dona Lalinha. Iô Irvino fugido com outra. Isto era possível? Iô Irvino voltasse, era para encontrar Dona Lalinha, mas Dona Lalinha cuidada entre suas sedas e jóias, de cidade, sem desmerecer.

Iô Liodoro? O senhor ver um homem em mando, vê iô Liodoro. Ele tudo rege, sisudo, com grandeza. Aqui, confio ao senhor, por bem, com toda reserva: fraqueza dele é as mulheres… de tardinha, de noitinha, iô Liodoro tem cavalo arreado, sai, galopa, nada não diz. Tem vez, vem só de madruga. Iô Liodoro regressa a casa às vezes já no raiar das barras, esteve lavourando de amor a noite inteira. Esse homem é um poder, ele é de ferro! Dentro de casa, um justo, um profeta.

O Buriti-Grande – igual, sem rosto, podendo ser de pedra. Dominava o prado, o pasto, o Brejão, a mata negra à beira do rio, e sobrelevava, cerca, todo o buritizal. Não podia o vento desgrenhar-lhe a fronde, com rumor de engenho, e mal se prendia em seus cabelos, feito uma grande abelha. Seria mais cinza ou verde menos velho, segundo dividisse o forte do sol ou lambessem-no as chuvas. E, em noite clara, era espectral – um só osso, um nervo, músculo. Sua beleza montava, magnificava. Marcava obstáculo: um tinha que parar ali, momentos que fosse, por império.

Agora, maio, era mês do mais de florezinhas no chão, e nos arbustos. E o pau-doce, que dá ouro, repintado. Mas tinham passado por lá, com as lobeiras se oferecendo roxos. E a faveira cacheada festiva. E o pau-terra. – “Elas quiseram parada, em demorão…” Maria da Glória e Dona Lalinha. O pau-santo começando a florir: flores alvas, carnudas, cheirosas, mel-do-leite, com coroa amarela de estames. Colhiam daquelas flores, as mal abertas – que nem ovos cozidos, cortados pelo meio; as abertas todas: como ovo estrelado, clara e gema – Mulheres têm a idéia sem sossego… Mulher tira idéia é do corpo…

Do Brejão, miasmal, escorregoso, seu tijuco, seus lameiros, lagoas. Entre tudo, flores. A flor sai mais colorida e em mimo, de entre escuros paus, lôbregos; lesmas passeiam na pétala da orquídea. Do Brejão-do-Umbigo, garças convoavam. O brejo não tinha plantas com espinhos. Só largas folhas se empapando, combebendo, como trapos, e longos caules que se permutam flores para o amor. Aqueles ramos afundados se ungindo dum muco, para não se maltratarem quando o movimento da água uns contra os outros esfregava.

Dona Lalinha, tem mulheres de lideza assim, a gente sente a precisão de tomar um gole de bebida, antes de olhar outra vez. Iô Liodoro a trouxera; fora buscá-la. “A senhora vem, todos estão lhe esperando. Há de ser sempre minha filha, minhas outras filhas suas irmãs… Lá é sua a nossa casa.”

***

Correu para o quarto, ria sozinha, incontidamente. Depressa, como num jogo febril, tirou o vestido, vestiu as calças escuras, tão justas, que lhe realçavam as formas. Não o suéter cinzento, mas uma blusa, a que mais se abrisse, mais mostrasse. Nem tomou fôlego. Calçava os sapatos de pelica vermelha, bem esses, que tinham salto altíssimo e deixavam à vista a ponta-do-pé, as unhas coloridas de esmalte, como fruta ou flor. Daí, à penteadeira, se exagerou. Mais – assim a boca mais larga, para escândalo! Com o ruge e o batom, e o rímel, o lápis – o risco que alongava os olhos – ah, no senhor sertão, sabiam que isso existisse? Apanhou a cigarreira, o isqueiro minúsculo, que era uma jóia. Veio para a sala. Desse jeito o recebeu.  

“Pois não, como o senhor, quer, então podemos viajar, dentro de uma semana…” – disse, sorrateira como só a fingida inocência o sabe ser. E esperou. Mas nada acontecia. Sentara-se diante dele, burlã, desenvolta, cruzara as pernas. Iô Liodoro não se assombrava, não vincara a testa, não arregalava os olhos. Tampouco esquivava encará-la. Um momento, ele olhou em torno, e disse: que, de qualquer jeito, convinha levar tudo o que dela fosse, para maior regalo, trens e roupagens; o número de malas e caixas não fazia conta. Seu tom, seu gesto, nele denunciavam um uso profundo, uma crença: a de que cada um devesse estar sempre rodeado do que era seu – pessoas e coisas. “Perdi um marido… e ganhei um sogro…” – gracejou, no outro dia, com a irmã, mais velha; a irmã louvava-a por ter concordado em partir com iô Liodoro.

***

Passou-se a festa de natal, a festa de São João, Lalinha ia ficando.

E o mais – que foram esses dias curtos, que se seguiram, iam-se. Vazios de outras coisas, e com frios aumentados. Jogar a bisca com Iô Liodoro, a mesa se forrava com um grosso cobertor, os dedos palpando a lã do cobertor colhiam um suadir-se de leito bom e amplo sono, longo, longo. Sim, Lala, Leandra, suas mãos eram bonitas, moviam-se, volviam-se, alvamente empunhavam o feixe de cartas, os reis e condes e sotas, desdobrados em dois, intensas roupagens … o escarlate esmalte das unhas, tê-las tão cuidadas, ali no inútil do Buriti Bom, travava com um ressaibo quase de desafio.

Confirmava! Para eles, eu sou apenas o que não sou mais: a mulher de um marido que não mais tenho… E ela perdeu o acompanhamento do tempo: – Estou no sertão… No sertão, longe de tudo…” – se compadeceu. Notou, de repente: estava chorando. “Estou chorando é de raiva, é de ódio…” Que tinha vindo fazer ali, lugar de outros, tão trazida? Todos queriam que ela fosse uma coisa, insistentemente devolvida a quem a recusava? Abaixo, quase de o poder tocar com os dedos o pobre jardinzinho, atulhado, de suas flores dava o ar, das que desabrochar escolhem o escuro. Tinha – lembrou-se – a tirolira amarela, migalha de seca, um retalhinho de flor: essa obedecia de abrir-se exata no entreminuto das quatro da madrugada. – “É um relógio…” – diziam. Sabiam coisas demais, do tempo, dos bichos, de feitiços, das pessoas, das plantas – assim era o sertão. Davam-lhe medo.

Fechou a janela, mesmo no obstáculo do escuro caminhou, tateou pela cama. Deitada, uma das mãos estava sobre um seio, sentia o liso de seu corpo como se apalpasse um valor. Sabia-se bela, desejável. Assustava-a, qual se fosse a velhice, a insônia – aquela extensão sem nenhum tecido. Não, precisava de ir-se embora dali, voltar para a sua casa, para perto de suas amigas, na cidade… E ouvia. Ouviu. Era um rumor de cavaleiro chegando, estacara encostado aos pilares da varanda. Lidando com o animal. Desarreava. Tão tarde assim. Mas era iô Liodoro, retornando. Iria escutar-se os passos, quando viesse pelo corredor. Não ouviu, não ouvia. Iô Liodoro, infatigável no viver, voltando do amor de cada dia, como de um trabalho rude e bom. Aquele homem assentava bem com as árvores robustas, com os esteiões da casa. Ele estreitava a execução dos costumes, e não se baixava amesquim para o que de pequenino se desse.

Depois, ela esteve doente. Dos dias de gripe, veio-lhe a desgostosa fraqueza, pausa em pausa, aquela mesma impotência dela exigindo maior decisão. Grata todavia a tanto trato de carinhos – de Glorinha, Maria Behu, Tia Cló, de todos – pensou sério em ir-se embora. Não, não ficaria mais tempo ali, não queria completar um ano. E ria-se: ficar, como uma vaca permanecente nas pastagens – entre um tempo de chuvas e outro tempo de chuvas – de verde a verde… Logo em logo, avisaram-se as chuvas. Glorinha fez anos. Caíram as tanajuras. Deram fruta as jabuticabeiras. Com Tia Cló, ia-se ao cerrado, apanhar mangabas para doce.

Assim, e de repente, não era ali o Buriti Bom, com as árvores em pé, o céu sertanejo, a Casa – inabalável como um século –, o rio próximo, o movimento do gado, a gente, o Brejão-do-Umbigo e a Baixada do Buriti-Grande ao sul, e as matas de montanha pelo lado do norte?

Fazia tempo que cessara a cerração de águas. O tempo era claro, balançava-se o vir do frio. A camélia plantada por mão de Lalinha deu flor. Honrou-se o aniversário de Behu, e o de iô Liodoro, festejaram-se tão simples como sempre, tomava-se vinho-do-porto e do de buriti, perfumoso vinho óleo. As primeiras boiadas engordadas se enviaram. Mataram, rio adiante, duas onças-pretas. Passou-se a Semana-Santa.

***

Assim como as coisas do nada e nada se defurtam, para súbito acontecer, se saindo de muralhas de feltro; foi assim. Ela sentira sede – talvez não fosse bem sede, como recordar-se? Ela saíra do quarto, segurava o pequeno lampião, pouco maior que uma lamparina. Veio pelo corredor. Parara, já na sala de jantar. Pressentiu-o – olhou. Seus olhos para a porta. Soube-o, antes, sob o instante. A porta se abrir, de-bravo. Subitão, ele apareceu, saindo do quarto. O coração dela dera golpes. – “Boa noite, minha filha!” – iô liodoro disse. E tudo esteve tão natural e tranquilo, ela mesma não entendia mais seu tolo susto, e se admirava de tão rápido poder recobrar toda a calma.  Ela estava de penhoar por sobre a fina camisola, calçava chinelinhos de salto. Lesta, sua mão endireitou o cabelo.

Iô liodoro todo vestido, e de botas, decerto as preocupações nem o tinham deixado pensar em dormir – ou ia sair, tão tarde? Tampouco teria acabado de chegar. Ele empunhava o lampião grande. Quereria alguma coisa. Seu dever de servir, Lalinha cumpria-o, de impulso; ofereceu-se para fazer café. Sentiu que devia mostrar-se desenvolta. “Não, minha filha. Vou tomar um restilo…” – ele respondeu manso, não quisesse acordar os demais da casa. Era curioso – Lalinha pensava – faz ano-e-meio que estou aqui, e nunca houve de me encontrar assim com iô Liodoro. Ele depusera o lampião grande na mesa, e ela o imitou, colocando bem perto o lampiãozinho. Desajeitava-se de como poder se portar. Não de menos ele apanhava no armário a garrafa e um cálice, se servia. Bebeu de costas para ela, foi um ligeiro gole – “Estou a gosto…” – disse, voltando-se. Fitou-a. Imprevistamente, caminhou para a cadeira de pano, sentou-se – “Não tem sono, minha filha? Senta, um pouco…” – pediu. Obediente, sentada em frente dele, ela estava mais alta. Ele se recostava, distendera as pernas. Precisava do conforto de uma companhia, precisava dela, Lalinha. Pobre iô Liodoro! Tudo tão inesperado, e ela queria ajudá-lo, de algum modo, queria sentir-se válida. Seu espírito se dividia em punhados de minutos. Conversavam.

Se podia dizer aquela fosse uma conversa – ele mal mencionava singelas coisas, nem perguntava; parecia precisar só de medir com uma palavra ou outra as porções de aliviado silêncio. E a satisfação que ela sentia: estava sendo prestimosa, acompanhava-o com sua insônia; e ele, via-o agora, era uma pessoa como as outras, sensível e carecido. Encaravam-se, sem cismas, era como se entre eles somente então estivesse nascendo uma amizade. Podia ser. Quanto tempo durou? Combatendo o silêncio, o monjolo, o monotom do monjolo; e os galos cantaram. Pausavam. Como se separaram, como se deram boa noite? Ela não atinaria dizer. Um deles se moveu na cadeira, o outro também, e estavam de pé, cada um receava estar já roubando do sono do outro. E Lalinha voltou para seu quarto, estava feliz, da felicidade mera e leve – a que não tem derredor nem colhe no futuro. Dormiu sendo boa.

A casa – vagarosa, protegida assim, Deus entrava pelas frinchas. À noite, tardava-lhe a barra do sono. Duas noites, desse modo.

***

À terceira noite…

E havia luz, na sala. Seria ele? Lalinha se ajeitou, resoluta. Pegara a lâmpada. Ia. Caminhou, queria ter o ar de quem não ia com intenção; fazia mal? Nada tinha a esconder, não trazia malícias.

Ele estava lá, na cadeira-de-pano, como da outra vez. Saudou-a com uma expressão de exata insurpresa, que acolhia-a melhor que um sorriso. – “Sem sono, minha filha?” Tinha a garrafa e o cálice, ali perto, no chão. Sentara-se, naturalmente, diante de iô Liodoro, na mesma cadeira. E tudo realizara de vezinha, tenuemente – como se temesse destruir um bom encanto. O que se sentia fruir, a mais, era o quieto agrado com que aquela noite recomeçara no ponto certo a anterior, como os momentos da vida sabiam bem emendar-se. Tudo? Não, de repente havia uma diferença, uma mudança no silêncio, ela percebia.

Notou, correita, quis duvidar, duvidou. Iô Liodoro saía de seu caráter? – ela pensava. Iô Liodoro, o peito extenso, os ombros, seu rosto, avermelhado vinhal. “Ele me espia com cobiça…” Seus olhos inteiravam-na.

– Você, tão delicadazinha, minha filha… Carece de tomar cautela com essa saúde…

Ele falou. E era um modo apenas de acariciá-la com as palavras. Ela sorriu, sorriuzinho. Estava com o penhoar, por cima da camisinha de rendas, vaporosa, de leite alva. Sabia-se bela. Gostaria de estar entre transparências de uma gaze. “Pobre iô Liodoro” pensou “ele precisa disso, de um pouco de beleza…” Sentia-se fitada, toda. Dele defendida ela se encontrava, como se ambos representassem apenas no plano esvaecente dum sonho. Aquela gula – e o compressivo respeito que o prendia – era um culto terrível. Sonhava-o? Despertaria? E, por um relance, imaginou: como prolongar aquela hora E como, depois, desfazerem-se do voluptuoso enlevo? Falavam mentirosamente. Os pobres assuntos garantiam a possibilidade do deleite, preservavam-no.

– “Pois… Assim tão linda, a gente mesmo acha, faz gosto…” – ele disse, não se acreditava que sua voz tanto pudesse se mitigar.

– “O senhor acha? De verdade?” – ela respondeu: se apressara em responder, dócil, queria que sua voz fosse uma continuação, mel se emendasse com a dele.

– “Linda!” – ele confirmou. E mudara o tom – oh, soube mudá-lo, hábil: dissera-o assim, como se fosse uma observação comum, sã e sem pique. Quem o inspirara? A fino, que desse modo o diálogo podia ser uma boa eternidade. Não, ela não ia permitir que aquelas palavras fenecessem:

– “O senhor acha? – Gosta?” – sorriu, queria ser flor, toda coqueteria sinuasse em sua voz: – “De cara? … Ou de corpo?… – completou; sorria meiga.

– “Tudo!…” E com a própria ênfase ele se dera coragem. Mas ela, sábia, alongava a meada:

– “A boca…? – perguntou.

– A boca… Todos os dentes bons, tão brancos, tão brilhando…

Sua admiração se dizia como a de uma criança. Lalinha descerrara o sorriso, exibia aqueles dentes, a pontinha da língua.

Riram juntos. E ele mesmo acrescentou:

– Os olhos…

– “E o corpo, o senhor gosta? A cintura?” – ela requestou.

Sim, a cintura, o busto, os seios, as mãos, os pés… Devagar e manso, falavam de tudo nela, os olhos e as palavras dele quentemente a percorriam. Iam-se as horas, desvigiadas das pessoas. Separaram-se, sem se darem as mãos, ela sorriu esquivosamente.

No leito, exultou. Borbulhavam-se afãs, matéria de pensamento. Tudo excitava – inconcebível, arrebatador como se lido e escrito. Ela era bela, criava um poder de prazer; e nem havia mal, naquilo. Ela se disse: sua beleza se empregara, servira. Adormeceu assim. Muito.

E entanto cedo acordou, abriu a janela toda, o frio era bom, a madrugada mal raiava: sus roseazins de nuvens sufladas, de oriente, dedo a dedo, anjos, no desrol. Belo dia! Não obtinha dormir mais, não podia, tanto se governava lépida. Ouvia as vacas, grandes de leite, bondosas. Mugia-se. O mundo era um sacudido cheiro de bois, em que o canto dos pássaros se respingava. O touro, ora remugia o touro, e o jardinzinho estava ali, ao pé da janela, viçoso de verdes hastes. O dia custava a começar, a passar. Tudo era grande, e belo. Avançavam, de alto ar, as araras, suas cores, fortes vozes. Depois, sob o pleno sol, bom e belo o Brejão – suas grandes dadas flores: a olímpia, a dama-do-lago, a gogóia, o golfo-da-flor-branca, a borboleta, a borboleta amarela, as baronesas. O brejo alegrava, se doava, doce como o ócio e o vício.

Nesta crônica, estão em itálico frases de João Guimarães Rosa, que copiei livremente. (“Buriti”, Noites do Sertão, Oitava Edição, Rio de Janeiro, Nova Fronteira)

Um tributo a meu marido

Rua Cravinhos, esquina com a avenida Nove de Julho. Dali, saindo a pé, havia uma feira, onde descobri que caqui não era tomate maduro, e as flores de Alcachofra não serviam apenas para enfeitar vasos enormes, mas também para comer com um bom vinho de companhia. Dali, pela rua Oscar Freire, chegava-se à rua Augusta, coitada, tanto decaiu quando principiou a era do comércio confinado. Minha mãe, aos sessenta anos, nas visitas a São Paulo, ainda fazia esse percurso com a mesma alegria com que explorava a rua Nova e a rua da Imperatriz no Recife.

Aos sábados, nesse nosso primeiro lar em São Paulo, almoçávamos aos vinhos chilenos. No sofá da sala, as taças continuavam nas nossas mãos, numa prosa de saudade. Aqueles olhos verdes… Pela imensa janela viam-se prédios, e o chão do apartamento parecia tremer à passagem dos ônibus pela avenida. E Zé Hamilton, com ares de Antônio Conselheiro: “Eu quero o mar! Eu quero o horizonte!”

São Paulo é uma amiga reservada, de quem a gente só começa a gostar depois de conviver com ela por três anos. Pelo menos. Que anos difíceis aqueles primeiros da década de 1970… Ditadura. Amigos presos, desaparecidos, mortos. Porém a vida seguia, malgrado. E o sol, tão encoberto pela poluição da atmosfera paulistana, fazia a vida renascer a cada aurora.

A gente gosta de uma cidade menos pelo que ela é do que pelo que nela vivemos. Em São Paulo nós dois construímos uma família, educamos nossos filhos, fizemos nossa profissão e muitas amizades. Nesta cidade vivemos nosso amor.

Pensei mesmo que havia feito essa viagem a São Paulo, na reta final de uma longa quarentena, para assuntos comezinhos da vida, em consultórios médicos e dentista. Não. Em 26 de julho de 2021, numa manhã fria e ensolarada dessa cidade, que só perde em meu coração para o Recife (porque, afinal, a paixão pela cidade das águas tem um quê de eternidade), descubro que vim cá rever as ruas, as praças, os parques, a rua Tingui. As cidades guardam nossa memória.

Vim rever os amigos. Amigos que são meus e foram nossos. E vi tão poucos… A vida às vezes é assim. Os assuntos comezinhos passam à frente do que realmente importa. Vir a São Paulo é estar com esses amigos. É estar com o filho Pedro, que aqui ficou e recomeça seu próprio ciclo de família, trabalho, amigos… Memórias vivas, latejantes.

Rua Tingui, 273. A construção da casa, a festa da cumeeira, as festas, quantas festas! São João, Natal, aniversários, ou um simples almoço aos domingos.

Por muitos anos não quis ver. Dessa vez, criei coragem e fui. Os janelões de freijó, feitos por um marceneiro espanhol de sabida competência e arte; a porta da frente da casa, de Cedro, esculpida pela nossa sobrinha Naia e Moacir. Tudo substituído pela frieza do aço. Aí pensei. Uma pequena fagulha, frente ao imenso incêndio provocado pelo capitalismo financeiro que derrubou os casarões da Avenida Paulista.

Um dia, chegando à casa do trabalho, encontrei, sentados no sofá e poltronas da sala o Hamilton, o primogênito Miguel e nosso sobrinho Marcus. Os três estavam em perfeito silêncio. Hoje compreendo que o diálogo entre eles não carecia de palavras. Hoje compreendo tanta coisa que não sabia… Hoje conheço melhor Zé Hamilton. Acho mesmo que gosto mais desse homem hoje do que ontem.

Diário do Pina – Terça feira, 6 de julho de 2021

Eram seis horas da manhã quando a Mulher do Sétimo Andar saiu de casa. O sol ainda se escondia entre nuvens escuras, que espinhavam a noite invernosa. Na portaria do prédio, principiava a troca de guardas da noite para o dia.

A maré estava enchendo, quando ela principiou a caminhar em direção a Brasília Teimosa. Pés descalços, segurando as sandálias na mão, máscara no bolso do short, andou pelas piscininhas que se formam do lado de cá dos arrecifes, até o Buraco da Velha. É uma caminhada curta, pouco mais de mil metros. Porém o peso da água em movimento aumenta o esforço das pernas, fortalecendo os músculos. Mas que ninguém se iluda: não é para isso (isso, como diz o evangelho segundo São Lucas, virá por acréscimo) que a Mulher do Sétimo Andar caminha, e sim pelo prazer de andar nas águas. Quase São Pedro, sobre as águas. Vai apreciando a areia desse fundo do mar rasinho, um deserto de Saara que a gente visse nas telas. Molha a mão direita e chupa, um por um, os dedos salgados com gosto bom de batismo. Se benze e joga um beijo ao fundo do mar, à morada de Iemanjá.

Os arrecifes seguram um mar raivoso. Com o tempo nublado do inverno, o sol demora a aparecer. As nuvens próximas ao oceano estão escuras. Mais acima, formam carneirinhos de lã muito branca, iluminados por fios de luz que conseguem ultrapassar a barreira das nuvens. O sol só vai aparecer pelas seis e meia, sem muito graça. Nessa época, misturada com rios açucareiros, a água do mar tem a cor do caldo de cana. As ondas do outro lado das pedras não dançam uma valsa de verão. No encontro com os arrecifes, parecem esmurrar um casco de navio.

“(…) o incessante vaivém dos rolos possantes e lisos das ondas que oscilavam lado a lado, encontravam-se com um marulhar, empurravam-se uns aos outros em direções inesperadas e de repente se dissolviam em cintilante espuma… (…) O mar dançava. As vagas não vinham de logo ali, redondas e uniformes em ordenadas fileiras, mas à luz pálida e tremulante o mar inteiro, a perder de vista, era rasgado, surrado, revirado, lambia, lançava ao alto gigantescas línguas pontudas, clamejantes, arremessava à beira de abismos espumantes silhuetas espinhentas e improváveis e, num jogo enlouquecido, parecia atirar pelos ares a espuma com a força de braços monstruosos. (Thomas Mann, Tonio Kroger).

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A família, os amigos, o trabalho, (o amor?), as leituras, uma réplica das revoltas estudantis de 1968, as mobilizações de 2021, o namoro, a prosa na boquinha da noite, o circo, a alegria, até a risada, a música, o fuxico, a tristeza… cabem num aparelhinho que pesa menos de meio quilo, inseparável do homem do século XXI.

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Naquela terça feira, a Mulher do Sétimo Andar cruzou com personagens da madrugada. Um rapaz muito magro, estatura média, vestindo uniforme de ginástica. Calça comprida azul marinho com listas verticais dos lados, camiseta sem mangas,  apanha sacos e copos de plástico que escaparam aos tratores da prefeitura na limpeza noturna. Sim, um ecologista amador. Só depois de cumprida a obrigação para com a preservação da natureza, inicia a corrida matinal. Imagino-o participando na São Silvestre.

            O outro é um homem a quem ela encontra sempre que passa pelas jangadas. Se conhecem sem nunca terem trocado palavras, a não ser o cordial bom dia. Ele não é pescador. É ajudante de terra dos jangadeiros que saem para a pesca nas madrugadas, e voltam sem horário definido, sempre antes do entardecer, quando novamente este homem estará a postos, pés descalços, bermuda surrada, peito nu tostado pelo sol, boné com aba para trás. Nos primeiros escritos desse Momentear, já foi motivo da crônica “O Lutador”, na qual ele conta fatos picantes de sua vida. A Mulher do Sétimo Andar nunca soube seu nome de pia, nunca o entrevistou, e esse apelido foi inventado por ela. Naquela terça feira, ele mais parecia um menino, catando iscas de pesca nas locas das pedras.

            Cruzou ainda com um jovem fazendo self no celular. Esse aparelhinho também serve para alimentar um narcisismo exacerbado no século XXI. Para esses Carregadores de Celular, a beleza da praia não é apreciada. Serve apenas como cenário para a fotografia dele próprio, que será postada nas redes sociais em tempo real.

Estórias, Histórias

Aquela moça tímida, magrinha, cabelos castanhos longos, estudante de Sociologia e Política, costumava frequentar a Livraria Imperatriz aos sábados. Foi lá que comprou, no ano de 1967, a quarta edição de Grande Sertão: Veredas, publicado pela Livraria José Olympio em 1965. Nos anos que se seguiram, principiou a leitura desse livro várias vezes. Nunca conseguia passar das primeiras páginas. 

O livro ficou anos e anos na estante. Atravessou o período de militância da moça, o mestrado, uma viagem do Recife para São Paulo, as atividades de ensino e pesquisa… Viu muito livro acadêmico passando na frente dele na fila. Até que chegou sua vez. E foi assim.

Na primavera de 1979, grávida de meu segundo filho, ganhei as estradas do Agreste de Pernambuco, onde fiz as entrevistas e observações para a tese de doutoramento. Lembro dessa pesquisa como dos melhores trabalhos de campo de minha vida. Gravador em punho, percorri, em um valente fusca, estradas e estradas de terra poeirentas. Era tempo de umbu maduro. Em cada casa visitada, a mesma ladainha, para não fazer desfeita com a cortesia dos donos da casa: “Cafezinho me dá azia, por causa da barriga. Mas se tiver umbuzada, aceito”. (A primeira vez que Pedro, pequenininho, viu na casa da avó uma terrina cheia de umbu, avançou naquela frutinha, a qual, menino paulistano, nunca vira antes, mas certamente da qual guardava o cheiro e o sabor, numa lembrança de seu tempo de peixinho nadando em águas calmas – ou turbulentas – do útero materno.)

Retomei a tese de doutorado ao voltar para São Paulo. No Cebrap, redigi um relatório para o órgão financiador da pesquisa. Entrava no oitavo mês de gravidez. Na hora do almoço, sozinha (pois me acanharia de tamanha gulodice na frente dos outros), ia a um restaurante chinês próximo à Alameda Campinas. Comia com gosto um prato que daria para dividir, sem dispensar a sobremesa. Ah, a fome das grávidas…

– Chega de nariz de cera, dona moça. Onde entra o Grande Sertão de Guimarães Rosa nessa história?

– Calma, meu leitor! Estamos chegando.

Um belo dia, tive uma ameaça de aborto, e fui obrigada a passar as últimas semanas antes do parto em repouso absoluto. Meu filho mais velho, com três anos, frequentava nessa época uma creche de meio período chamada Fralda Molhada. Presa na cama, tirei finalmente o livro da estante e passava minhas manhãs em companhia de João Guimarães Rosa. À tarde, Miguel trazia os brinquedos e espalhava pela minha cama e pelo chão do quarto. Quando ele dava uma folguinha, aos cuidados da empregada ou do pai, eu voltava ao livro. Essa primeira leitura foi inesquecível, pois, até então, eu não sabia de Diadorim moça e não rapaz. Vocês podem imaginar o quanto derramei de lágrimas ao final do livro, ao chegar à trágica descoberta?

Assentada a vida, retomei a tese. Deveria contratar um profissional para fazer a transcrição das fitas gravadas. Antes, principiei a ouvi-las para testar a qualidade da gravação. Foi então que se processou uma revolução na minha cabeça. Ouvir a fala de sitiantes, rendeiros, trabalhadores do campo, moradores de pontas de rua das pequenas cidades do interior, levou-me de volta à linguagem de Guimarães Rosa. Era como se eu estivesse lendo outras estórias com o mesmo linguajar de palavras, frases, expressões fora do vocabulário citadino, palavras bonitas, arcaicas, algumas ainda usadas em Portugal e que aqui foram preservadas em certas regiões do país. De mistura com sua grande erudição, que universo da língua portuguesa construíra aquele descobridor do Brasil!

Decidi então eu mesma fazer a transcrição das fitas. Um trabalhão! Mas valeu a pena. Tentei uma pontuação o mais próximo possível da entonação dos entrevistados, mantendo as palavras tal como pronunciadas.

Mais adiante, com o prazo de entrega da tese se esgotando, os meninos foram ficar aos cuidados da avó, que nessa época estava com outros netos e minha irmã numa casa de veraneio na praia de Maria Farinha. E eu fiquei, na gostosa companhia do maridinho, com o tempo todo para mim. Noites a dentro digitando na Olivetti praxis. Gráficos, tabelas, uma linguagem acadêmica. E as entrevistas?

Uma noite, relendo-as, escrevi uma estória, O Corumba. Ao entregar ao orientador os capítulos finais, deixei também com ele essa estória, ressalvando que poderia escrever outras, para entremear nos derradeiros capítulos da tese, como fossem ilustrações. Mas, insegura, adiantei que ele ficasse à vontade para opinar se valia a pena.

Na nossa última conversa, Juarez Brandão Lopes fez algumas observações sobre os capítulos entregues. Eu estava ansiosa, já achando que ele descartaria a ideia das estórias. Qual nada! Mineiro, leitor assíduo do conterrâneo, sorria, dizendo: “Mas isso é puro Guimarães Rosa!”. Sabíamos, tanto ele quanto eu, que aquela estorinha estava a léguas de distância da criação artística do grande mestre. Porém tive dele o necessário estímulo para continuar escrevendo tantas quantas pudesse dentro do prazo, que se esgotava dia a dia. Escrevi mais três, que estão hoje publicadas em Agreste, Agrestes. O Clandestino, O Mundo Todo Amarelo, Reforma Agrária do Agreste é São Paulo.

E demorei mais trinta e três anos para voltar a escrever estórias.

Florezinhas do campo

As duas amigas tinham a mesma idade, com diferença de meses. Naqueles dias passados na fazenda São Pedro, do tio de Maria Carmem, estavam com sete anos. A avó de Maria Carmem era uma doce velhinha, o rosto redondo de Dona Benta, sempre vestida de preto, saia comprida até os pés. Tinha o mesmo olhar sossegado e carinhoso para Maria Carmem e a amiga, que, sem que ninguém sugerisse, também a chamava de vovó Emília.  

            Era inverno, mas aquele dia amanhecera ensolarado. Ouvia-se o mugir do gado no curral, não muito distante da casa do tio. Aquela proximidade trazia vez por outra um cheiro de estrumo – bom – e trazia também muitas moscas – ruim. O sol a pino da hora do almoço principiava a baixar, e várias redes haviam sido armadas na face de sombra de um alpendre que arrodeava três lados da casa. Quem não cochilava nos quartos, ficava nas redes do lado sombreado do terraço, espantando as moscas que zuniam. As crianças tinham ordem de não fazer barulho. Por isso não brincavam de esconde nem de roda, mas, as duas amigas, de casinha, falando baixinho. Afastaram-se da casa, a colher florezinhas do mato para enfeitar um pequenino vaso de barro em cima de uma mesinha de madeira da casa de bonecas. Foi quando Maria Carmem sugeriu: “vamos andar mais um pouco e buscar mais flores para a vovó Emília?”

            Lá iam as duas meninas, segurando a mão uma da outra, para se apoiarem bem e não pisarem em cocô de vaca (pão de ló com chocolate), ou cocô de cabra (bolas de gude marrons). E foram se afastando, se afastando, procurando caminhos de terra no meio do capim crescido pelas chuvas, que por vezes molhava a barra de seus vestidinhos. O calor estava intenso debaixo do sol. Viram um boi pastando fora do curral. Será que esse boi é brabo? Subiram numa baraúna nova e baixinha, esperando que o boi se afastasse. Nada. Resolveram voltar para casa. Porém, já não avistaram a casa. E agora?

            “Olha lá, Maria Carmem, uma casinha de morador lá longe. Vamos nos desviar do boi por aquele outro caminho e chegamos lá”. Mas quando desceram do pé de pau, já não viram a casa de morador. Tinham vontade de chorar. Em vez, seguraram firme a mão uma da outra e seguiram quase correndo sem destino. Começavam a ter sede, uma sede enorme.

            O sol já estava fazendo uma sombra do tamanho das duas, quando chegaram à tal casa do morador. Uma mulher com lenço amarrado na cabeça veio falar com elas. “Vocês não são sobrinhas do coronel Micá?”. Maria Carmem, quase sem fôlego, pois vinham disparadas na carreira com medo do boi, apenas assentiu com a cabeça. A amiga disse que estavam perdidas e com sede. Viram o homem enfiar um caneco de flandre com um cabo comprido numa jarra grande d’água, que era de barro e coberta com um pano de prato. Na boca do caneco, de uso coletivo, beberam uma água meio barrenta, friinha e saborosa. O dono da casa foi buscar o chapéu e botava os arreios no cavalo para levá-las de volta, mas nem careceu. O tio chegou. As duas voltaram na garupa do cavalo alazão dele. As flores da avó Emília haviam caído pelo caminho, na carreira delas até alcançar aquela casa. O bondoso tio, um homem de quem pouco se ouvia a voz, parou o cavalo pouco antes de chegar em casa e amarrou-o no tronco de uma árvore. Desceu primeiro, tirou cada uma do cavalo segurando pela cintura, e esperou pacientemente que colhessem outras flores. Houve muito alvoroço de repreensão e alegria quando chegaram em casa, cada uma com um buquezinho na mão.

            A primeira aventura a gente nunca esquece.

Vamos brincar na praia?

Um dia de sol é uma bênção no inverno chuvoso do Pina. A chuva limpou o ar, as folhas dos coqueiros brilham que nem fio de peixeira nova fora da bainha. Somente o verde esmeralda do Oceano Atlântico não resplandece, por causa dos rios barrentos que recebe nesse tempo invernoso. Na sabedoria dos pescadores, não é tempo bom para o banho salgado. E não é mesmo.

Nessa manhã de sol, os barraqueiros da orla tiveram permissão, a partir deste último sábado de junho até o 4 de julho, para, em caráter experimental, voltar a negociar em fins de semana. A praia foi se colorindo de sombrinhas amarelas, brancas, encarnadas, verdes… Enquanto a maré esteve baixa, improvisaram-se algumas partidas de futebol dos meninos de Brasília Teimosa e da Favela do Bode.  

A Mulher do Sétimo Andar paramentou-se de verão e ganhou a praia. A sensação de liberdade crescia enquanto ia se despindo do confinamento. Depois de atravessar a avenida e o calçadão, tomou o caminho do mar pelo jardim dos coqueiros e castanholas, a maior parte arrodeados de pneus pintados de branco cortados ao meio, com a identificação de quem os plantou. (Ajudando a prefeitura no reflorestamento das praias do Recife). Nesse jardim, viu que o mato havia crescido com as chuvas. O pisar nesse terreno molhado trouxe reminiscências àquela mulher. Caminhou até suas duas crias, Emília e Josué. Josué, coqueiro menino, estava com uma folhagem em verde novo. Arrancou uma folha seca já caída no chão. E Emília, uma mocinha, folhas viçosas, tronco fornido, castanhas novinhas presas aos galhos.

Segurou no tronco da castanhola sua para, com a outra mão, tirar as sandálias. Tirou também a máscara e o vestido. De biquíni, pés descalços, foi caminhando nesse mato, que lhe fazia uma espécie de massagem na sola dos pés. O tato, quase tanto quanto o cheiro, nos conduz a lembranças…

Depois, já na areia da praia, era como se saísse do Agreste para o Rio Doce, no tempo em que aquela praia de Olinda era quase deserta, com uma igrejinha no meio do coqueiral. O mar estava se recolhendo, deixando para trás uma faixa de areia com textura craquenta, dando aos pés o mesmo sentir da língua e dos dentes mastigando um tareco, um sequilho, algo sequinho. Caminhou de um lado para outro esmagando com os pés descalços os torrões que acabavam de sair do forno do sol.

Depois de pisar a terra ressequida, tal como fazia em veraneios na praia de Rio Doce quando criança, foi caminhando sem pressa até o mar, no pedaço em que este se espalha pelos arrecifes cobertos de musgos e locas de peixinhos miúdos, piabas e outros seres estranhos em miniatura, como é a Maria Farinha. Lugar de menino pequeno brincar.

O mar não apetecia, com a água fria e barrenta. Ficou então em pé, defronte ao infinito oceano, só espiando e ouvindo dele o incessante murmúrio; sentindo os pés afundando na areia mole, tirando aos poucos o equilíbrio do corpo ao ir e vir das ondas. Vamos apostar quem fica mais tempo sem cair?

As praias, igual Carnaval, são lugares de brincar. Ao carnaval, se pergunta, por hábito: vai brincar esse ano? Por que não, também: vamos brincar na praia?

Viva a vida, essa menina!

A Mulher do Sétimo Andar voltou a escrever. Aconteceu na manhã de um sábado. Ela não sabia bem se tinha lido a frase nas suas correspondências de whatsapp e e-mail, ou se a ouvira no sonho com o qual se acordou naquele dia. Sonhara com uma amiga muito querida que estava sendo festejada. Ao abrir os olhos e sair do mundo onírico, onde vivemos uma vida secreta, já não se recordava qual o motivo da festa. Mas o mantra aparecia como manchete de jornal: Viva a vida, essa menina!

            Então pensou que aquele era um dia especial. Havia seis meses, andava tateando na escuridão: sucumbira ao baixo astral que assola o país. Naquela manhã, ela via uma luz no fim do túnel. Tomou um banho morno, protegeu a pele do rosto dos raios solares, sentou-se ao computador e principiou a momentear.

            Havia enfrentado com galhardia o primeiro ano de confinamento pela pandemia. Ao final de dois mil e vinte, porém, a Mulher do Sétimo Andar sentiu pela primeira vez um desespero por estar sozinha. Deu-se conta que aquele era o primeiro ano de sua vida em que estava só, nas festas de dezembro. Lembrou-se de que já passara por um sofrimento igual àquele, chamado depressão, uma vez na vida. Sabia da vontade de não sair da cama ao acordar, da falta de vontade de viver. Igualmente sabia o caminho das pedras e seguiu em frente.

            Pelo caminho foi buscando companhia. Por que não? Fazer como todos: adotar um pet a quem chamaria de filho ou filha e o criaria como tal. No fundo, no fundo, ela sempre se perguntou: será que os humanos perderam a capacidade de se amar, se agarrar, se beijar, se tocar? Será por isso que precisam buscar prazer de convívio com os animais? E isso só se aprofundou na pandemia, mas vinha de longe.

            Deixou essas questões de lado e iniciou seu périplo em busca do pet. A primeira ideia foi um gato. Gato seria perfeito: não condicionaria suas caminhadas às necessidades fisiológicas dele, é um animal mais independente do que o cachorro, adapta-se bem a um apartamento. Aí surgiu o primeiro e decisivo obstáculo: haveria que colocar tela nas janelas. Como? Atrapalhar sua vista do Oceano Atlântico? Jamais. Só um neto a obrigaria a tanto. Partiu então para o cão. Choveram sugestões e estímulos de todo tipo por parte de parentes e amigos do whatsapp. Quando já tinha escolhido uma linda cadelinha vira-lata, a quem, só olhando as fotografias, dera o nome de Mel, depois mesmo de ir conhecê-la na casa de uma simpática mocinha, dessas que dedicam a vida a cuidar e defender os animais, depois até de marcar um dia para ir buscá-la…

            Bateu a dúvida. Pois o dia seguinte amanheceu chovendo muito, aquela chuvinha intermitente do inverno recifense, de ruas alagadas, bocas de leão entupidas acumulando água na beira das calçadas. Ela se deitou na rede, o melhor lugar da casa para tomar decisões importantes. A decisão foi rápida. Não adotaria a Mel. Ainda consultou o filho mais velho, que mora em uma casa com ampla área externa. Será que ele não gostaria de adotar a cachorrinha? Não, não gostaria. Abortou então o plano de adoção de pet.

            E um sabiá numa gaiola? Sabia onde buscar. Chegou a escolher um lindo, branquinho (coisa rara em sabiá), cantador. Chegou a desalojar a paisagem de Humberto Magno para outra parede da sala, deixando aquele espaço com vista para o mar para a gaiola de Vivaldi. O sabiá também já havia sido batizado. Mas então pensou em quando o filho mais novo, que mora em São Paulo, viesse para as festas de dezembro. O quanto ele iria se contrariar. Afinal, ela mesmo preferia não ver que estava violentando a natureza, mas o filho seria implacável. Pronto. Voltou à estaca zero a Mulher do Sétimo Andar. Desistiu de vez de adotar quaisquer animais.

            Ela estava na fase do sabiá, quando descobriu de repente, depois que acordou com aquela frase na cabeça, “Viva a vida, menina”, que estava curada da depressão e já poderia voltar à sua solidão, que lhe era tão cara, com a lista infindável de autores para lhe fazer companhia. Que já poderia voltar a escrever.

Ah, como havia sido triste os seis meses sem escrever! Para aquela mulher, ficar sem escrever era como se lhe faltasse um pedaço de pulmão para respirar.

E assim, ela retornou à escrita naquela manhã mesmo de um sábado invernoso, que foi ontem. Não ao planejado segundo romance, que estava igual a carro velho, emperrado numa ladeira. Mas sim às leves crônicas domingueiras.