Diadorim é a minha neblina…

. Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também – mas Diadorim é a minha neblina…

. Por êsses longes todos eu passei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. O senhor sabe? Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de idéia e saudade de coração…

. De qualquer pano de mato, de de-entre quase cada encostar de duas fôlhas, saíam em giro as tôdas as côres de borboletas. (…) Beiras nascentes do Urucúia, ali o poví canta altinho. E tinha o xenxém, que tintipiava de manhã no revorêdo, o sací-do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo-quente, a rôla-vaqueira… e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas. Bom era ouvir o môm das vacas devendo seu leite. (…) Tardinha que enche as árvores de cigarras – então, não chove. Assovios que fecham o dia: o papa-banana, o azulêjo, a garricha-do-brejo, o suirirí, o sabiá-ponga, o grunhatá-do-coqueiro… Eu estava todo o tempo quase com Diadorim.

. Desse lusfús, ia escurecendo. Diadorim acendeu um foguinho, eu fui buscar sabugos. Maripôsas passavam muitas, por entre as nossas caras, e besouros graúdos esbarravam. Puxava uma bris-brisa. O ianso do vento revinha com cheiro de alguma chuva perto. E o chiim dos grilos ajuntava o campo, aos quadrados.

. Sei como sei. Som como os sapos sorumbavam. Diadorim, duro sério, tão bonito, no relume das brasas. Quase que a gente não abria a bôca; mas era um delém que me tirava para êle – o irremediável extenso da vida.

. E eu – mal de não me consentir em nenhum afirmar das docemente coisas que são feias – eu me esqueci de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de pensar. Mas sucedia uma duvidação, ranço de desgôsto: eu versava aquilo em redondos e quadrados. Só que o coração meu podia mais. O corpo não translada, mas muito sabe, adivinha se não entende. Perto de muita água, tudo é feliz.

. (…) a saudade me alembra. Que se hoje fosse. Diadorim me pôs o rastro dêle para sempre em tôdas essas quisquilhas da natureza.

***

. Então eu entrei, tomei um café coado por mão de mulher, tomei refrêsco, limonada de pêra-do-campo. Se chamava Nhorinhá. Recebeu meu carinho no cetim do pelo – alegria que foi, feito casamento, esponsal. Ah, a mangaba boa só se colhe já caída no chão, de baixo… Nhorinhá. Depois ela me deu de presente uma prêsa de jacaré, para traspassar no chapéu, com talento contra mordida de cobra; e me mostrou para beijar uma estampa de santa, dita meia milagrosa. Muito foi.

. Nhorinhá, gôsto bom ficado em meus olhos e minha boca.

***

. As vontades de minha pessoa estavam entregues a Diadorim. (…) “Já sei que você esteve com a môça filha dela…” (…) Diadorim pôs mão em meu braço. Do que me estremeci, de dentro, mas repeli êsses alvoroços de doçura. Me deu a mão; e eu. Mas era como tivesse uma pedra pontudo entre as duas palmas. (…) Ser dono definito de mim, era o que eu queria, queria. Mas Diadorim sabia disso, parece que não deixava: “Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era o meu pai…”

. Acalmou meu fôlego. Me cerrou aquela surprêsa. Sentei em cima de nada. E eu cri tão certo, depressa, que foi como sempre eu tivesse sabido aquilo. Menos disse. Espiei Diadorim, a dura cabeça levantada, tão bonito tão sério. (…) Abracei Diadorim, como as asas de todos os pássaros. Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava e morria, se bem.

. Ouvido meu retorcia a voz dêle. Que mesmo, no fim de tanta exaltação, meu amor inchou, de empapar tôdas as folhagens, e eu ambicionando de pegar em Diadorim, carregar Diadorim nos meus braços, beijar, as muitas demais vezes, sempre.

. Noite essa, o tanto-tanto que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo de um arco-íris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dêle – os gostares…

. Diadorim alegre, e eu não. Transato no meio da lua. Eu peguei aquela escuridão. E, de manhã, os pássaros, que bem-me-viam todo tal tempo. Gostava de Diadorim, dum jeito condenado: nem pensava mais que gostava, mas aí sabia que já gostava em sempre. Ôi, Suindara! – linda côr…

***

. Aí pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade. (…) Senti, modo meu de menino, que êle também se simpatizava a já comigo. (…) Olhei: aquêles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pestanas, luziam um efeito de calma, que até me repassasse. (…) Aquele menino, como eu ia poder deslembrar?

. “Você é valente, sempre?” – em hora eu perguntei. O menino estava molhando as mãos na água vermelha, esteve tempo pensando. Dando fim, sem me encarar, declarou assim: – “Sou diferente de todo mundo. Meu pai disse que eu careço de ser diferente, muito diferente…” E eu não tinha mêdo mais. Eu? O sério pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que eu estou dizendo; e escute desarmado. O sério é isto, da estória tôda – por isto foi que a estória eu lhe contei –: eu não sentia nada. Só uma transformação, pesável. Muita coisa importante falta nome.

***

. Soflagrante, conheci. O môço, tão variado e vistoso, era, pois sabe o senhor quem, mas quem, mesmo? Era o Menino! O Menino, senhor sim, aquêle do pôrto do de-Janeiro, daquilo que lhe contei, o que atravessou o rio comigo, numa bamba canoa, tôda a vida. E êle se chegou, eu do banco me levantei. Os olhos verdes, semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas, a bôca melhor bonita, o nariz fino, afiladinho. Arvoamento dêsses, a gente estatela e não entende; (…) O Menino me deu a mão: e o que mão a mão diz é o curto; às vezes pode ser o mais adivinhado e conteúdo; isso também. E êle como sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo. Êle se chamava o Reinaldo.

. Era o Menino do Pôrto, já expliquei. E desde que êle apareceu, môço e igual, no portal da porta, eu não podia mais, por meu próprio querer, ir me separar da companhia dêle, por lei nenhuma: podia?

. Era êle estar perto de mim, e nada me faltava. Era êle fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era êle estar por longe, e eu só nêle pensava.

. Os afetos. Doçura do olhar dêle me transformou os olhos de velhice da minha mãe. Então, eu vi as cores do mundo. (…) Só um bom tocador de viola é que podia remir a vivez de tudo aquilo. (…) Era, era que eu gostava dêle. Gostava dêle quando eu fechava os olhos. Um bem-querer que vinha do ar de meu nariz e do sonho de minhas noites.

. “Riobaldo, pois tem um particular que eu careço de contar a você, e que esconder mais não posso… Escuta: eu não me chamo Reinaldo, de verdade. (…) o meu nome, verdadeiro, é Diadorim… Guarda êste meu segrêdo. Sempre, quando sòzinhos a gente estiver, é de Diadorim que você deve de me chamar, digo e peço, Riobaldo…”

. A amizade dêle, êle me dava. E amizade dada é amor.

. Assistir com Diadorim, e ouvir uma palavrinha dêle, me abastava aninhado.

***

. Tôda môça é mansa, é branca e delicada. Otacília era a mais. (…) Ah, a flôr do amor tem muitos nomes. Nhorinhá prostituta, pimenta branca, bôca cheirosa, o bafo de menino-pequeno. Confusa é a vida da gente; como êsse rio meu Urucúia vai se levar no mar.

. Cacei melhor coragem, e pedi meu destino a Otacília. E ela, por alegria minha, disse que havia de gostar era só de mim, e que o tempo que carecesse me esperava, até que, para o trato de nosso casamento, eu pudesse vir com jús. Saí de lá aos grandes cantos, tempo-do-verde no coração. (…) Não que eu acendesse em mim ambição de têres e havêres; queria era só mesma Otacília, minha vontade de amor.

. Pensava nela. Às vezes menos, às vezes mais, consoante é da vida. (…) Mas Diadorim, por onde queria, me levava. Tenho que, quando eu pensava em Otacília, Diadorim adivinhava, sabia, sofria. (…) Não fosse um, como eu, disse a Deus que êsse ente eu abraçava e beijava.

***

. O senhor mesmo, o senhor pode imaginar de ver um corpo claro e virgem de môça, morto à mão, esfaqueado, tinto todo de seu sangue, e os lábios da bôca descorados no branquiço, os olhos dum terminado estilo, meio abertos meio fechados? E essa môça de quem o senhor gostou, que era um destino e uma surda esperança em sua vida?! Ah, Diadorim… E tantos anos já se passaram.      

(Leitura até a página 152 da quarta edição, Livraria José Olympio Editôra, Rio de Janeiro, 1965)

Aforismos de João

. Lugar do sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; (…)

. pão ou pães, é questão de opiniães…

. O sertão está em tôda a parte.

. Quem muito se evita, se convive.

. Viver é negócio muito perigoso…

. O diabo na rua, no meio do redemunho…

. Família. Deveras? É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é…

. Qualquer sombra me refresca.

. Viver é muito perigoso…

. (…) tudo quanto há, neste mundo, é porque se merece e carece.

. Dor do corpo e dor da idéia marcam forte, tão forte como o todo amor e raiva de ódio.

. Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente…

. A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio – essa é que é a regra do rei!

. Diadorim é a minha neblina…

. Sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso…

. Tôda saudade é uma espécie de velhice.

. O amor, já de si, é algum arrependimento.

. Quem é pobre, pouco se apega, (…)

. Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dêle…

. o Liso do Sussuarão concebia silêncio, e produzia uma maldade – feito pessoa!

. Jagunço não se escabrêia com perda nem derrota – quase que tudo para êle é o igual.

. Confiança – o senhor sabe – não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa.

. No sertão, até entêrro simples é festa.

. “Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sòzinho…”

. (…) me senti pior de sorte que uma pulga entre dois dedos.

. Viver é um descuido prosseguido.

. Pobre tem de ter um triste amor à honestidade. São árvores que pegam poeira.

. Cavalo que ama o dono, até respira do mesmo jeito.

. “Perdoar é sempre o justo e certo…”

. Ser chefe – por fora um pouquinho amarga; mas, por dentro, é rosinha flôres.

. Perto de muita água, tudo é feliz.

. Ciúme é mais custoso de se sopitar do que o amor. Coração da gente – o escuro, escuros.

. O real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia.

. O sertão é do tamanho do mundo.

. Cada hora, de cada dia, a gente aprende uma qualidade nova de mêdo!

. Aleluia! Aleluia! Carne no prato, farinha na cuia!…

. Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que o outro cozinhar quente demais.

. Da vida, nada me resta – só o deo-gratias; e o trôco.

. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente que outras, de recente data.

. Queria entender do mêdo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder.

. Mêdo maior que se tem, é de vir canoando num ribeirãozinho, e dar, sem espera, no corpo dum rio grande.

. “Carece de ter coragem…”

. “Quicé que corta…”

(Leitura até a página 85 da quarta edição, Livraria José Olympio Editôra, Rio de Janeiro, 1965)

Nova paixão

Durante a longa quarentena, todos nós temos convivido intimamente com nossa casa. Poder-se-ia dizer, quase: nos casamos com ela. Mas uma casa não é a mesma para cada pessoa que nela habita, semelhando pai e mãe, que na foto são os mesmos, mas, na vida, cada filho os sabe como pais diferentes. Cada um tem seu estar na casa. Você mesmo, caro leitor, qual o lugar preferido de sua casa?

A Mulher do Sétimo Andar pensa isso, ao colocar o lixo no espaço comum aos quatro apartamentos do andar, o hall das escadas. A vizinha está na cozinha, com a porta que dá para o corredor semiaberta, escorada com uma almofadinha de chão. Ao passar com o saco de lixo na mão, a Mulher do Sétimo Andar não a vê, mas ouve o som da televisão transmitindo novela. Ela, o marido e os dois filhos, fazem as refeições nesse espaço da casa, com vista para os prédios ao lado. O espaço de entrada e saída do apartamento, para eles, é a cozinha. Por isso usam mais o elevador de serviço, e não o social.

Já a Mulher do Sétimo Andar só frequenta a cozinha enquanto prepara as refeições. Prefere ter o trabalho de levar a comida pronta para a mesa da sala de jantar, da qual pode espiar o oceano, ouvindo dele, quando os motores dos automóveis dão trégua, o incessante murmurar. Melhor ainda quando, sentada à mesa, ser servida pela empregada. Mas esse regalo ela só desfruta às sextas feiras.

Na verdade, durante a longa quarentena, a Mulher do Sétimo Andar não apenas tem convivido intimamente com sua casa. Vou contar em segredo: acho que ela se apaixonou pela sua casa. Sozinha, sem ter com quem compartilhar a paixão que faz parte de sua natureza, apaixonou-se pelo apartamento. Descobriu dele cada recanto. Refez espaços. Livrou-se de guardados inúteis. Apropriou-se de lugares arrumados até então para receber visitas. Sem visitas, a esteira de palha de bananeira (comprada no Mercado de São José por quinze reais), sobre a qual faz os exercícios, saiu do quarto e foi morar no melhor lugar da casa, a varanda. Varanda, pode-se dizer, virtual, pois, desde que veio morar no Recife, em 2007, reformou o apartamento por inteiro e essa varanda incorporou-se à sala.

Depois de quase um ano de quarentena, a Mulher do Sétimo Andar aprendeu qual a rotação do sol em torno de suas janelas. Colocou-o a seu serviço, e não a Terra a girar obediente em volta dele. Observou que o sol, no seu balanço de um lado para o outro do oceano, tem o tempo certo, segundo as estações do ano, para espiar cada parede da casa.

De madrugada, logo brota do mar, alcança a última parede, na cozinha. Abre a geladeira sem cerimônia e toma um copo d’água bem gelada. Vai queimar as almofadas do sofá? Mas ficam tão bonitas, em suas cores em verdes, marrons e amarelos… dourados. Só se salvam os quadros. Estes sim, há que proteger dos raios solares, mais do que protege a pele do corpo. Pois, como pensava Goethe, a arte é maior, muito maior, do que o curto espaço de nossas existências na terra.

Em pleno fevereiro carnavalesco, o sol entra na sala dando os bons dias à mulher de Di Cavalcanti, recostada num canapé, vestida no corpo e na cabeça com tecido estampado em ocre/vermelho, e, para sempre, aprisionada na mesma lânguida e sensual posição. Enquanto se espreguiça no mar, morto de sono, vem beijar a mulata de Di Cavalcanti. E assegura à dona da casa,

– Fique tranquila, esse beijinho matinal não vai tirar dela nenhuma cor. Mas, por favor, não me prive desse beijo com uma maldita cortina.

A Mulher do Sétimo Andar conhece uma pessoa, por exemplo (aqui ela não pode declinar o nome, mas ele certamente botará a carapuça na cabeça quando ler isso), que, com essa mesma vizinhança repousante da natureza, tem seu lugar preferido no quarto/escritório, de costas para o mar, sem dele receber a brisa (que no Recife, todo mundo sabe, é a melhor do mundo), e sim o frio artificial do ar condicionado. Como diz Paulo Vanzolini, “mulher que não ri, não precisa dente”.

– Não desconversa, mulher. Qual o teu espaço preferido na casa?

– A rede da varanda, ora.

Na rede, a Mulher do Sétimo Andar lê. Dali, a partir das quatro, cinco horas da tarde, aprecia o crepúsculo, quando a rápida mudança das cores do dia nunca é a mesma. (Desculpem-me, queridos pintores, mas essas nuances de cores, só Deus.) Já a aurora, o outro quadro pintado em tons diversos de azul, branco, esmeralda… pede que ela se entregue às areias desertas, ao infinito oceano. Atravessa o muro da civilização, e chega à beira mar, onde o murmúrio das águas e dos ventos emudece os ferozes motores da avenida. Para ela, esse é um milagre de dimensões tão grandes quanto o da multiplicação dos pães.

Por vezes, antes de sair para caminhar ao alvorecer, senta-se no seu segundo espaço preferido: a mesa do escritório. Nesta, passa horas perdidas, desde a noite escura da madrugada, até se dar conta de que já não carece da luz elétrica porque o sol se anuncia clareando o mundo. Somente uma coisa lhe desagrada nesse espaço: quando o computador resolve puxar conversa mole, logo é acordado para trabalhar.

– Tem atualizações prontas. Quer instalar agora? Daqui a uma hora? Lembro depois?

Não apresenta a única opção que ela gostaria:

– Não, por favor, não quero nenhuma atualização, não uso nem dez por cento dos recursos que você me oferece. Por favor, não me ofereça nada, absolutamente nada. Apenas deixe-me chegar ao texto que ficou na tela desde ontem.

Foi então que a Mulher do Sétimo Andar ouviu um zum zum dos outros espaços da casa, que se encheram de ciúmes. O quarto amuou-se.

– É. Mas quando você está cansada de um dia todo andando nessa casa de um lado para o outro, preparando comida, na faina incansável de tantos livros na fila esperando, tantas ideias a saírem para o caderno ou diretamente para a tela do computador, quem é que te acolhe de braços abertos? É aqui na cama onde você sonha: sai do mundo das obrigações, e deixa que o anjo da noite venha te fazer companhia. Ah, nessa cama…

Ela sorri, concedendo-lhe o terceiro lugar. A cozinha, por sua vez, protestou.

– Escuta, mulher, você gastou um dinheirão para me deixar novinha em folha, com esses lindos armários, não mais um fogão e sim um cooktop, um forno elevado para não precisares te abaixar. Todinha adaptada para você me usar confortavelmente, e, além disso, me deixou como um palco iluminado, tal e qual a canção imortalizada na voz de Elizeth Cardoso. Agora nem se lembra de mim?

– Tá certo – responde-lhe a dona – fique com o quarto lugar.

O quarto de empregada, tão humildemente servil, nada reclamou. Sentia-se bastante honrado com visitinhas ocasionais da dona da casa, para consultar livros e papéis fora de uso. Porém os livros, ocupando a estante de toda uma parede, estes sim, registraram queixa. Sentiam-se diminuídos, por compartilharem o mesmo espaço com um armário de material de limpeza, rodos, vassouras, e grandes caixas com o almoxarifado da casa.

Apenas o quarto de visitas nada disse. (Falta nele, talvez, como nos hotéis, um formulário especial a ser preenchido pelos hóspedes.) Pois, até do lavabo a Mulher do Sétimo andar se apropriou na quarentena, sendo lá, o único banheiro da casa com vista para o mar, o melhor lugar onde lavar as mãos ao chegar da rua.

Dona Obrigação

Digam-me, senhores, por que um sentimento de obrigação persegue os aposentados? Era isso o que a Mulher do Sétimo Andar se perguntava, espiando o mar do Pina das três horas da tarde. A vontade era continuar lendo o romance, emocionante à página em que parou para almoçar. Mas não. Senta-se em frente ao computador. Sem ter mais o que inventar, inventou meia dúzia de leitores. Só para ter uma obrigação na vida: todo domingo, mandar uma coisinha para esses leitores se distraírem.

Quando posta o que escreveu na semana, sente aquela satisfação do dever cumprido! O domingo voltou a ser um dia especial. Quando ia à missa, nas calendas do século passado, quando cumpria rituais, o sagrado tomava conta do domingo. E era bom acreditar que para isso foi criado o Sétimo Dia. Vestia-se de roupa domingueira. Ia-se à matinê no cinema. Outros se visitavam, num tempo em que não havia televisão. A televisão enterrou o domingo.

Pois então. Até que foi boa ideia de publicar sempre uma coisinha nova, assim como o vestido novo para ir à missa. Domingo passou a ser, para a Mulher do Sétimo Andar, o dia do trabalho propriamente braçal – a sala de imprensa. Depois da trigésima revisão, o texto já na tela do blog – mas ainda não apertou a tecla publique-se –, ela ainda lê alto uma derradeira vez. Até que as letras olham para ela, já meio zangadas, chega, deixa a gente ir embora.

Só então a Mulher do Sétimo Andar relaxa. Vai tomar um bom café da manhã. Satisfeita, sai à cata dos destinatários no e-mail (estes vão agrupados em embarcações maiores) e no whatsapp, pequenos botes, de cinco em cinco. Gosta mais dos pequenos botes, porque neles pode ver a foto de perfil de cada um; e tem a sensação de que, para cada um deles, somente, se destina aquela missiva.

Dependendo da hora, se o domingo está nublado, pouca gente na praia, por que não? Veste o biquíni, uma saída de banho, chapéu, mochila com dinheiro para a barraca e o romance da vez. É aposentada, pode ir tomar banho de mar qualquer dia da semana. Contudo, os dias úteis não têm o sabor do banho de mar aos domingos. Às vezes, o romance vai só passear, e ela se distrai espiando o passeio dos outros, escutando o monótono murmurar do oceano.

Não podia continuar espichando o sétimo dia para os outros todos da semana? Não carece mais de bater ponto… “Está liberada, minha senhora, faça bom proveito do seu tempo”. Mas não. A segunda feira ainda se concede. Afinal, trabalhou muito no domingo, na sala de imprensa. Porém, já na terça feira, mesmo sem ser chamada, bate à sua porta uma senhora que a conhece muito bem, são praticamente vizinhas.

A Mulher do Sétimo Andar, pressentindo que a qualquer hora poderia chegar a indesejada visita, tenta armar estratégias para se livrar dela. Por toda a manhã, fez que não estava em casa, deixou-a esperando na porta. E ficou quietinha na rede sem largar o romance. Mas chegou uma hora em que não dava mais para se fazer de surda. Abriu a porta, e entrou a velha senhora.

Entrou sem cerimônia, como um filho na casa materna. Abancou-se na melhor poltrona e nada disse. Nem precisava. A Mulher do Sétimo Andar já sabia de cor e salteado a cantilena da cobrança: Você fez hoje sua caminhada e não teve ainda nenhuma ideia do que vai ser o conto, ou crônica, ou até uma carta serve. Mas não se esqueça que hoje é terça feira. E as vezes a primeira ideia não se aproveita, há que esperar a da caminhada do dia seguinte. E vai que está chovendo?

A Mulher do Sétimo Andar sabia que a vizinha não iria arredar o pé da sala se ela não lhe desse alguma satisfação. Por isso, sentou-se à mesa de trabalho às três horas da tarde. E só se levantou quando terminou essa crônica ligeira, desculpem aí, meus leitores, a culpa é dessa velha senhora, a dona Obrigação.

Parque da Jaqueira

Tânia espia o céu em lilases. Está no escritório, sentada à mesa de trabalho do marido. Às três e meia da madrugada, pusera um xale amarelo por sobre a camisola de cambraia branca, hora em que principiou uma chuva intermitente e um friozinho desconhecido no verão do Recife. A chuva lhe trouxera um cheiro de amores perfeitos, de delicadas florzinhas roxas escondidos entre as folhagens de sua infância. Já passa das cinco horas e o sol não dá mostras de que vai aparecer tão cedo. Ela não pregara os olhos por toda a noite, os ouvidos atentos a qualquer barulho do velho elevador.

Tânia e Romualdo moram em confortável apartamento com vista para o Parque da Jaqueira. O melhor ambiente da casa é o escritório, defronte ao parque. Nesse momento, ela sobrevoa com um olhar distante a copa de árvores que conhece bem, uma a uma, de suas caminhadas. A cor de laranja das flores do Flamboyant está esmaecida pela sombria madrugada.

Àquela hora, as luzes da noite ainda perduram acesas no parque. Falta chegar o sol para manda-las descansar. Pela quinta vez, Tânia se levanta e vai até a cozinha pegar mais um copo d’água do filtro e uma xícara de café da garrafa térmica. Pensa em coar um novo, mas não, correria o risco de não ouvir o barulho arrastado do elevador, que está parado no quinto andar, onde ela mora. Durante a noite insone, sentira o sobressalto desse barulho por algumas vezes, não muitas. O predinho antigo tem apenas cinco andares. Por fora, uma caixa de sapatos, excrescência no meio dos luxuosos edifícios de apartamentos que povoam a rua, onde a privilegiada vista. De que adiantou Romualdo ter gastado uma fortuna na reforma do apartamento, dentro desse prédio velho? Ouvira o último ruído do elevador à meia noite. 

Com as costas encurvadas, os olhos caídos, acabara de ler o último dos cinco gordos cadernos escritos com a letra de Romualdo, quando ouviu o primeiro roncar do dia dos motores cansados do elevador. Correu a arrumar toda a papelada de volta na gaveta, que naquele dia, único, ficara esquecida sem a tranca da chave. Voltou a sentar na poltrona. O abajur compunha, junto com aquela, uma cena de filme francês. Por que será que os diretores franceses gostam tanto de cenários com poltrona confortável, iluminada por abajur de pé, onde alguém lê atentamente em noite outonal? Tânia nada lia. Olhava as letras de um livro aberto ao colo.

Ainda não é o marido voltando da noite. Apenas o zelador do prédio colocando o jornal por debaixo da porta do hall de entrada.

Da poltrona, Tânia já não volta para a gaveta, que deixou arrumada do mesmo modo como a encontrara: os cadernos empilhados dentro de uma meticulosa ordem, do mais antigo para o atual, este escrito pela metade. Até então, a chave se justificou por conter documentos de pacientes – segredos tão indevassáveis como as confissões a um padre.

Pousou os contos de Machado de Assis na mesinha redonda ao lado da poltrona e do abajur. O marcador do livro não se movera da mesma página, desde quando o tomara às mãos pela primeira vez. Desde então, o mesmo gesto, a cada ruído assustador do velho elevador, até se certificar que não era ainda o marido, e voltar à leitura compulsiva dos cadernos.

Tânia é uma mulher ainda bonita aos cinquenta e dois anos. Já não tem o viço da pele e dos cabelos louros de quando se casou com Romualdo, o mais cobiçado da turma, há trinta anos. Mas pela firmeza do seu andar caminhando no parque, dir-se-ia uma mulher de trinta. Quando sai do escritório, cruza a saleta de televisão, a sala de jantar, e, exausta, chega ao quarto, com passos lentos e arrastados, semelhava uma velha de setenta.

Vai direto para o banheiro. Abre a torneira de água quente da banheira, tira do armário alguns sais cheirosos. Por que não tomar, antes do banho, um café novo com pão e manteiga? Não. A boca tem gosto de fel e o estômago está embrulhado em fogo. Muito café velho uma noite inteira, queria o que? Antes de escovar os dentes, olha-se no espelho. Vê um rosto com olheiras, um vinco no meio da testa realçando um desgosto. Enquanto escova os dentes, a ira crava fundo a sua alma. Porém a expressão no rosto é agora encoberta pelo vapor no espelho. Corre para fechar a torneira de água quente e abrir a de água fria, até atingir a temperatura morninha desejada.

Está imersa em espumas, olhando para o teto branco. Os pensamentos insistem em continuar nos diários do marido. Desconfiava de uma. Eram duas. Com ela, três. Vira a foto de uma delas. Moça nova. Morena. Comparava-se. Na idade dela, eu era mais bonita. A facada que doeu mais fundo, contudo, foi não saber-se a matriz. Somos todas filiais. Esse homem nunca soube o que é amar. Ficou preso à saia da mãe, defendendo-a da tirania do pai. A matriz, na verdade, não passa de uma quimera, uma fantasia de menino, a renovar-se em cada aventura.

Faz um esforço para apagar aquelas páginas de sua mente, como quem apaga uma lição que copiou errada, e só resta a última folha do caderno para escrever a lição certa. Os pensamentos agora voam para o parque da Jaqueira, conduzidos por ela como quem conduz um cão teimoso que insiste em cavar o chão. Apagar tudo o que leu em uma noite de pesadelo. Foi só um pesadelo. Daqui a pouco o sol aparece e vai iluminar a cor laranja das flores do Flamboyant.

No chão do banheiro, escorre, na direção do ralo, um fio de água que escapara da banheira muito cheia. Nessa hora, Tânia ouve o marido abrindo a porta do hall de entrada do apartamento. Escuta seus passos.

– Olá, querida. Já desperta a essa hora? Caiu da cama?

Tânia sequer olha na direção dele. Acena com o braço levantado, e continua entregue a seus pensamentos, que voltam a ser tão cinzalilás como estava, ainda há pouco, a aurora do Parque da Janqueira. Romualdo abre a ducha do chuveiro, no box junto à banheira, e o vapor embaça novamente o vidro. Dali ele sai para o quarto enrolado com a toalha na cintura. Quando Tânia deixa finalmente a banheira vestida no roupão branco e felpudo, o marido já roncava, quase tão alto quanto o velho elevador. Vai até o escritório, e as flores cor de laranja do Flamboyant, com restos de água das chuvas, brilham à luz do sol.

A mulher do professor

Desenho de José Hamilton. Lápis de cor, 22 X 31 cm, 1993

A mulher do professor – 24 de janeiro de 2021

A noite daquele dezembro de 1959 foi de céu estrelado. Na rua por onde caminhavam Celso e Raimundo, quase todas as lâmpadas dos postes de luz elétrica se achavam queimadas. Iam a caminho de um endereço há muito cobiçado por Celso. Raimundo estava hospedado por uma semana na casa de veraneio dos pais do amigo. Os dois, de férias do colégio agrícola.

Já haviam se afastado das ruas de paralelepípedos da cidade.  Seguiam por calçadas inexistentes. Celso, tenso, calava-se. Raimundo, conhecendo bem o amigo, respeitava o silêncio dele. Ouviam-se os grilos da noite. As árvores dormiam. De repente, de uma das casinhas pobres do caminho, escutaram o som de um rádio dolente tocando “Sertaneja”, na voz de Orlando Dias.

Depois de um quarto de hora andando um ao lado do outro, vislumbraram ao longe a cobiçada casa de muro verde. Não demoraram mais que cinco minutos para chegar lá. Raimundo, à frente de Celso, abriu um portão de ferro rangente, e entraram por um cimentado estreito, ladeado por Palmas de São Jorge. No jardim esturricado, sobrevivera um resto de galhos com uma Dália púrpura. Ao subir o degrau do terraço, Celso tropeçou e quase caiu. Raimundo segurou-lhe o braço e os dois sorriram.

– Coragem, companheiro! – disse Raimundo – A primeira vez é a mais difícil. Porém inesquecível. Veja a vantagem que você leva: alto, cabelos castanhos lisos, bem penteados, esses olhos verdes de tristeza, esse ar tímido, que as mulheres adoram, porque provoca nelas o instinto maternal… Já eu, um baixinho mestiço, com esses cabelos desgrenhados e essa cara de pobre. O bonezinho de marinheiro é minha salvação.

Celso mirou o amigo com um riso agradecido. Raimundo deu uma pancadinha carinhosa no ombro dele e teve vontade de rir das roupas que usava. Talvez para compensar a insegurança do desconhecido tão desejado e esperado, vestia calça marrom escuro, camisa marrom claro puxando para o vermelho e um paletó amarelo. Para completar a aquarela, sapatos cor de laranja.

Do terracinho que antecedia a porta de entrada da casa, dava para ouvir um burburinho de vozes, abafadas pelo som alto de “Perfume de Gardênia”, cantada pelo próprio Bienvenido Granda. Não havia campainha nem no muro nem ali no terraço. Raimundo abriu a porta e entraram. A radiola de ficha piscou em cores vivas para Celso. Vários casais dançavam. Veio recebe-los uma mocinha usando um vestido “Tomara que Caia” lilás, sapatos de salto alto brancos, usando um batom encarnado que enfeitiçava um sorriso maroto de quase adolescente. Levou-os à única mesa que não estava ocupada com copos e garrafas. E sentou-se à mesma mesa.

As cervejas foram compartilhadas entre os três. Celso se conservava calado. A conversa rolou somente entre Raimundo e a moça, um sentado em frente ao outro. Raimundo contava das férias na casa do amigo, dos banhos de mar, trivialidades.

Sentado numa cadeira encostada na última parede, alheio à prosa de Raimundo, Celso observa tudo. Viu no salão uma moça caminhando sem pressa na direção do bar. Cabelos negros, curtinhos, contornando graciosamente um rosto redondo de olhos repuxados na horizontal. Lábios carnudos, sem pintura alguma. Um buço por sobre o lábio superior lhe dava um ar de mistério. Usava um vestido vermelho pelo meio das coxas, justinho ao corpo, com um generoso decote que deixava entrever seios fartos de mamilos escuros e salientes. A alça direita do vestido está caída por sobre o braço distraído. Como único adereço, um colarzinho colado ao pescoço. Uma loura acompanhava com olhar invejoso o caminhar macio dessa morena.

Celso olha fixamente para deusa de vermelho. Sem dar fé, de olhos baixos, ela segue com seu rebolativo caminhar ao balcão das bebidas. Lá está, entre outros, um senhor gordo, bem vestido, sorridente, que a espera com um copo de whisky na mão.

Nessa noite, Celso não dançou nem se levantou da cadeira. Afundava-se nela, sentindo-se invisível, só olhos e ouvidos. A morena de vestido vermelho ficaria por muitos meses nas fantasias solitárias dele.

Voltaram para casa depois que Raimundo, com um sorriso estampado na cara, saiu de um corredor por trás de uma cortina cor de vinho, por onde Celso não teve coragem de entrar. A volta dos dois para casa foi novamente silenciosa. E até Orlando Dias já dormia, no rádio do casebre.

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No colégio, um novo professor de matemática fora contratado para substituir o mais antigo, que se aposentara. A certa altura da aula, depois de escrever uma equação na lousa, percebeu que um aluno já pousara o lápis no caderno. Aquele olhar tranquilo do estudante perturbou um pouco o professor.

– Não vai resolver o problema? – olhou discretamente a lista de chamada – como é mesmo o seu nome? Celso? Sim, Celso. – E repetiu a pergunta – Não vai resolver a equação?

Celso enrubesceu, e, humildemente, mostrou a equação resolvida em seu caderno. Isso confundiu ainda mais o professor, seguro de seu domínio na matéria. Mas saiu-se bem.

– Você é mais rápido no gatilho do que eu. Então, venha a esse outro lado da lousa, e mostre para os colegas o caminho que você seguiu, diferente do meu, para chegar ao mesmo resultado. Aqui, vale o ditado popular, um pouco modificado para a circunstância: contando que chegue à venda, qualquer caminho vale.

Não era a primeira vez que Celso surpreendia aos professores e colegas. Sua inteligência acima da média desculpava o bom dia que esquecia de responder, as esquisitices. Era estimado.

Voltava para o seu lugar na segunda fileira de cadeiras, quando viu, na soleira da porta, ao fundo da sala, uma morena, que imediatamente lhe lembrou aquela da casa do muro verde. A roupa era recatada. Porém o corte do cabelo, os olhos puxados, os lábios grossos encimados por um buço visível… Diferente da moça daquela casa, esta olhou na direção de Celso e esboçou para ele um leve sorriso. Celso ouviu o professor pedir licença à turma, ir até a porta e trocar com ela duas palavrinhas em voz baixa. Depois ficaria sabendo: era a mulher do professor.

O adultério é insidioso. Como ela conseguia, naquele ambiente fechado, no qual as casas dos professores ficavam dentro do campus, trair o marido? Como todas, ora. Todos sabiam, menos o marido. Celso acreditou que foi o primeiro e seria o único. Por três longos meses, a mulher do professor ensinou-lhe, com carinhos de mãe, prazeres inimagináveis. Celso construiu castelos de adolescente. Num corcel negro, fugiriam para bem longe e viveriam numa cabana um grande amor. Pelo resto da vida.

Até que a bola da vez mudou para um colega de turma de cabelos cor de fogo, com quem a mulher do professor compartiu a mesma cama em diferentes momentos, até trocar de vez Celso pela nova aventura. Celso descobriu-se traído. É. Raimundo tinha razão. A primeira vez é a mais difícil, porém inesquecível. Só que ele se esqueceu de acrescentar que a primeira traição é também a mais difícil e inesquecível, porém com os sinais trocados. Em vez do prazer, a dor.
 

Conto

Cumplicidade – 17 de janeiro de 2021

O apelido carinhoso não melhorava a comparação de Severina com as irmãs, saídas à mãe, de pele clara e cabelo bom. Ela puxara ao pai, era a pretinha. Em menina, a mãe, dona Cícera, dedicou-lhe atenções especiais. “Entra pra dentro, Dida, pra não perder essa corzinha firme”.

A irmã mais velha se casou em três dias de festa. Muito forró, fogueira, buxada, bebidas à farta. O fazendeiro carecia mostrar riqueza. Dois meses depois, veio a indesejada de repente e ele morreu, deixando dívidas. Venderam tudo. Com a ajuda do genro, vieram morar num beco no Curado, um bairro que não parava de crescer. A irmã do meio já não se casou.  Amigou-se com um homem pai de família e foi morar longe. No Curado, ficaram somente as duas.

Do Riacho das Almas para o Recife, Ciça trouxe apenas o santuário, que colocou numa mesa à entrada da porta da pequena sala. Nesse santuário, havia uma imagem de Padre Cícero, um quadro com o Sagrado Coração de Jesus, e uma imagem de Oxum segurando o espelho numa mão e o leque na outra. Ali também uns retratos esmaecidos do pai e da mãe dela. Nunca foi dormir sem antes fazer as orações e deixar acesa uma vela de sete dias. Sim, trouxe também a penteadeira de seu quarto, com o banquinho onde costumava se sentar para Dida fazer sua bela trança.

Nas primeiras noites, com medo dos barulhos da rua, pois seu sono sempre fora embalado por cantorias de sapos, rãs e grilos, Ciça acordou no meio da madrugada. Saiu do quarto pé ante pé para não acordar Dida, e se sentou na cadeira em frente ao altar para rezar o terço. Se acalmava. Na segunda noite, ao chegar na sala, lá estava Dida, com o mesmo medo. Foi nesse dia, talvez, que as duas, sem palavras, selaram a cumplicidade de uma vida.

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Ciça se olhou no espelho. Olhos castanhos de mel, cabelos negros, cacheados, abaixo dos ombros. Apareciam os primeiros fios prateados. Os cabelos eram seu encanto. Se viu solteira, moça bonita, uma trança pendendo da cabeça por sobre o ombro direito. Dida acabara de fazer a trança da mãe. Ciça olhou para a filha pelo espelho e teve pena dela.

– Vai buscar a faixa para eu fazer um turbante de Oxum na tua cabeça, Dida. Assim a gente pelo menos esconde esses cabelos.

Depois de prontas, olhando-se e rindo em frente ao espelho comprido da penteadeira, Dida não sabia ainda para que estavam assim vestidas, como fossem a uma festa às dez horas da manhã.

Tomaram o ônibus para o Centro da Cidade. Caminharam debaixo do sol quente, e a mãe já não cuidava mais em proteger a pele da filha. Fosse preta. Pensava na sogra, uma mulher que, já velha e doente, viveu na casa do filho, com a nora e as netas, até morrer. Fazia rendas de bilro numa almofada. Só a mim, contava de sua vida amorosa, cada filho de um pai. E não era negra? Filha de Oxum, sim senhora. Dida é feia. Quem sabe tem o corpo fogoso da avó?

Ao descerem do ônibus, andaram na direção do rio. Atravessaram a ponte Maurício de Nassau, seguiram pela calçada do Cais de Apolo para o lado esquerdo, e foram dar na ponte Buarque de Macedo. Retornaram por essa ponte.

– Eita riozão de meu Deus! Exclamou a mãe. Não sabia que ali, naquele caminhar do rio de largas margens, às águas do Capibaribe já se haviam juntado, em núpcias, às vésperas dele se entregar ao mar, as do rio Beberibe, recém-chegado de Olinda. O ponto de encontro dos dois era atrás do Palácio do Campo das Princesas.

Mãe e filha caminhavam à toa. A fome da hora do almoço apertando. Mesmo assim, fizeram uma parada na balaustrada da ponte para apreciar o rio apressado.

– E aquele Ipojuca em tempo de Seca, heim mãe? Se alembra? Eita riozão de meu Deus, esse aqui!

Depois de atravessarem a ponte Buarque de Macedo, andaram pela calçada da Praça da República. Ainda com ar de espanto e admiração, Dida mostrou, olhando no meio da praça,

– Espia o tamanho daquele pé de pau, mãe!

Na rua do Imperador, continuavam especulando a rua, o povo andando apressado, com a cara de quem estava caçando lugar para o de comer. Passaram por um ajuntado de maltrapilhos parados defronte de uma igreja, e viram que, de dentro dessa igreja, saiam pessoas mais ou menos: vestidas com bermudas, bonés na cabeça, e falando uns com os outros do altar de ouro. Quiseram entrar também para apreciar aquela capela com o altar de ouro, mas logo veio um homem lá de dentro e fechou a porta.

– Olhe, Dida, aprenda: é melhor pedir esmola do que viver de aposentadoria. A pessoa que recebe do governo é muito cobiçada. Pode arranjar até casamento, só por interesse e para dar trabalho e aborrecimento. A pessoa aposentada nunca mais terá sossego nessa vida. Sempre vai aparecer gente mais precisada. Não vê lá no beco aonde a gente mora? É muita precisão no mundo.

Entraram num restaurante Serf-Service. Sentaram-se na única mesa vazia e viram as travessas cheias de comida. Ciça atentou para o moço sozinho da mesa ao lado, espiando com um rabo de olho o turbante de Dida.

– O moço paga uma sopa pra nós?

Ele não estava vestido mais ou menos, igual aos que saíam da Capela Dourada, mas com camisa abotoada na frente, calça comprida por cima da camisa, cinto e chaveiro. O mulato mostrou a carreira dos dentes brancos quando sorriu para Ciça, e mandou elas se servirem à vontade. Dida espiou para ele desconfiada.

– Mas quando o senhor diz à vontade, pode comer de tudo o que está nessas bandejas?

O homem apenas meneou a cabeça em aprovação, ainda mostrando os dentes brancos. Depois, as duas satisfeitas, chamou-as para um passeio de carro. Caminharam um bom pedaço pela rua do Imperador, passaram pela praça Dezessete (onde havia outra Igreja, que em dezembro de 1968 havia sido palco de muita pancadaria de policiais, no lombo dos estudantes que ali rezavam uma missa pela alma de Edson Luís de Lima Souto), ele andando na frente e as duas, Dida de braço dado com a mãe, seguindo-o rua a fora, vez em quando olhando uma para a outra e se rindo baixinho. As duas obedeciam ao homem, como atrizes estreantes ao diretor de uma peça de teatro, da qual não sabiam o enredo. Riam. Porém baixinho, uma olhando a outra, sentindo o pulsar da vida e um cheiro de manga espada do tabuleiro de um vendedor ambulante.

Quando chegaram ao Cais de Santa Rita, onde estava estacionado o carro velho, ele abriu a porta da frente para a mãe e a de trás para a filha. Andaram de carro até se afastar das ruas. Um vento quente entrava pelas janelas abertas e jogava a trança de Ciça para trás. Parou o carro em frente a um lixão do tamanho de um monte, um que havia perto do sítio onde elas moravam em Riacho das Almas. Nunca haviam visto tanto lixo amontoado. O moço abriu a porta para a mãe descer e disse à filha, “Você espere aí dentro”. Foi andando na frente, Ciça atrás. No lixão, catou uma folha de papelão grande. Seguiu em frente e forrou um recanto mais afastado dos olhos da moça e de quem passasse na pista.

Ao voltar ao carro, disse a Dida, “Você não carece vir comigo. Já fiquei satisfeito com a sua mãe de boas risadas”.

As duas começavam a ser reconhecidas nos restaurantes baratos do centro da cidade. De outra feita, foram com um homem mais novo do que o mulato do lixão. Era mais branco de cor, cabelo pixaim cortado à escovinha, cheirando a perfume de feira. Pagou uma canja de galinha para cada uma. E depois do almoço levou-as de ônibus para a casa dele, nos confins do bairro de Linha do Tiro. A cada ponto de ônibus, o cobrador gritava para os que esperavam, batendo forte na lataria de fora, “Alto de Santa Terezinha, Bacurau, Alto do Rosário, Dois Unidos, Linha do Tiro”. E aos que entravam, “Passando para o meio do carro”.

Viajaram o percurso todo em pé, o moço encostado atrás de Dida. Desceram quase defronte ao casebre onde ele morava. Abriu a porta, entraram, mandou a mãe ficar esperando sentada na sala e levou a filha para o quarto. A mãe esperando, esperando.

Dida saiu de lá arrumando os cabelos desgrenhados, com cara de espanto, e ouviu o moço falar, “Agora é a tua vez, velha”. Ela cochichou no ouvido da mãe, rápido como quem rouba, “Vai não, mãe. Ele maltrata. Dói”. Escapuliram pela porta correndo em disparada, o rapaz nuzinho em pelo, ainda atônito. Pegaram um ônibus que acabara de parar no ponto, sentaram-se no mesmo banco, e se deliciaram com a brisa que entrava pela janela aberta. O sorriso de Ciça acalmava Dida. Ciça era risonha por natureza. No caminho, viram uma igreja de crente e ali esbarraram. Distribuíam roupas usadas. Pegaram um saco cheio e voltaram para casa.

Diário do Pina

A Lapinha de tia Lilía – 6 de janeiro de 2021,

Dia de Reis.

Dia do presépio sair de cena.

Na lapinha de tia Lilía

Um caco de espelho servia de lago, rodeado de areia.

Os bichos se multiplicavam a cada ano.

O bafo quente da vaquinha no pescoço do Menino Deus.

Quando tia Lilía morreu,

A lapinha já ocupava todo o tampo da mesa

Na sala de visitas.

Estrela d’Alva – 6 de janeiro de 2021

4 horas. A Estrela da Manhã sozinha no céu. Ela na mesa, com a janela escancarada à noite. O mar ainda é só murmúrio. Brilhas solitária, anunciando o dia, porém já sabes que teu palco acaba quando ele, o dia, despontar, empurrado pelo astro rei. Quando este adentrar o palco, já terás sumido às trevas da noite, que é a tua verdadeira morada.

            Ela queria ter o poder de escrever contemplando teu brilho, sem carecer de luz elétrica nem de desviar os olhos para a mão e o caderno. Escrever pelo tato e não perder um só minuto de tua metamorfose.

            4:35. A Estrela da Manhã continua impávida colosso, enquanto o sol, seu inimigo voraz, já abriu um buraco nas nuvens negras. Tímido, em formato de uma árvore, fosse desenhada por um menino de três anos. O alaranjado ainda não aparece, se prenuncia indeciso. 4:40, o mesmo cor de laranja esmaecido rasga uma nesga horizontal mais abaixo, agora sim, deixando entrever a barra do dia entre o céu e o oceano. Até então, do mar, só o murmúrio. 4:41 e tu, Estrela D’Alva, principias a tua saída, escondida atrás das cortinas de uma nuvem escura. A nuvem passa, mas te deixa menos brilhante.

            4:45, a mulher continua escrevendo, agora, com a luz elétrica apagada. Sai a primeira jangada. A brisa está mais forte, talvez chova em alguma hora da manhã. 4:50. Cada vez que ela baixa a vista para escrever, teme já tenhas ido embora. Pois agora, vejo-te sumindo devagar, voltando à noite. Até há pouco, enganavas aos expectadores, que pensavam ser o clarão que principiava a refulgir do mar, reflexos de tua luz. Mas logo foste desmascarada pelo intruso sol, que se mostrou em formato de árvore tosca. E tiveste que ceder terreno. Não é fácil a uma estrela, ainda mais tu, fulgurante, ciosa de tua beleza, ceder lugar ao sol. Mas a Estrela Dalva sabia bem do seu destino: todos os dias, incansavelmente, caminhar em longa viagem da janela da Mulher do Sétimo Andar para o Japão.

4:53. No que aquela mulher tirou de ti o olhar para ver as horas, saístes à francesa. Todos os dias é a mesma coisa. Aproveitas qualquer distração dela para sumires sem dizer adeus. 4:55. Pelo visto, o sol vai chegar atrasado. Sai a segunda jangada. E o que a Mulher do Sétimo Andar queria mesmo era ter ido naquela jangada para o Alto Mar, onde só o céu, o oceano, e o murmúrio das ondas.

5:15. O astro rei se digna a aparecer. Quinze minutos de atraso. Mais um minuto, você perderia o ponto e eu não estaria mais aqui te esperando.

Velha – 07 de janeiro de 2021

Ser velho é achar melhor escrever no caderno do que no computador. É ver uma criancinha de seis anos, com um aparelho de celular na mão, saber mais do que nós. É passar mais tempo cuidando do corpo – o estômago, a pele, o coração, o intestino, a boca…

            Isso tudo pensava a Mulher do Sétimo Andar, enquanto cumpria uma rotina sentada em frente ao espelho da bancada do banheiro. Preparava-se para sair a caminhar no calçadão ou na areia da praia, a depender dos caprichos da maré. Acordara ainda escuro, fora ao banheiro, abrira as cortinas da janela do quarto. Viu a Estrela da Manhã anunciando a Aurora. Só então olhou o relógio: 4:35. Hora de principiar os preparativos para a caminhada, com o mesmo espírito de um soldado que despertasse em campo de batalha.

            Na bancada de mármore do banheiro está o filtro. Bebe o primeiro caneco d’água, dos muitos desde o amanhecer. O sabor da água fresca de Nosso Senhor, que sempre ela imagina sendo tomada nas mãos em concha, de uma bica de água mineral.  

Na bancada estão também os preparativos para a diária batalha. Primeiro, escovar os dentes, para tirar o mingau dos anjos da noite que vieram alimentar seus sonhos. Depois, um spray de cuspe artificial, docinho, bom, pois velhos produzem menos saliva e isso não é bom para a saúde dos dentes nem da gengiva.

            Como boa aluna, segue à risca as recomendações de cada especialista que cuida de seu corpo. Alguns, como a dentista, são verdadeiros tiranos. A fazer tudo o que recomenda, meu Deus, quanto tempo e quanto dinheiro! Mas ela faz tudo, não consegue desobedecer. Também porque sabe que a vida, a partir de uma certa idade, é como andar de bicicleta: se parar, cai.

            E os olhos? Como pedem cuidados ao amanhecer! O rosto já está lavado, mas carece limpar de novo os olhinhos com um shampoozinho especial, como fossem dois bebês gêmeos. E o colírio. E o protetor solar no rosto.

            Começa enfim a vestir o uniforme dos caminhantes. Vamos à luta, companheiros: tênis, chapéu, óculos, máscara para atravessar a linha de fronteira do elevador e da portaria do prédio.

            Entre caminhada, exercícios, alongamentos, terá vivido cerca de uma hora e meia de seu dia. Chegando de volta, mais um caneco d’água. Dessa vez, a cada gole, um gargarejo cantado. Receita da fonoaudióloga. Percebe que escolhe melodias antigas, como a refazer o tempo do rádio. Melhoral, melhoral, é melhor e não faz mal. Como sempre foram criativos os publicitários! Uma melodia fácil de decorar, com uma escalação musical perfeita para exercitar as cordas vocais. O cravo, brigou com a rosa… Atirei o pai no ga to, to… Depois o banho, os cremes para não deixar a pele ressecada, água de alfazema para ficar cheirosa, lá se vai mais meia hora, quarenta minutos. E o café da manhã? Ah, senhores, essa é A refeição do dia. Hora de ouvir a Sexta Sinfonia de Beethoven, enquanto vigia o chá no fogo, descasca as frutas, prepara o suco, torra o pão, frita o ovo, corta uma boa talhada de requeijão mineiro para acompanhar o mamão, banana amassada com um pouquinho de leite, mel de abelha, umas bolachas duras esfareladas e bem misturadas com a banana, o leite e o mel, quase uma torta, em cima da qual, aveia em flocos. (Os meninos, quando pequenos, botavam olho comprido nesse prato de banana amassada, que, para ela, era um vestígio das férias na casa dos avós. Ela ria, tomava do garfo, traçava uma linha dividindo a porção por três: é um Tratado de Tordesilhas, cada cá coma a sua parte… Hoje tem Tordesilhas, mãe?). E queijo de coalho frito para acompanhar rodelas de inhame fumegando, derretendo a manteiga por cima. Ou um cuscuz, em cima do qual a manteiga se derrete mais ainda, ensopado com leite quente de uma leiteira de louça branca. Ou, quem sabe, uma Cartola? Às vezes, pãezinhos de queijo cortados ao meio, torrados na chapa, com geleia francesa de laranja e gengibre por cima, para acompanhar o suco, onde a beterraba não deixa nenhuma folha ou fruta aparecer, sabendo-se ela a cor mais poderosa.

            Não, leitores, não é tudo isso o café da manhã da Mulher do Sétimo Andar. Varia com as marés de sua fome, com os caprichos da natureza que chega à feirinha orgânica…

            Satisfeita da primeira refeição (segue à risca os ensinamentos do Presidente Lula: a todo brasileiro, três refeições diárias), enquanto lava a louça, pensa, mas como eu ainda tinha tempo para trabalhar? Riu sozinha. Você correu muito, moça. Era fazer pesquisa, dar aulas… Nunca parava de estudar. Acabado o semestre, as férias para preparar o programa do curso seguinte. E foi tudo ao mesmo tempo, trabalho, filhos, escola dos meninos… A energia daquela mulher jovem parece que espinhava quanto mais a vida pedia dela.

            E agora? Agora ela saúda o sol a cada Aurora, espia o colorido esmeralda de seu pedaço de Oceano Atlântico, e agradece a Deus por mais um dia de vida. Pela vida que lhe é tão pródiga.

Diário do Pina

Viva o povo brasileiro – 28 de novembro de 2020

Hoje me deu uma saudade de meus leitores… Escrevo para eles com o mesmo espírito com que antigamente escrevia cartas, no tempo em que morava na rua Professor Edgard Altino, aos primeiros anos da década de 1960. Essa rua era uma travessa da Estrada Real do Poço. Os que não são do Recife não estranhem esse nome de rua. É que meus conterrâneos gostam muito de nomear com realeza e nobiliarquia de Conselheiros e Comendadores, as ruas e até mesmo o maior hospital da cidade; e o que mais possa relembrar os tempos de glória da cana de açúcar. Da rua Edgard Altino eu caminhava por entre árvores frondosas até chegar às margens do rio Capibaribe, onde, sentada em um tronco de um pé de azeitona derrubado em alguma enchente do rio, fazia meu escritório. Na safra, voltava pra casa com a língua roxa de tanto comer as frutinhas caídas no chão coberto de folhas secas. Também não pensem os alienígenas que se trata das conhecidas azeitonas das quais se tira o azeite de oliva. Não. Essas daqui têm o mesmo formato, pequeninas, pretinhas – quanto mais pretas, melhor, mais maduras –, e nascem de árvores grandes, que me propiciavam sombra benfazeja desde casa até as margens do rio. Para lá levava um bloco de folhas finíssimas, fabricadas para pesar menos dentro dos envelopes. Estes, selados e enviados aos destinatários no imponente prédio dos Correios e Telégrafos da Avenida Guararapes.

            Naquele tempo, um dos destinatários era Antônio. Meu primeiro amor. Nós dois, estudantes secundaristas. Cearense, mirradinho, feio. Um amor platônico, que se alimentou só da escrita. Depois veio a primeira grande enchente do rio Capibaribe e levou tudo, as cartas de Antônio, meu diário, e até algo que havia se salvado das águas contaminadas. Junto com meu irmão, resolvemos aproveitar a oportunidade e jogar fora um passado do qual queríamos nos livrar: toda a coleção dos livros verdes.

            Pois assim me sinto quando escrevo as crônicas que envio para a dúzia e pouco de amigos, que, com a tecnologia do século XXI, recebem a correspondência no apertar de uma tecla de celular. Hoje, deixo os personagens e cenários do novo romance descansando, e volto aos meus leitores. Recebam então essas mal traçadas linhas, porque hoje é sábado, como disse o poeta, e, além disso, véspera de eleição.

            Ontem fui passear de carro. Antigamente, quando os primeiros automóveis chegaram a Garanhuns, dizia-se: carros de passeio. Lembro do pai de uma amiga de infância, aos domingos, levando a mulher na boleia, as três meninas e o caçula no banco de trás, rua acima rua abaixo, no seu carro de passeio de segunda mão. O Ford 51 de meu pai era de primeira mão, e gostava mais das estradas poeirentas a caminho do paraíso – a fazenda de meu avô em Bezerros. Mas ontem fiz o programa de Seu Asnar, com muitas diferenças de tempo e de lugar. Sozinha dirigindo a Pajerinho 4 x 4 (que também gosta mais de estradas de terra), vidros fechados, ar condicionado ligado, rádio tocando chorinho, saí passeando pelas ruas e avenidas do Recife. Vi muito trânsito na ânsia das compras do bréquefráde (como diz Edinha, que não sabe ler nem escrever, mas sabe as operações básicas de aritmética para não ser enganada e sabe se assinar para votar), e muitas bandeiras para chamariz dos indecisos entre um partido que se chama socialista e outro que se chama do trabalhador.

Distante das duas pragas, lá vai a Mulher do Sétimo Andar no seu carro de passeio, apreciando o colorido encarnadamarelo das bandeiras tremulando, lindo, lindo, numa tarde de sol cheia de brisa. Não vê partidos políticos. Não vê nem as cores da bandeira da Espanha, a terra ancestral de seus filhos. Aquelas bandeiras enfeitam as ruas. E servem para acrescentar uns trocados à garotada que, em harmonia uns com os outros, postam-se ao sinal fechado balançando os mastros das bandeiras. Que belo espetáculo! E as que são plantadas em lugares estratégicos? Como está bonita esta cidade! Cortada por um rio sinuoso como uma cobra caminhando em direção ao imenso oceano, depois de se juntar em núpcias ao rio Beberibe atrás do Palácio do Campo das Princesas.

No domingo essa mulher passará o dia em casa e não irá votar. Não por medo do coronavírus, mas porque já não acredita no voto nesse momento da história do Brasil. Fará o mesmo que fez hoje, sábado. Sairá de casa pelas cinco da madrugada, deixará a chave na portaria do prédio, e voltará a tempo ainda de um dedo de prosa com o porteiro da noite. Houve tempo em que a porta de casa ficava apenas encostada. Porém, depois dos setenta anos, achou prudente deixar a chave na portaria. Não retornando até uma certa hora da caminhada, exercícios, banho de mar, quando já terá assumido o porteiro do dia, este saberá a quem procurar. Na pior das hipóteses, ela terá sido levada por um amigo tubarão, e o caminho será mais curto até os inevitáveis braços acolhedores de sua mãe Iemanjá.

Informando-se do que se passa na cidade pelo movimento das ruas e pela versão de quem não mora trancafiado e usa transporte coletivo, a Mulher do Sétimo Andar conclui que nunca a segmentação de classes foi tão grande em nosso país. Os ricos, os funcionários públicos, podem se dar ao luxo do confinamento. Aliás, há décadas, a classe média está trancada nos apartamentos, sendo o Recife o caso brasileiro mais gritante. Trancafiados com medo das ruas, espaço da cidadania. Pois nas ruas reside o rescaldo da guerra das drogas, presente em toda periferia brasileira. A Pandemia veio acirrar tudo isso: a guerra das drogas, das milícias e do poder privado nos morros e nas periferias das cidades. Os jovens negros e pobres sendo dizimados. O lamento das mães dos garotos encarcerados e mortos nessa guerra. Quem lhes dá assistência? O poder privado dos chefes locais que mandam no cotidiano da periferia. Ou jovens organizados em movimentos sociais, em movimentos negros, em pastorais religiosas e evangélicas.

Enquanto isso, velhos militantes brincam de planejar a tomada do poder. Outros se distraem com as pesquisas eleitorais. Como se mudasse alguma coisa ganhando o amarelo ou o vermelho. Ao chegar lá, continuarão o moto contínuo dos dez por cento, dos quinze por cento, das caixinhas para a próxima eleição e a perpetuação da perversa engrenagem, que salta do poder político para todas as instâncias em que circula o vil metal. Edinha embolsou cento e oitenta que seria de seis votos a trinta reais cada, entre filhos e netos. E ainda contou vantagem: “meu voto terminou valendo mais, cento e oitenta, pois os outros já tinham candidato”. É. Isso ainda existe.

Votar? Não tiro a razão de quem vota. Não tiro a razão de ninguém. Aliás, não tomo partido e por isso conservo todos os meus amigos. Acredito, sim, nos movimentos sociais. Nos jovens, que lutam por seus direitos por outros meios que não só esses da democracia eleitoral. Porém não tenho ilusão. Não verei luz alguma ao final do túnel no tempo de vida que me resta. Creio sim, no povo brasileiro.  

Diário do Pina

Pés descalços – 24 de outubro de 2020

Sexta feira é dia de música. Pela música, vale até perder a Aurora do dia seguinte. Acordo às 5:30, atrasadíssima. O mar está seco. Antes de ir à praia, tomo água, molho as três plantinhas que estão tomando sol desde antes de mim, abro a janela para elas tomarem também a brisa, borrifo, como fosse um sereno atrasado. Elas agradecem. Uma pimenteira de biquinho, um mini jasmim, e uma pobrezinha transplantada do Brejo, onde floria em azuis e aqui trocou o azul pelo verde esmeralda do mar, até acabar seu florir. Resiste bravamente, em talos que vão encompridando em folhas do tamanho da mão espalmada de uma criança de cinco anos. Paciência, me diz ela, para florir em azuis, brancos, rosas, careço dos ares frios da montanha e não dessa maresia. Mas segue em verde bandeira bonito, folhas novas nascendo, expulsando as velhas que amarelecem. O processo natural da vida.

            O século XXI é o século do Pet. Na verdade, sempre foram boa companhia para os humanos. Quando meus filhos eram pequenos, encafifei com a ideia de morar em casa. A princípio, com grande resistência de Zé Hamilton, comecei a procurar velhos sobradinhos da Vila Madalena, perto da feira. Emília conseguiu a façanha, eu não. Tive melhor sorte. Se é para morar em casa, Teresa, vamos construir, falavam palavras engenheiras e objetivas. E assim foi. Os meninos logo se afeiçoaram a um Husk Siberiano, que passava o dia na área da garagem da casa de Clara, a vizinha de muro. Ficavam lá tempão, fazendo agrados em Téo, que, sem cerimônia, achegava-se aos vãos da grade. Carlos, namorado da filha de Clara, estava se mudando da casa dos pais para um apartamento e procurando alguém para doar a Husk Siberiana dele, não por acaso chamada de Carla. Naquele natal de 1985, como fosse um presente de Papai Noel, Carla veio morar conosco. Na nossa casa pariu duas ninhadas de cachorrinhos. São desse tempo as melhores fotografias dos meninos. Meses depois de Carla lá em casa, meu filho me disse, sério como costumava ser, Minha mãe, não preciso mais ir para a tia Maria Luiza. Já tenho a minha cachorra. Não neguei à psicóloga o motivo da suspensão do tratamento de ludoterapia.

            Dou-me bem com a solidão. É a melhor companhia que conheço. Mas andei repensando. A gente tem que se adaptar aos tempos, como me adaptei à tecnologia possível aos de minha geração. Em apartamento, seria um gatinho. Uma gatinha, melhor dizendo, como tive nos tempos da Casa de Aldeia. Uma Mimi. Desejo frustrado ao primeiro empecilho: teria que colocar tela nas janelas, alertou-me uma amiga que cria gatos. Tela? Jamais. Só um neto me levaria a tanto, sabendo que seria provisório, pois netos crescem. Mas hoje me dei conta de que já tenho na verdade dez pets. Uma palmeira ráfia, uma samambaia, que tomam água uma vez por semana. Um mandacaru, um facheiro e um gravatá minúsculos – ah, Sertão! –, economizadores de água por natureza, “Me borrifar, dona, uma vez por semana que me baste”. Os três que tomam mais sol pedem água todo santo dia: o jasmim, que vem florindo e fazendo cheirar meus entardeceres; a pimenteira em frutos verdes e vermelhos, para proteger a casa do mau olhado; e a bichinha da hortênsia sem flores, mas que, mesmo assim, encanta a vista. São meus pets. Sim, faltou contar os outro dois, a castanhola e o coqueiro. Esqueci de quem os primeiros. Estão no espaço público da praia, aos cuidados do sol, das chuvas, das intempéries. A natureza praieira é deles. Crescem, que benza-os Deus.

            Mas outro dia tive uma ideia maluca. Espero que não vingue. Ora, se se coloca um pobre husk siberiano, que, em São Paulo, em um quintal, já trocava de pelo mais vezes do que no seu natural na Rússia, imagine esse coitado num apartamento do Recife? Vejo a cara triste deles na coleira de seus donos, passeando no calçadão. Será que uma sabiá numa gaiola, para acordar junto comigo às madrugada, para bicar com carinho minhas mãos ao trocar as bandejas, colocar alpiste, água? Pecado menos grave do que aprisionar um cão grande em um espaço limitado, longe do chão de terra, das florestas, de seu habitat. O meu passarinho ficaria no lugar onde é hoje uma escultura em ferro de um artista de Bichinho, com dois peixes eternamente se beijando na boca. Vejam em quão nobre espaço da casa ficaria a minha sabiá! A parede mais clara, que recebe mais sol pela manhã, com vista para os coqueiros, as amendoeiras, o mar, o céu, os pombos voando soltos. Tudo é relativo. “Furaro os óio do Assum Preto, pra ele assim, ai, cantá mió (…) Mil vez a sina de uma gaiola, desde que o céu, ai, pudesse oiá” (Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga). E os eunucos? Pela beleza, pela arte… A arte tem precedência sobre a vida? Goethe, o maior entre os grandes, dizia. Essa, talvez, a grande questão filosófica do século XXI: a liberdade do ser vivo.

Mas por favor, não, não me venham com argumentos e discursos. Vocês venceram.

A caminho da praia, vejo que tanto a castanhola Emília quanto o coqueiro Josué agradeceram as chuvas dos dois dias passados. Josué está com uma palha novinha em folha despontando. E Emília risonha, firme, já adolescente, enquanto Josué tem sofrido mais para crescer.

Já na areia, caminhando, cruzo com outros, a metros de distância um do outro, portando máscaras. Com essa brisa, meu? Como os véus de antigamente, que as mulheres colocavam na cabeça para entrar numa missa. Os homens, ao contrário, descobriam as cabeças. Um credo. Alguns olham com maus olhos a pecadora.

Andar com os pés descalços. Reaprendo. A escoliose já não reclama. Caminhar sem pressa pelos riachinhos formados do lado de cá das pedras – os arrecifes que batizam a minha cidade. Onde os meninos pequenos podem brincar sem medo do papafigo do século XXI: o tubarão. Ao final da caminhada, as primeiras barracas coloridas nas areias do Pina. Moacir ainda não abriu. Tenho até crédito ali para consumir fiado. O corpo pede banho salgado. Deixo sandálias, chapéu, óculos escuros e vestido numa espécie de península, entre os riachinhos rente às pedras por onde fui caminhando, e uma das piscininhas filhas do Buraco da Velha. Há uma pessoa lá tomando banho. Vejo a fundura da água na cintura dele. Tem pedra aí? Não escuto a resposta, mas vejo o menear de sua cabeça. Mesmo assim, há que tomar cuidado. Já dei topada em pedra onde menos se espera. Água friazinha. Primeiro, me persignar molhando os dedos na água benta. Depois, o primeiro mergulho. Natação, hidroginástica, deixar a espessa água segurar o corpo olhando as nuvens andando em um céu muito azul. O homem tenta puxar conversa. Finjo que não ouço. Detesto prosa em certas ocasiões. Uma vez uma amiga, Vamos nos encontrar para caminhar? Estragou a caminhada. Não apenas porque era chata, dessas pessoas que puxam a gente para baixo. Mas porque na música e na natureza gosto de estar só comigo. Meu lado autista. A voz humana é muito pobre para concorrer com o murmúrio do mar ou de um violão. Pisar em areias fofas, areias molhadas, areias formando um minideserto no fundo do oceano, o tapete verdemusgo dos sargaços, o cheiro inebriante dos sargaços.

Pelo tanto que já brinquei na água salgada e pela posição do sol, sei que está na hora de voltar pra casa, tomar o café da manhã, principiar o dia. Lembro que vou entrar novamente na fortaleza onde moro e nela preciso repor a máscara até entrar em casa. Só então me dou conta que esquecera de retirá-la do pescoço antes de cair n’água. Tiro a bichinha, torço bem. Não adianta. Não dará tempo de secar, por mais que o sol das sete horas da manhã do Recife já esteja inclemente. Vai assim mesmo, sufocando-me ainda mais.

E entrou por uma perna de pinto e saiu por uma perna de pato…