Diário do Pina

O verão chegou – 18 de outubro de 2020

Aviso aos navegantes: o verão chegou. O sol largou a preguiça de ficar até cinco e meia nos últimos cochilos, embaixo das cobertas, às vezes para dar as caras só lá pelas sete. Hoje, cinco em ponto, nasceu no seu mais lindo alvorecer: dentro do mar. Como já não tenho cortinas na sala, ele entra sem cerimônia na minha casa, cozinha a dentro, até a última parede, onde está a geladeira.

Já tomei a primeira parte do café da manhã, frugal, a maré está cheia, o jeito é caminhar pelo calçadão. Dia luminoso. A essa hora, mais corredores que caminhantes. Os automóveis e as motos ainda são poucos na avenida. As ondas chegam a meus ouvidos, e não me furto a um sentimento de raiva dos motores quando interrompem aquele murmurar.

Passada a marca da cerâmica cinzenta para a vermelho tijolinho, vislumbro crianças nos balanços. Chegando mais perto, ouço as vozes adultas. Abro o portãozinho de ferro. Ao me aproximar do brinquedo imitando casinha, onde faço meus alongamentos, já dá pra saber que são jovens se despedindo da night. Quantas dessas despedidas, meu Deus do céu… Tem melhor? Apreciar corrida de submarino?

Um deles, vendo-me aproximar da escada tipo navio, sendo ela de sólidas toras de madeira,

– Dona Teresa, dona Teresa, a senhora quer ajuda?

Antes de subir a escada, olhei na direção deles. Na hora que entrei no parquinho, estavam tão entretidos na conversa, um dando impulso ao balanço da moça, que nem dei bom dia. Passei invisível, como costumam ser os velhinhos para a moçada nova.

Quando espiei para eles, vi que eram jovens bem nascidos. Sorri, e o que havia oferecido ajuda veio em minha direção.

– Você me conhece?

– Não.

– E por que me chamou pelo nome?

– Porque assim chamo a todas as senhoras que são da idade de minha tia-avó.

Nosso sorriso foi muito amigável. Eu não carecia de ajuda, faço isso quase todo dia. E ele voltou ao grupo, com ar de quem conta vantagem, dizendo da coincidência dos nomes.

            Aquilo me deu uma saudade de um neto que não tenho, que poderia ter essa idade, jovem universitário…

            No caminho de volta, o verão fervia. As carroças de mão voltaram a negociar. Os times já haviam tomado conta dos três campos de futebol. Vi um rapaz e uma moça que não corriam nem caminhavam: apenas andavam pelo calçadão sem pressa, proseando, ele enlaçando a moça no ombro, ela na cintura dele.

Emília

14. E agora, Emília?

Seguiram viagem. Depois de vários quilômetros, Josué percebeu que havia perdido a conexão para chegar à BR 101. No primeiro posto de gasolina, conversou com motoristas de caminhão, que lhe indicaram uma rodovia alternativa. Passaria pelo Jorro do Tucano e dali seguiria pelo Sertão do São Francisco. Quando olharam no mapa, Emília viu que o Velame ficava no caminho.

– Que bom, Josué! São os Orixás guiando nossa viagem. Antes de chegar à fazenda de teu irmão, vou rever a cidade de minha infância.

Josué ficou em silêncio por alguns segundos. Até que desabafou,

– Eu, para te falar a verdade, Emília, nunca simpatizei com esse tal de doutor Juvenal, que embuxou a tia Maria e deixou a coitada ao Deus dará. Não fosse você ter nascido com aquela doença no coração, nunca mais ele teria tomado conhecimento de que você existia no mundo.

Mal acabou de falar, Josué percebeu que fora longe demais. Viu Emília se encolhendo no canto dela, calada, com as mãos pousadas no colo, olhando para o chão do carro. Arrependeu-se. Mas qualquer emenda seria pior. A estrada naquele trecho estava com bom asfalto, sem sobressaltos. Josué deixou o volante seguro com a mão esquerda, e, com o braço direito, puxou Emília para junto de si. Assim atravessaram uma ponte próxima aos Cânions do São Francisco. Josué parou a Toyota no acostamento após a ponte. Desceu e veio abrir a porta de Emília, que não careceu usar o estribo: ele repetia o gesto de noivo do reencontro em São Paulo. Continuaram sem palavras, sentados numa relva na margem do rio, ouvindo o correr da água, sentindo o cheiro ácido do Sertão, apreciando uma das mais belas obras arquitetônicas de Deus. Somos sempre tão pequenos diante delas…

– Josué, a gente nunca deve julgar o amor. Eu já tinha quinze anos quando soube por Maria Emília a minha verdadeira paternidade. Ela não me escondeu nada. As duras palavras de dona Heloísa. A omissão de meu pai. Naquele dia, Maria Emília pediu que eu perdoasse a mãe de criação. “Não deve ter sido fácil, minha filha, aceitar para criar a filha do marido com a empregada doméstica.” Perdoei dona Heloísa, mas passei a odiar meu pai. Lembrava-me das palavras dele no dia em que conversamos sobre a minha decisão de ir morar com a mãe de verdade. “Sei que vou sofrer muito, minha filha, sem você nessa casa. Mas tenho que me conformar. É castigo de Deus, pelos erros que cometi na vida”. Eu era esse erro na vida dele.

– O tempo, Josué. O tempo. Quando Maria Emília foi me assistir no resguardo de José, eu naquela angústia de não conseguir amamentar meu filho, aprendi mais uma lição com minha mãe. Aprendi que, ao amor, tudo se perdoa. Não há acertos e desacertos no amor. Existe apenas o amor, ou o desamor. E ela me confessou que, com Sinhozinho (como era chamado meu pai em casa), viveram, escondidos do mundo, o maior amor da vida deles. Depois disse, “Você já perdoou dona Heloísa, minha filha. Agora está na hora de perdoar seu pai. Eu dele não guardo mágoa. A lembrança de Sinhozinho é doce, quando ouço nas madrugadas a sabiá anunciando o principiar do dia, quando Sinhozinho saía de meus braços ‘para enfrentar o teatro da vida’, como ele gostava de dizer”.    

Emília e Josué dormiram num hotelzinho qualquer da primeira cidade após os Canions do São Francisco. No dia seguinte madrugaram na estrada.

Chegando ao Velame, entraram na cidade pelo bairro da Boa Vista, depois de passar num local onde teria havido um convento das freiras do Bom Pastor. Esse convento era afastado da cidade, e, foi preciso alguém informar que era ali mesmo, “Sim senhora. Olhe ali. Ainda se vê uns restos das paredes grossas cobertas de mato”. O Velame se encompridara em casas pobres. Em menina, por vários anos, todas as segundas e quintas feiras, Emília tivera lá as primeiras lições de piano. Lembrava-se de uma ventania que entrara pelas janelas abertas do carro espalhando as partituras de música. Ia sempre com seu Gonzaga, o motorista do pai. A professora era uma freirinha corcunda, de fala suave, que lhe servia bolos de goma, se ela trouxesse as lições feitas.

A Rua do Comércio guardava o mesmo risco original, com a igreja Batista em uma extremidade e a Catedral de São José na outra. Nessa rua, Emília só reconheceu uma loja do seu tempo, a Farmácia Globo. Dali, indicou a Josué o caminho para chegar à velha estação de trem, onde a casa dos avós. Depois da Catedral, dobraram à esquerda, na rua do colégio das freiras. Não mudara uma janela, uma porta, nada. O jardim entre o portão de entrada e a escadaria que dava acesso à portaria continuava florido. Emília, pisando no passado.

– Para, Josué, para aqui, em frente ao colégio. Não, aqui na entrada principal não. Anda mais um pouquinho. Aqui, aqui! Esse era o portão de entrada das alunas, às 7:30 da manhã. Só quando alguma chegava atrasada, aí tinha que entrar pela portaria principal, com autorização dos pais.

Josué ria com a excitação de Emília. Dali atravessaram uma avenida movimentada por ônibus e automóveis, e seguiram em frente até chegar à Praça Dom Moura. Nova parada.

– Essa sempre foi a praça mais florida da cidade, Josué. Não era perto de minha casa, mas eu vim muitas vezes com minha madrinha.

Sentaram-se num banco. Josué viu um desapontamento nos olhos de Emília e disse,

– Minha prima, nunca mais encontraremos as flores da nossa infância. Serão sempre menos bonitas. Pois eu, digo a você, nunca vi jardim tão lindo quanto este!   

– Está vendo a Estação de Trem, Josué? Para lá nós vamos agora. – E puxava-o pela mão, como quem conduz um aprendiz. Josué estacionou perto. Emília viu que a estação era a mesma, porém pintada em cores, sem a sobriedade do creme e da madeira velha das portas. O que não existia mais, disso já sabiam, eram os trens. O apito do trem, ela correndo pelo longo corredor da casa, segurada pela mão de Biu, a negra boa e risonha que também contava histórias de trancoso. O avô, sentado no banco da calçada, esperando que o moleque de recado lhe trouxesse o Diário de Pernambuco.

– Vamos embora, Josué.

– Mas Emília, você não quer entrar na estação? Virou um museu. E a casa de teu avô, não era em frente à estação?

– Pois é, Josué. Derrubaram a casa. Não sobrou nada. Nem o banco velho da calçada.

Os olhos de Emília se encheram de lágrimas. Josué lhe passou o lenço. Ela não mostrou a ele nem o lugar onde ficava a casa. E desabafou, braba.

– Olhe, Josué, nós somos mesmo um país predador, pior do que as traíras do rio São Francisco. Veja a Europa. Ali nada se destrói. E quando acontece um acidente, um terremoto, uma guerra, eles reconstroem tudo igual. Aqui, não carece nem guerra, nem terremoto, que, aliás, não temos. Que espírito é esse, Josué? Me explica, você, que é professor.

Josué pensava, com o ar professoral de quem tem resposta para tudo.

– Somos um país jovem, Emília, comparado à velha Europa. Não criamos ainda esse gosto pelo passado. Perseguimos um progresso ilusório, que está nos dizeres da bandeira…

Mas Emília não o deixou prosseguir,

– E o que dizer dos Estados Unidos, Josué? É um país tão jovem quanto nós. Fui recentemente lá, circulei pelo Harvard Yard, por todos os lugares que conhecia. Não encontrei um só edifício destruído. Uma estudante de pós-graduação me contou que precisou morar muito distante, para poder estudar em Harvard. Não havia uma única acomodação nas imediações para alugar. Por que não copiamos isso dos gringos? Deles, só trazemos lixo. E palavras fora do lugar, como esse tal de “politicamente correto”.

Josué sabia que quando Emília ficava brava não adiantava discutir. O melhor era fazer como se faz com menino pequeno: mudar a prosa, distrair o menino.

– E agora, Emília, para onde vamos?

Foram na direção do Parque dos Eucaliptos. Não havia mais a garagem de aluguel de bicicletas. Mas só o fato de não terem tirado os eucaliptos, mudou o humor de Emília. O cheiro bom… Muitos eram recém-plantados, o que significava que o parque estava sendo conservado. Emília tentou abandonar o lamento do passado e olhar para o presente. Afinal, o parque não diminuíra de tamanho, embora tivesse perdido as bicicletas, a casa dos porcos espinhos, a dos pavões de lindas penas coloridas…

Já passava da hora do almoço. Indicaram um restaurante para os lados do monte Magano, onde encontrariam uma boa Carne de Sol. Aquele Magano era uma das colinas da cidade aonde o doutor Juvenal gostava de ir ver o pôr do sol, com o carro cheio de moças bonitas e Emília no colo de uma delas. O restaurante, conforme indicaram, era modesto. Como modesta a garçonete, vestida como se estivesse na cozinha de casa, que respondeu faceira a Josué, quando ele quis saber se a cerveja estava bem gelada, “e eu sei?” Bem, a cerveja estava bem gelada e a carne de sol, acompanhada com macaxeira cozida, farofa de jerimum, feijão verde, arroz, molho vinagrete e manteiga de garrafa…

Entraram finalmente na avenida Sete de Setembro. Continuava florida no canteiro central. Porém, quase todas as casas haviam sido derrubadas, para dar lugar a comércios, oficinas, postos de gasolina, restaurantes, escritórios, supermercados. A casa do Doutor Pedro, a mais bonita de todas, virara uma cervejaria, com música tão alta que ouviam pelas janelas abertas da caminhonete. As poucas casas de residência restantes esperavam comprador, com matos crescidos nos jardins. Os ricos da cidade moravam agora nas novas ruas construídas na subida do Monte Sinai.

A Toyota andava a passo lento pela Avenida Sete, em respeitoso silêncio, como fosse um velório.

Emília conferiu o número: 1138. “Onde as papoulas encarnadas, amarelas, cor de rosa, que encimavam o muro baixinho em formatos arredondados? Onde as palmeiras? Onde o terraço, com rede de croché e cadeiras de ferro, onde eu estudava geografia? Onde os canteiros de rosas?”

Emília não espiou o que viu. Olhou para dentro de si e estava tudo intacto: do muro ao jardim, às salas, aos quartos, ao seu quarto, onde, em manhãs de abril, o galho de uma roseira branca entrava pela janela aberta. A cozinha, com Carmem cozinhando e lhe contando histórias de trancoso. O quarto das empregadas, onde gostava de ficar ouvindo a prosa delas depois do almoço. O quintal, os abacateiros, as bananeiras, os pés de mamão, o buraco do lixo, a casa do cachorro Cotiabá, o galinheiro, a criação de abelhas.

– Vamos, Josué. Não quero ver mais nada.

Dormiram em hotel desconhecido da cidade, para no outro dia madrugar de novo na estrada.

Do Velame a Raposas, o município onde a Fazenda Baraúna, eram apenas 126 quilômetros. Um pulo, naquela estrada asfaltada. Mas Emília desejaria uma viagem mais demorada, em estradas de terra… “No banco da frente do carro, o pai e o motorista. Eu sozinha atrás, com meus fantasmas. Nas viagens, o pai usava, por cima do terno de linho de Juiz, um apara pó de tecido de algodão, igualmente branco. Embaixo do paletó, umas correias que serviam de bainha para o revólver que costumava levar em viagens. Era um revólver bonito, cabo longo, branco, de madrepérola, calibre 38, nomeado de Colt Cavalinho, porque tinha a cabeça de um cavalo gravada no cabo. Usado pelos cowboys americanos, foi imortalizado pelo ator Roy Roger. Nos filmes do Cinema Eldorado do Velame…”

***

Numa padaria de Raposas, onde comeram pão doce com café preto, tomaram informação sobre qual a estrada para a fazenda Baraúna

– O senhor quer saber da fazenda do doutor Francisco? É muito fácil. É só o senhor pegar essa rua que segue aqui da estação de trem, a rua Torta. Não tem erro. Passadas as Olarias, é a primeira porteira à direita. O senhor vê logo o curral dos bodes.

Já a caminho, Josué comentava,

– Eita, que meu irmão aqui virou doutor… Há quanto tempo, Emília, você não come milho assado numa fogueira?

A porteira estava apenas encostada. No terreiro grande, em frente à casa, havia lugar de sobra para a Toyota. Um cão latiu, mas era manso. Balançando o rabo, veio lamber os pés de Emília, que abrira a porteira.

Francisco não esperava a visita de Josué. Muito menos que chegaria acompanhado da prima. Emília observava a alegria dos irmãos. As falas, os silêncios… Era a véspera de São João e a fogueira já estava armada, coberta com um plástico preto. Acabado o café da manhã, com queijo de coalho assado, queijo de manteiga, cuscus, inhame cozido, coalhada… o café da manhã dos vaqueiros nordestinos, Francisco levou os dois para conhecer a fazenda no entorno da casa. Os campos estavam em verdes invernosos. Passaram primeiro no curral das cabras.

– É o animal que melhor se aclimata aqui, Josué, nessas terras pedregosas. Essa fazenda costuma me dar mais prejuízo do que lucro. Vivemos, na verdade, da aposentadoria, a minha e a de Maria Lucila. Isso aqui é uma festa para nossos netos. Infelizmente, esse ano não puderam vir para o São João.

Enquanto caminhavam, Francisco mostrava a vegetação, sempre junto de Josué. Só não seguravam a mão um do outro porque não era o costume. E Emília pensava, “Como é bom ter irmão. Estar com eles é como voltar à casa da infância.” De repente, Francisco se lembrou que Emília existia e, dirigindo-se a ela,

– Quando comprei essa fazenda, prima, estava adquirindo um verdadeiro museu do Agreste a céu aberto, e que me foi vendida na bacia das almas. O antigo dono, um velho que se dizia por aqui que já nasceu velho, tinha o maior amor a essa propriedade. A vegetação, o curral das cabras, tudo isso já existia. Ele escolheu a dedo para quem vender. Era um sujeito esquisito, meio bruxo. Diziam que ele sabia que seus dias estavam contados. Pensando nos filhos herdeiros, cobiçosos de dinheiro, vendeu a quem ele sabia ia manter o museu para a posteridade.  

– Vamos começar por esse Imbuzeiro, a árvore mais perto de minha de casa. Costumo dizer que ele é o ar condicionado do Sertão. Agora é inverno, não tem como demonstrar. Mas no sol a pino do verão, basta ficar embaixo de sua copa grande, você se livra do calor. – Dirigindo-se novamente a Josué, – Cada um de nós, meu irmão, tem um lugar no mundo. O teu talvez seja São Paulo. Ou o Janga, não sei. O meu, fui descobrir quando vim morar aqui: é embaixo desse pé de umbu. – Olhou de novo para a prima e perguntou – Qual o teu lugar no mundo, Emília?

Emília pensava… “Seria a casa de minha avó no Janga? Ou o sobrado na Vila Madalena? Ou a casa da infância, no Velame, ainda pulsando nas minhas veias, após ter visto ontem o lugar onde dela nada mais restou, a não ser o endereço?”

Depois do Umbuzeiro, passaram por vários Marmeleiros, magrinhos no tronco, folhosos, gordos. Logo a seguir, junto à cerca que separava a casa de uma área de pasto, avistaram a velha Baraúna: alta, empertigada, a maior de todas as árvores de lá. Adiante, um pé de Angico, quase tão imponente como a Baraúna, porém menos vistoso. A Catingueira avizinhava a Baraúna, no outro lado da porteira. Seus galhos e folhas em verde novo partiam de vários troncos, sem a convicção de fortaleza do tronco único da Baraúna. Francisco apontava dois pés de Jurema. Tão próximos seus galhos e folhas, que, aos olhos de Emília, pareciam irmãs; tão semelhantes uma da outra… seriam irmãs gêmeas. Logo a seguir, uma Algaroba, com a folhagem mais viçosa voltada para o lado do sol nascente. “Um pé de pau agreste com espírito de girassol”, pensou Emília.

Altos e desengonçados, magros, os Rabos de Cavalo eram como adolescentes em crescimento, vulneráveis aos ventos. Facheiros e Mandacarus lembravam o Sertão. Mais à frente, um pé de Imburana novinho. Ao longe, muito ao longe, o Juazeiro.

Rasteirinhos, sem endereços definidos, espalhados por todo terreno por onde andaram, muitos pés de Jurubeba e Velame. Francisco arrancou uma folha de Velame, partiu ao meio e deu para Emília cheirar. Nem carecia. Ela há muito já conhecia o cheiro do Agreste.

***

O dia, que amanhecera com o friozinho das manhãs de inverno, ia sendo aquecido pelo sol. Josué vivia uma alegria irmã que Emília desconhecia. A conversa continuou dia afora. Nem a sesta os fez se separarem. Foram armadas três redes no lado sombreado do alpendre. Emília cochilava e acordava com os dois proseando… no Janga, nas pescarias, na casa da tia Nenê. Às vezes apanhava fragmentos das conversas,

– Por que “doutor”, Francisco?

– Ora, Josué, aqui não carece de ter diploma para ser doutor. Basta ter dinheiro.

O sol se despedia quando o morador mais antigo da fazenda acendeu a fogueira. Josué e Emília entraram em casa para tomar banho e trocar de roupa. Com a recomendação, “fique bem cheiroso, que hoje quero dançar forró a noite inteira”, Emília entregou na mão de Josué o sabonete Phebo. Ele saiu do banheiro com uma camisa quadriculada, lenço vermelho no pescoço, calça azulão de Alvorada, das que só se vendem na feira de Caruarú. E, claro, sua marca registrada: as alpercatas de rabicho. Para completar, um chapéu de couro. Estava completo. Só faltava Maria Bonita, que saiu do chuveiro depois dele, vestida com saia de chita e uma blusinha branca de algodão abotoada na frente.

– Você vai sentir frio, Emília.

Aí ela botou por cima um xale de croché, que havia sido feito por Maria Emília para que enfrentasse a neve de Boston… Santa inocência! Nos pés, umas alpercatas baixinhas, dessas próprias para arrastar no salão de dança, xeco, xeco; xeco, xeco.

– Vem cá, minha matutinha filha de Oxum com esse xale amarelo…

– Josué, melhor a gente parar por aqui. Essa casa não tem forro e qualquer barulho se ouve no quarto vizinho e até na sala. Além disso, eu vou carecer lavar as partes depois, refazer o batom, vestir a roupa toda de volta. Não, Josué, guarda teu tesão para amanhã.

O que era aquela doidice? Quanto mais perto do destino, mais meninos ficavam. Josué tão bonito, aos olhos de Emília, com aqueles olhos pretos cor da noite. Deixara para trás a pose de professor. Era o Josué que um dia Emília vira se apresentando de brincadeira ao diretor da peça Morte e Vida Severina: filho de pescador, nascido numa praia deserta, que, em menino, ia pescar com o pai, tirava coco em coqueiro alto, sabia de roças e roçados.

Com pouco, começaram a chegar os convidados. Emília e Josué se serviram de uma cachacinha mineira para abrir os trabalhos da noite.

Fazia falta crianças. Festa de São João pede meninos, para a gente ver a alegria nos olhos e na risada deles. Até que chegou um morador a mulher e três filhos. Pronto, a festa começava de verdade. E foram chegando outros meninos, atraídos pelos fogos e pela fogueira. Cada um pegou logo uma caixinha de traque de massa e saiu correndo, fazendo susto um ao outro. O pai de um deles usou um toco de pau de um marmeleiro seco, e fez dele o posto avançado dos fogos maiores, mais perigosos. Dali, dúzias de foguetões pipocavam no ar, sempre à saudação, “Viva São João”!

Os meninos, sorrindo aos fogos de vista. A fogueira assando milho e batata doce. O alpendre, coberto de bandeirolas coloridas. Na mesa, milho e amendoim cozinhados, canjica, pamonha, pé de moleque, munguzá…

“Cada fogueira de São João na minha meninice espantou um pouquinho um sonho renitente: correndo do diabo que, envolto em chamas, vinha em meu encalço. Eu conseguia entrar numa casa abandonada. Descobria no chão um alçapão, abria, descia por uma escada escura que dava no porão. Lá, me encolhia bem caladinha em um canto. Mas, não demorava, o demônio abria a porta do alçapão. Sempre acordei nessa parte do sonho, assustada, o coraçãozinho batendo forte, suada. Às vezes pensava que poderia morrer em um sonho desses, e rezava a Nossa Senhora para não sonhar mais. Hoje, aos sessenta anos, sei que fui espantando todos os meus demônios à cada fogueira de São João de minha vida. Pois não dizem que se deve sempre acender a fogueira nessa noite para que o diabo, nela entretido, não entre na nossa casa? A minha está varrida e limpa.”

Tão distraída estava Emília com seus pensamentos, espiando a fogueira, que até se assustou quando Josué chegou sutil, abraçando-a pelas costas e dizendo baixinho,

– A música está chegando, meu amor.

Os músicos haviam se postado em um recanto da sala: a sanfona de oito baixos, a zabumba, o triângulo e o vozeirão deles. O sanfoneiro abriu os trabalhos com Asa Branca. Encheu o salão. Josué agarrava e soltava Emília, quando a música chegava ao verso “quando o verde dos teus olhos…”. Não paravam de rir. Quando tocou “Vem Morena”, Josué segurava a cintura de Emília para vê-la se remexer ao resfolego da sanfona. Nem reparavam nos outros, como se somente eles dois no salão.

Ao som dolente de Légua Tirana, Emília fechou os olhos e foi seguindo os passos de Josué, que aprendera a dançar forró nos bailes de São Paulo. Sentiu a mão dele por baixo da blusinha fina de algodão, alisando as costas da cintura até o pescoço. Por baixo da calça de alvorada, de tecido mais fino que jeans, Josué “armado”. Emília, com a sainha de chita. Braguilha com braguilha. Não dava nem para os dois se desencostarem. Francisco chegou junto, rindo,

– Josué, meu irmão, olha o respeito no salão! Daqui a pouco vão chamar a polícia! Melhor vocês irem pro quarto”.

Voltando à risadaria, acataram a sugestão.

Não era talvez nem nove horas da noite quando se recolheram, cambaleantes. Sem trocar de roupa, sem nem ao menos escovar os dentes, mal tiraram as sandálias, se enfiaram embaixo das cobertas. No dia seguinte, madrugada ainda escura, Josué despertou, levantou-se, e, pé ante pé, ia saindo do quarto, quando Emília,

– Traz água, Josué.

Já na porta, ele fez um gesto que deu para entender que era justamente o que ia buscar.

Resolveram levantar acampamento.

– Sabe o que acho, Josué? Ressaca de cachaça, dessas mineiras, boas, não é tão ruim como a de whisky escocês.

Josué continuava olhando Emília com os mesmos olhos do quintal da casa da avó, no dia em que escrevera as iniciais E e J no tronco retorcido do cajueiro grande. E disse, 

– Meu amor, o estômago é teu único lugar de pobre. De resto, você é rica toda. Até com essa sainha de chita.

– Vamos viajar assim, Josué? Ah, você ficou tão bonito com a calça de Alvorada… Onde conseguiu?

Desconfiou que era de Francisco. Mas Josué nem respondeu, embaixo do chuveiro,

– Vem cá, Emília, deixa eu lavar teu corpo. Vou deixa-lo novinho em folha.

***

Saíram de casa antes das cinco horas da madrugada, ainda escuro. Queriam ver o sol nascer no alto da Serra das Russas.

A longa viagem de volta desde São Paulo trouxera o passado a Emília. O passado nas prosas à beira do São Francisco. O passado no Velame. O futuro, agora, a Deus pertencia.

Começou a passar a mão na coxa esquerda de Josué. Ele enlaçou seu ombro com o braço direito. Estavam no cume da serra. O sol principiava a clarear o mundo. Josué parou a Toyota em um lugar onde outrora, logo que a estrada asfaltada ficou pronta, haviam construído um jardim de cactos, chamado Jardim do Pecado. Emília mirava a Aurora quando o prazer tomou conta de seu corpo.

***

– Você está sorrindo, Emília! Você se parece com a Mona Lisa! Venham ver! Vocês que viajam para apreciar o tesouro que Leonardo da Vinci deixou para a humanidade. Venham ver de perto esse sorriso oblíquo que Machado de Assis botou no rosto de Capitu. Como você é bonita… Pudesses entrar nos meus olhos na hora em que gozas… As estrelas do céu descem em teu benefício e teus olhos brilham mais que todas juntas. Brilham mais que esse sol de fogo que acaba de nascer! Teu grito primal, Emília, é a tempestade da sexta sinfonia de Beethoven em campo aberto de pastores de ovelhas.

– Agora, que te perdi para sempre, sei que foste a minha única mulher. Para quem sempre retornei – minha casa. Aonde agora o meu desejo, levado para sempre nesse sorriso?

– Tu não morreste, Emília, por doentinha, como blasfemava dona Heloísa. Morreste de morte gloriosa! Serás velada pelos teus amigos com esse sorriso nos lábios de quem careceu somente atravessar da pequena para a grande morte?

– E agora, Emília? Terei que devassar os segredos de teus cadernos?

FIM

Emília

13. A terceira margem do rio

Não existe nada melhor para uma boa prosa do que preparar uma moqueca, aos golinhos de uma fina cachaça. Na falta de um tacho de barro, usaram uma frigideira velha. Josué trouxera um pedaço da cabeça e postas de Dourado, o peixe mais bonito e mais saboroso do rio São Francisco.

O filho do pescador Bartolomeu voltava às suas origens. Fez amizade com Seu João, que morava com a mulher e uma enfieira de meninos. Um caboclo atarracado, musculoso, ombros largos, a pele branca esturricada pelo sol e uns olhos azuis que não se mostravam à primeira vista. Grande contador de histórias do rio São Francisco. Nunca saíra daquele fim de mundo para lugar nenhum. Conhecia a “rua”, como se referia a Terezinha de Jesus.

Nos sete dias que passaram hospedados nas casinhas de boneca, Josué foi duas vezes pescar com Seu João.

– Eu, por mim, Emília, não saía mais daqui. Gostei dessa vida. Quem sabe, compramos essa pousada do Pablo e reabrimos em grande estilo?

– Como compramos? Você não se lembra da conversa com ele? Nada disso pertence a Pablo, Josué. Ele pode, sim, é levar um belo chute na bunda a qualquer hora em que a mulher, com o trapezista, resolver voltar pra cá. Já pensou? E eu acho é pouco. Com essa arrogância portenha, foi passado pra trás por uma baiana.

Emília fazia tricô, Josué pescava… Nunca haviam conversado tanto. Josué soube de Gabriel e de Pantélia. Deste não guardou rancor. Mas de Gabriel…

– Eu só não entendo, Emília, como você não se deu logo conta de que esse maloqueiro não passava de um malandro. Não houve uma santa alma para te alertar sobre isso, minha prima?

– Um dia, Maria, que estava em São Paulo, foi jantar conosco. Gabriel caprichou em uma receita de tagliatelle alla crema di limone e pepe verde.

– Além de malandro, o maloqueiro ainda era metido a besta.

– Para, Josué, deixa o coitado em paz.

– Você não soube mais dele, Emília?

– Graças a Deus, não. Sumiu na poeira. Pois bem, nesse jantar lá em casa com Maria, Gabriel se desmanchou em agrados, foi super gentil, como sabia ser quando queria. Conversamos sobre jazz, sobre a vida noturna em Nova York, foi uma noitada e tanto. No dia seguinte, Maria me ligou no escritório e fomos almoçar juntas.

– Maria é teu alter-ego. O que ela disse?

– Ela foi curta e grossa. “Você não está vendo, Emília, que esse sujeito está se aproveitando de você?”

– E o que você respondeu?

– Respondi que sim, ele estava se aproveitando de mim. Mas eu também estava me aproveitando dele. O que era verdade. Mas, verdade verdadeira, eu estava era apaixonada. Hoje sei, a paixão é como qualquer outro surto de loucura. Enquanto dura, se assemelha à magia de Mefistófeles: ferro brilha que nem ouro. Foi preciso aquele o ciúme doentio dele ficar insuportável, para eu me afastar de vez. Mas não pense você, Josué, que alguém se deixa enganar assim à toa. Não sou santa. Só eu sei o quanto fiz daquele Gabriel gato e sapato.

– Você é uma pessoa afoita, Emília. Ainda bem que sabe entrar e sabe sair. Esse Gabriel é malandro sim. Mas, nesse ponto do ciúme, não tiro a razão dele. Eu te conheço, Emília, sei do que você é capaz. É só você tomar umas biritas, fumar um baseado, e quem quiser que se cuide. É ou não é?

– Josué, não vamos estragar nossa prosa com esse assunto de Gabriel, de quem você criou raiva sem nem saber da missa um quarto. Se um dia eu morrer antes de você, quando tudo vira história, aí você está autorizado a cascavilhar nos meus diários todos os meus segredos. Como eu já terei morrido mesmo, faça deles o que bem quiser.

– Sai pra lá, Emília, com essa história de morrer. Agora, livres das obrigações que jogamos nas águas do rio Tietê em São Paulo, agora é que vamos viver, meu amor. Espera aí. Vou ao banheiro. Na volta, trago meu cigarrinho.

Emília ficou se balançando na rede e pensando nas palavras de Josué, que a conhecia tão bem, melhor que qualquer outra pessoa. Lembrou-se de uma prosa com a avó, as duas se balançando na rede do terraço da casa do Janga. “Você é de Oxum, minha filha, a deusa da sedução”.

“… eu estava vestindo uma saia justa e uma blusa decotada. Saio para a noite. Sozinha. Escolho a mesa mais próxima aos músicos. Peço uma Cuba Libre e uma pasta, especialidade da casa. Naquela noite, um sujeito de extrema timidez veio se sentar à minha mesa. Já o vira outras vezes naquele clube de jazz. Feio, baixinho, magro, cabelos ralos, cara raspada e um olhar de melancolia. Desses que usam camisa de mangas compridas abotoada na frente, por dentro de calças largas, e, preso ao lado direito do cinto, um molho de chaves. Eu reparava sua boca, que fazia uns vincos para baixo ao falar. Prestava menos atenção ao que dizia do que aos poucos movimentos da boca, como se envergonhada de se mostrar. ‘Seriam seus, aqueles dentes?’ Ele conta de uma festa em que dançava com rosto colado, e logo se desculpa, ‘Por que fui me sair com essa agora? Deve ser por causa dessa música’. O whisky vai abrindo seu sorriso. Sorri, como se tivesse medo de rir. Conhece quase todos os frequentadores, e diz que vários já o tomaram por confidente. Adivinho: foi seminarista. Sente legítimo prazer em me contar a intimidade dos outros, apontando discretamente. ‘Aquele ali é um grande fotógrafo. Sempre o vejo com mulheres fodonas do mundo da moda’.

“O fotógrafo era o homem mais bonito da noite. Nunca o tinha visto antes. Parecia desembarcado de uma temporada de surf no Havaí. Ao fotógrafo, que circulava pelas mesas de câmera em punho, não passei desapercebida. Posta-se em frente ao meu sorriso e ali fica, encoberto pelas lentes da máquina de fotografia. Homem gosta de cheiro de homem. Bastou o fotógrafo se insinuar, o tímido propôs, ‘Vamos?’ Ao que respondi, ‘Bora’.

“De onde menos se espera, daí que não sai nada mesmo. O pau dele não subiu. O mesmo sorriso contido, sem graça. Voltamos a prosear. Deixou os assuntos de confessionário dos outros. Confessou-se. A primeira tentativa de penetrar uma garota mais velha e experiente, ele adolescente, o pau entortava, e a mulher se ria, apontando e dizendo, meio falando, meio cantando, ‘ficou nó pró, ó’. Ficou nó pró, ó’! Tomei a mão dele, pousada ao lado de meu corpo nu, levei seu dedo indicador à minha boca e me pus a chupar. Ele quis dizer algo e eu tapei a boca dele com a outra mão. Depois, levei o dedo todo babado ao meu grelinho. Ele sabia fazer isso. (Uma arte que poucos dominam.) Ao cheirar o dedo impregnado de boceta com um sorriso de satisfação, vi um pedaço de sua dentadura.” 

– E Pantélia, você também se apaixonou por ele?

Emília tomou um susto. Estava em tal devaneio, depois da provocação de Josué, “sei do que você é capaz”, que não percebeu que ele já chegara de volta, com o cigarro aceso e se acomodando na outra rede.

– Não, Josué. Pantélia foi outra coisa. Uma espécie de tratamento de choque, para fazer nascer de minhas entranhas a Emília mulher, sufocada desde o princípio da adolescência por uma camisa de força da religião e do sentido de obrigação.

– Como assim, Emília?

– Conheci Pantélia, Josué, como você bem sabe, no avião da Varig, voltando para o Brasil, depois de semanas e semanas internada em um hospital entre a vida e a morte. Eu vi a morte de perto, Josué. Hoje sei por que todo mundo teme essa indesejada das gentes e faz qualquer negócio, vive mal, se priva de um bocado de vida, contanto que continue vivo. A vida pode não ser boa, pode ser uma merda, mas a gente conhece. A morte é o mergulho no escuro. Mesmo para os que acreditam na vida eterna. Quando chega a hora, não poupa o medo nem dos crentes no paraíso.

– Eu venci a morte, Josué. O cirurgião que me operou também venceu a minha morte, à maneira dele. A vitória da ciência, de sua perícia em aplicar os conhecimentos científicos para salvar vidas. Já salvara muitas criancinhas, os meninos azuis, cianóticos. Meu caso era mais grave: uma jovem adulta. Uma estudante do curso de Direito da mais prestigiosa universidade americana. Mais um título para a carreira. Eu vi a fisionomia de satisfação dele ao apresentar meu caso aos médicos residentes do hospital.

– Para mim, era a vitória contra a minha morte. Eu renascia. O primeiro fio de luz do sol que entrou na enfermaria compartilhada com duas mulheres que só dormiam, deu-me a luminosa sensação de vida. A morte, Josué, é escura. É um corredor escuro que vai levando a gente para mais escuridão.

Josué saiu da sua rede dele e veio para a de Emília. Abraçou-a forte. Emília sentiu as lágrimas escorrendo do rosto dele para o dela. Lembrou-se das lágrimas da avó, no dia em que foi a ela apresentada no Janga, aos treze anos de idade.

Porém, rápido, Josué se recompôs, e disfarçou a fraqueza com uma gaiatice:

– Tá certo, minha ressuscitadazinha. Mas onde fica o negão nessa história?

– Até tinha me esquecido dele, Josué. Voei longe. Como acredito que minhas orixás estão sempre do meu lado, como assegurou minha mãe no dia em que cheguei de volta do Brejo à casa dela no Pina, acho que foi Oxum, a deusa da sedução, quem botou aquele negão em meu caminho. Pantélia não foi paixão, Josué. Foi sedução. Um tesão do tamanho do mundo, para despertar uma Emilia, filha legítima de Oxum, que um dia se encantou pelo primeiro Xangô que apareceu na sua vida, sumido na poeira das estradas com destino a São Paulo. Pantélia também devia ser de Xangô. O fogo que nos envolveu durante aqueles dias no Brejo…

– Por favor, querida, poupe-me dos detalhes.

Foram dormir naquela noite mais amorosos do que nunca. Viver o amor é sereno, sem os arroubos da paixão. E foder com amor é a grande ventura dessa vida.

xxx

– Josué, meu nego, você levante as mãos para o céu, que até hoje nenhum médico ainda inventou de tirar fora tua próstata.

– Emília, você a vida inteira careceu dessa raça por causa de teus problemas do coração. Mas eu? Qualquer coisa, procuro aquele médico homeopata a quem te apresentei, ele manda eu tomar as mesmas bolinhas, pronto, tá resolvido. Na última consulta, recomendou-me ir a um especialista, por causa da idade. Fui. E fiz aquele exame que os homens dizem detestar, certamente por medo de gostar. Taí, um medo que não tenho. Meu negócio é bo ce ta. Mas um colega meu fez essa cirurgia e disse, numa roda de amigos, que em nada afetou sua sexualidade.

– Mentira, Josué!

– E como é que você sabe? – Josué fez aquele sorrisinho no canto da boca que Emília conhecia bem – Vai, conta logo, minha prima. Você, heim? Lá no Janga se dizia de gente assim, “rede de arrasto”.

– Houve um que adorava falar, contar seus feitos de um passado que ele considerava glorioso. Enrolou enquanto pode, sem ir às vias de fato. Quando finalmente fomos para a cama, ele me fez gozar rápido com a língua. Depois, quando olhei, cadê? Aí ele me confessou da cirurgia, mas com a mesma prosa de teu colega. O caralho, que não afetou!

– Nossa, Emília! Nunca te ouvi dizer palavrão. Bom, esse pelo menos está no contexto apropriado da frase. Sim, e depois?

– Depois ainda ficamos namorando uns meses. Ele era um sujeito de mente aberta, topou até usar brinquedinhos junto comigo, e, de outras formas, eu gozava.

– E ele?

– Ele dizia que gozava para dentro.

– E você acreditou?

– No começo, sim. Depois, fui percebendo que, na verdade, ele fazia sexo mais para me agradar. Quanto mais fomos ficando próximos, mais ele perdia o interesse pela brincadeira. E, você sabe, não é Josué? Ainda não inventaram brincadeirinha melhor para gente grande.

– Houve outros, Emília? Já que começou, agora vai até o fim.

– Deixa eu me lembrar… Ah, sim! – e Emília ria – Um que resolveu dar continuidade a uma conversa principiada na negociação de um projeto. Marcou um dia para ir à minha casa. Percebi que era apenas um motivo para outras intenções. Era um homem atraente, inteligente… Topei. Estávamos mansamente tomando café com pão de queijo, quando ele se levanta e me taca um beijo na boca, assim, de repente. Eu sentada, com um livro aberto em cima da mesa. Disse então da atração que sentiu por mim desde o primeiro momento, mas que tinha uma promessa de fidelidade com a esposa. Uns três ou quatro encontros depois, depois de muita conversa, troca de livros, de textos, ele propôs cama. Não foi algo que aconteceu naturalmente, como teria sido após o beijo. No dia daquela proposta de cama, não falou mais do tal pacto de fidelidade. Mas foi um desastre. Quando perguntei, escolada que já era, ressaltou: “mas levo uma vida sexual normal com minha mulher”. E ainda tive que ouvir, “você não sacou meu corpo”. Não fosse por comiseração, teria respondido, “Não é isso, querido. Faltou caralho”.

– Que coisa, Emília! E por que não disse? Caralho nessa frase senta ainda melhor. Bem que esse safado merecia ouvir isso. Bom, digo assim… mas eu acho é pouco, para você não ser tão devassa, Emília! Bem feito! Que coleção, heim? Dá pra escrever um tratado sobre o assunto. E não faça essa cara sem vergonha, Emília. Tenho dó desses coitados.

– Mas não são todos coitados não, Josué. Na minha seara também apareceu um judeu inteligente (O que é redundante. Já viu judeu burro?), mais velho que eu, de uma conversa irresistível, escritor, meio louco. Conhecemo-nos em uma viagem minha fora do Brasil. Ir para a cama com ele, foi a decorrência natural de um jantar num daqueles restaurantes maravilhosos de Lisboa, daqueles cujo prato do dia é afixado numa folha de papel de embrulho na vitrine de peixes e crustáceos. Era um Xangô irresistível a Oxum. Fomos para a cama ao primeiro dia em que nos conhecemos, depois desse jantar regado a muito vinho do Alentejo. Esse não fez mistério nem tentou uma desculpa esfarrapada. Quando toquei no seu sexo em posição de descanso, retrucou, “não espere dele grandes feitos”. Sua libido estava para além do membro sexual, que, para grande parte dos homens, é um fetiche.

– Que história é essa, Emília, de “membro sexual”? Agora você fala dele toda cerimoniosa, usando termos médicos… Eu, heim? Fetiche? O meu não. O meu é só caralho mesmo.

– É. Você até que é bem normalzinho, Josué. Mas já namorei um cara cujo pau tinha nome. Se pudesse, daria até sobrenome. Bom, esse foi o mais exagerado, nesse culto ao pau. Porque dar nome próprio ao caralho, não foi só esse. Você já viu alguma mulher nomear a boceta, Josué? Isso é coisa de homem.

Josué mantinha aquela concentração professoral que Emília já conhecia de longa data, de ouvir atentamente um assunto, como se estivesse em seminário dos alunos. Não percebeu nele nenhum ciúme. Ou ele disfarçou bem. A prosa era filosófica, existencial, e, nessas, tinham longa estrada, desde as noitadas no entorno da Maria Antônia.

– Você sabe o que penso sobre isso, Emília? Sou suspeito, porque não gosto dessa raça de médicos. É muito triste o que a medicina anda fazendo com os homens, com essa fixação em câncer de próstata. E estamos apenas principiando um novo milênio. Escreva o que vou dizer, Emília: isso interessa à indústria farmacêutica, como outros tantos cânceres. É prato cheio para as radioterapias, as quimioterapias. Essa febre de cirurgia de próstata vai se alastrar como praga, como vírus, ouça o que estou dizendo. Esse é o verdadeiro mundo cão: os laboratórios mandando nos destinos da pesquisa científica, da medicina… Pois não são eles que financiam os faustosos congressos médicos? Vai ver como é um congresso de sociólogo… Eu, por mim, não tenho dúvida: prefiro viver menos tempo, fodendo; do que viver mais tempo, broxa.

– E sabe o que mais, Emília? Isso deve ser um complô das igrejas com a medicina, depois da grande descoberta do Século XX, o Viagra. Essa azulzinha veio para ficar. Voltou à ativa um monte de pica que andava fora de uso. Antes, uns diziam, para se consolar, “enquanto existir língua e dedo, de mulher não tenho medo”. Conversa pra boi dormir. Têm medo sim. Qual homem não tem medo de mulher? Então as igrejas, que fazem de tudo para evitar que a humanidade desfrute do prazer, junto com a indústria farmacêutica, que quer lucrar a qualquer custo, espalharam a cirurgia de próstata.

– Meu Deus, Josué! Quanta profecia! E tudo isso cheira a um maniqueísmo… Não é de hoje que você inventa teorias, tiradas da cartola, assim, de repente. Seu encantador de serpentes!

Josué já pulara da rede e estava em pé. Emília levantou-se também e voltou com um pedaço de pau encontrado embaixo de um coqueiro – Fica aí onde está, Josué, não se mexa. Assim. Fazendo discurso, levantando os braços. Pega esse pau e repete a tua previsão catastrófica para o século XXI, com esse cajado na mão.

– Filha da mãe! Você está querendo me fantasiar de Pantélia no lajedo da tentação de Cristo? E tem mais, Emília. O novo milênio, que mal principiou, trará na sequência o século do medo. Medo do câncer. Medo da doença. Medo de ser assaltado na rua. Medo de perder o dinheiro. Medo dos imigrantes. Para os desvalidos das periferias, medo de ser assassinado. Os meios de comunicação em redes sociais, em livre expansão, serão o veículo ideal para difundir a civilização do medo.

Josué voltou para a rede e Emília foi se encolher junto dele. Ficaram na brisa que chegava do rio São Francisco, numa modorra boa, para um lado, para o outro, o pé de Josué encostando cada vez mais, cada vez mais, no coqueiro onde estava armada a rede… Emília deve ter dado um cochilo. E talvez sonhado. Quando abriu os olhos, Josué continuava balançando a rede, e ela prosseguiu na prosa, como se não tivesse havido interrupção,

– Sabe, Josué? Eu acho que, tirando o exagero, você tem razão nessa tua maluquice do complô das igrejas com a indústria farmacêutica. E veja, Josué, estamos falando aqui do bicho homem, que continua mandando no mundo. Agora, você imagine com o bicho mulher? Quando eu entrei na menopausa, principiavam as discussões sobre reposição hormonal. Havia mais restrições do que apoio à descoberta, tão revolucionária quanto o Viagra para os homens. Nesse caso também, logo apareceram os fantasmas: câncer de mama, de ovário, o diabo a quatro. Os hormônios, Josué, não respondem só pela libido do sexo, mas da vida, do desejo.

– Você nunca parou de fazer reposição hormonal, Emília? Mesmo com esse coração bichado, remendado?

– O que você acha, Josué?

– Eu não acho nada. Só sei que tua boceta não deve nada a de qualquer garota nova. Molhadinha. Gostosa.

– É. Mas tome tento. Da última vez estava lambuzada de estrógeno. “Eu não digo nada”, como gostava de dizer Fausto, um maluco beleza do Velame. Quando você começar a falar fino…

– Emília, agora vou dizer uma coisa séria. Você é uma puta mulher! Saiu daquele curso vagabundo de Ciências Sociais do Recife, e foi para o topo do mundo, em São Paulo. Teria brilhado mais se tivesse feito carreira acadêmica…

Emília não o deixou terminar a frase,

– Seu presunçoso, branquelo da USP!

– Porém, prima, o que você fez a vida inteira, digo, profissionalmente, foi de muito mais valia. Preste atenção, Emília. Você dedicou a vida a tentar assegurar os direitos básicos aos cidadãos do mundo. Quem tem os direitos, vence a fome e a miséria, já dizia Amartya Sen. Mas sabe, Emília, onde você é insuperável? Aquele maloqueiro exagerou na dose, ao falar aquelas bobagens saídas da tara dele. Mas uma certa razão ele tinha: você não é apenas uma puta mulher, Emília. É puta mesmo.

Josué acendeu mais um cigarro. Parecia estar olhando para muito longe, sem ver sequer a outra margem do rio São Francisco. Chegariam ao outro lado? Ou ficariam aonde estavam? Na terceira margem do rio?

– Você fala que fui contaminado pelo vírus das teorias. E você? Se enxergue, mulher. Você, nos devaneios da fumaça, quando principia a momentear, é mestra em teorias. Você virou maconheira de vez, Emília?

– Acho que sim, Josué. Você não quer ser também? Muito melhor que esse veneno da Souza Cruz.

– Querida, eu já sou maluco ao natural. Mas me conta, aqui nessa beira de rio, que nem terá tempo de se lembrar do que ouviu, porque vai na sua pressa de filho para encontrar Iemanjá. Me conta tudo. Sei que você principiou com aquele negão. E nunca mais parou?

– Você sabe muito bem que a vida não é assim, Josué, linear. A vida é cheia de curvas. Não vê o São Francisco? Vai ali, andando a seu passo sossegado, moleirão, quando, de repente, recebe um afluente. Aí é aquele desmantelo, abre espaço para caber mais um, peixe comendo peixe… Minha vida deu muitas voltas, Josué, você sabe disso. Em várias, não cabia o devaneio.

– E os efeitos colaterais? Um deles, por exemplo, me ataca forte, a secura na boca e na garganta.

– E as drogas de farmácia? Também não têm efeitos indesejados? Houve um tempo em que tomei diurético. Retirava potássio do organismo. O médico receitou então uns comprimidos para repor o potássio. Recentemente lançaram no mercado saliva artificial. A falta de cuspe é muito danosa para os dentes. Os laboratórios não pensaram nos maconheiros quando inventaram isso, claro, mas sim nos velhos, pois também é comum aos idosos ter menos secreções.

– E também muita água, Josué. Isso aprendi com Pantélia. Quartinhas d’água. Veja que efeito colateral bom: te estimula a beber litros de água por dia. Em vez de você tomar água por obrigação, toma porque tem vontade, o corpo pede. Bebe água com prazer, sentindo o gosto bom da água cristalina. O principal benefício da maconha, Josué, é esse: ela te ajuda a substituir o princípio da obrigação pelo princípio do prazer.

– E você fuma todo dia, Emília?

– Todo santo dia, chova ou faça sol. Para mim, é como se fosse mais uma droga na minha cestinha de remédios. Está vendo esse cigarro? Ele dá em média para três dias. E às vezes, quando estou com alguma irritação na garganta, substituo os tragos por um mingau batizado. Demora mais para chegar à corrente sanguínea, pois vai passar pela digestão, mas, em compensação, a viagem é mais longa. E mais suave também.

– Vem cá, minha nega. Eita, que essa mulata quando fuma um baseado, dana-se a fazer teorias, mais do que os que ela tanto esculhamba, os branquelos da USP. Deita aqui. Isso. Pode se enroscar mais. Eita cheiro bom nesse cangote…

Mas então Emília pulou de novo da rede, agarrou o pedaço de pau que servira de cajado de Antônio Conselheiro, e continuou a prosa,

– Você já se deu conta, Josué, que esse ano completamos, você antes, claro, você é seis meses mais velho do que eu, completamos sessenta anos? É a entrada no que andam chamando por aí de melhor idade. Se é para ser melhor, meu nego, só tem um jeito: fica decretado, faz parte do pacote da aposentadoria. Na melhor idade, está liberado o consumo da cannabis. Já pensou, Josué, que maravilha? Se é para não trabalhar mais, se já deu sua cota, seja aos sessenta, seja aos setenta… que então deixe de vez a obrigação em favor do prazer. Já pensou a alegria em volta de uma piscina aquecida num asilo de velhinhos?

(continua no próximo domingo)

Emília

12. Esse rio é a primeira porteira de casa.

Emília se dava conta que há onze anos Josué sumira de vez de sua vida. Para não sofrer, acostumara-se a viver como se ele não existisse. Mas nunca o esqueceu – por mais aventuras amorosas que tivesse tido na vida. E teve. Quando a gente sente muita saudade de uma pessoa, dessa saudade que dói, o que a gente faz? Procura estar perto de alguém que nos lembre essa pessoa.

Sílvio continuava garçom na mesma padaria. Desde que viera morar em São Paulo, em 1965, Emília criara vínculos com esse garçom que ultrapassavam o ambiente da padaria. A mulher dele, Mariazinha, era a fiel faxineira de Emília todos os sábados, o dia da feira. Além da limpeza da casa e das roupas, arrumava com perfeição folhas, legumes, frutas e peixes nas bandejas e na geladeira.

Há mais de um ano Emília não via a cara de Sílvio. Era um princípio de maio de céu muito claro – o outono paulistano. Saíra mais cedo do escritório. Pelo meio da tarde, chegou à padaria. A mesa da calçada onde costumavam sentar ela e Josué estava desocupada. Nem careceu Sílvio entabular diplomacia, como de outras vezes, para cedê-la a Emília. Naquele ano de 2001, aos 70 anos, cabelos e bigodes brancos em uma cara que parecia a mesma, porque o mesmo era o sorriso aberto com que atendia à freguesia, Sílvio desfrutava de privilégios de antiguidade com os patrões da padaria.

Quando viu Emília chegando, já conhecia aquela tristeza estampada no rosto dela. E, mesmo constrangido, mas sabendo da cumplicidade dos colegas, aceitou o convite dela para sentar-se à mesa. Tirou o avental, o pano do braço, e se sentou. Emília era para Sílvio quase como uma pessoa de sua família, que acompanhava com palavras de estímulo, ou até mais que isso, cada filho no colégio, o casamento da filha, depois os netos… Para ele, “Dona Emília é uma pessoa ‘sem bondade’, que trata igual ricos e pobres. É do mesmo time de Josué.”

Enquanto Sílvio bebia água mineral com gás e uma rodela de limão, Emília entrou de sola na mistura Noel Rosa – cerveja e cachaça mineira. E ainda pediu um maço de Continental sem filtro, que detestava, e do qual fumaria apenas um cigarro, em memória do “falecido”. Compartilhou o réquiem com esse amigo velho. E Sílvio lhe explicou que já não havia cigarros sem filtro, e assim mesmo ela quis, e lembrou que, na última vez em que estivera nessa mesma mesa com Josué, ele havia cortado o filtro do cigarro para fumar como antigamente, o que ela também fez agora. Foi nessa mesa da padaria que Sílvio soube que dali a poucas semanas Emília completaria sessenta anos. Soube do sonho que ela tivera na noite anterior, o mesmo de sua tia Nenê a trinta em seis anos passados; soube que há onze anos Josué sumira de vez da vida dela; e que agora ela resolvera ir sozinha buscar o assentamento de Oxum no Janga, no terreiro da avó. Quando as outras mesas começaram a ter freguês, Sílvio levantou-se, deixou Emília sozinha, e encomendou ao companheiro do balcão uma tortinha de morango e uma garrafa de água mineral. Discretamente, quase cochichando, enquanto lhe servia a sobremesa de um almoço que não houve, “Come tudo, cumade. A senhora passou da medida. Carece de glicose e de água antes de voltar pra casa”.

Mal abriu a porta de casa, Emília viu o bilhete no chão: “aonde é o carnaval?”

Josué só chegou na madrugada do outro dia. Com pão quentinho da padaria numa mão, e na outra uma mala grande. Deixou Emília segurando a porta, com cara de besta, e, como se nunca tivesse ficado um dia ausente daquela casa, foi direto à mesa, na qual colocou o saco de pão e deixou a mala no quarto de Emília. Veio então na direção dela, sorrindo apenas com os olhos de jabuticaba, quase cerimonioso. E carregou-a nos braços, como fazem os noivos ao entrarem no quarto de hotel no dia do casamento.

            “Te amo, Emília. Você é a mulher da minha vida. Para sempre.” Emília não fez declaração de amor. Disse apenas, “Vamos nos preparar para ir buscar o Assentamento de Oxum no Janga e trazer para São Paulo. Essa é a missão que nossa avó nos confiou.”

            Josué acabara de se aposentar. Como funcionário público, o salário sofrera até um pequeno acréscimo, de quinquênios acumulados. Já Emília, se aposentada, receberia a ninharia do INSS. Porém, de seu curto período morando num Bad & Breakfast de Brookline, na região metropolitana de Boston, aprendera duas lições para a vida: nunca mais teria empregada doméstica “brazilian style”, como na casa dos pais adotivos no Velame; e acumularia dinheiro para a velhice. A dificuldade dela não foi conseguir a melhor negociação de demissão, mas sim convencer os diretores de que realmente a decisão era irrevogável. Não se conformavam em perder alguém que, até então, e desde o começo, estivera junto com eles dois nas decisões estratégicas, à frente das negociações mais difíceis, sem nunca ter perdido uma sequer.  

            Os preparativos para a viagem demandaram mais tempo do que imaginavam os dois pombinhos. Antes de tudo, careciam de um carro potente para enfrentar as estradas, logo saíssem de São Paulo para as rodovias brasileiras. Na compra da caminhonete, Josué fez uma economia desnecessária para o rico dinheirinho de dona baratinha.

***

            – Por que, Emília, ficamos afastados esse tempo todo? Onze anos é nossa maldição? Você se lembra? Antes? Nunca mais de um ano. Dois, se muito. Você sempre foi meu porto, Emília, para onde eu retornava dos desencontros da vida, das noites escuras…

– Algum laço se rompeu e somente agora conseguimos reatá-lo. Coisas da vida, Josué. Não lamentemos. Onze anos é o tempo de envelhecer um vinho bom. Também eu te procurei em momentos de precisão. Ou você se esquece que esteve comigo na Ponte de Safena? No Marcapasso?

Josué e Emília chegaram à Rodovia Dutra cansados, pois haviam ficado em arrumações infindáveis até o último momento. Saíram de casa já com o sol a pino, contrariando o plano de madrugar na estrada. Escolheram para dormir o primeiro motel que apareceu. Lá serviam lanche no quarto. Pediram os únicos sanduíches disponíveis da lista do cardápio, uma garrafa de água mineral com gás, dois copos e duas taças. O vinho, traziam no farnel da caminhonete, meticulosamente preparado para a viagem. Não havia taças no motel. Tomaram o vinho em copos de plástico descartáveis. Desligaram o ar condicionado e abriram a janela que dava para a Dutra. Melhor o barulho dos motores de caminhão e o ar poluído da rodovia do que o barulho e o ar poluído daquele velho aparelho que nada esfriava.

Depois que a lassidão tomou conta dos corpos saciados, o ombro de Josué fez Emília esquecer até o cheiro dos lençóis curtos de uma cama mal forrada. Estava ali com Josué, para os agrados do depois, pelas mãos calosas de Maria Emília e o cheiro de sabonete Phebo do doutor Juvenal. O murmúrio de Josué nesse depois… Ah! Como era bom ter de volta!

Emília não lembra a hora em que pegou no sono. No meio da noite, levantou-se para ir ao banheiro. Estava nua.

– Emília?

– Te acordei, meu amor?

– Meu amor… Que delícia ouvir estas palavras da tua boca! Vem cá, meu amor. Deita aqui, embaixo das cobertas.

– Estou indo fazer xixi e lavar os restos do amor, Josué.

– Tá certo. Mas volta. – “Por que diabo essa mulher não se aquieta e fica comigo para o resto da vida? Por que foge, a danada? Por que nenhuma das outras que passou em minha vida preenche o lugar dela?”

– Já te disse isso, Emília?

– Espera aí, querido. Com o barulho da água correndo da torneira, não te escuto.

– Pronto, Emília? Boceta limpa? Lavou, tá nova.

– Eu estou é descadeirada, Josué. Não vou entrar debaixo dos lençóis, nada. E você, você vai é fazer uma massagem nas minhas costas. Mas não é massagem de safadeza não, viu? Aqui, Josué, na lombar. Assim, aí mesmo.

Acordaram de madrugada com os gritos de uma mulher no quarto vizinho. “É fake, Josué”.

Já eram nove horas da manhã quando tomaram café num daqueles restaurantes ascéticos, que iriam sumir da estrada logo saíssem de São Paulo. Pão de queijo, suco de laranja e cafezinho. Dentro de Emília habitava uma felicidade que passava ao largo do feio daquele restaurante de plástico. “Viajar com Josué, caminhar com Josué, estar com Josué, é a felicidade”, pensava. Depois, no carro, já atentos à saída à direita da Dutra que daria em Volta Redonda, onde pegariam a BR 116 (a Rio-Bahia), Josué retomou a prosa que duraria por toda a viagem.

– Sabe, Emília? Ontem eu olhava teu corpo nu, quando você deixou a cama indo para o banheiro. Você caminhando sem pressa, na passarela daquele motel vagabundo. Fiquei apreciando de camarote teus quadris se balançando, se mostrando como Deus criou. A tua cintura de pilão, para quem Luiz Gonzaga e Zé Dantas compuseram uma música. Essas mãos delicadas de quem nunca precisou pregar um prego na parede. Essa barriguinha que não saiu do lugar depois de ter abrigado um bebê. Essa floresta de prazeres onde tantos já se perderam…É engraçado, Emília, como você não se dá conta do teu poder de encantar os homens. Você às vezes passa distraída, e eu observo os olhares dos homens. Ainda hoje, naquele restaurante da Dutra…

– Ali só havia motoristas de caminhão, Josué. Eles espiam para qualquer rabo de saia.

– Você não sabe o que é homem, Emília. Aliás, não só você. Mulher nenhuma entende de homem.

– E vice-versa, não é meu primo?

– Sim, e vice-versa. Homem é bicho safado, Emília. Quando olha para uma mulher, vê a fêmea. No teu caso, como não ver? Você caminha lânguida, como quem desfila numa passarela. Mesmo num restaurante self service como aquele. Pernas bem torneadas, como gostava de dizer tua tia.

– Tia Nenê falava isso?

– Minha mãe tinha muito medo que a gente se apaixonasse, se casasse. Era a paranoia de nossa família: filhos de primos sairiam com algum defeito ou, pior, doidos. Mas ela era doida por você; acho até que gostava mais de você do que de minhas irmãs.

– Não exagera, Josué. Mas o que mais ela dizia de mim? Agora estou curiosa.

– Ora, Emília, ela constatava o óbvio, não era cega. Nem precisa dizer que, no fundo, comparava você com as filhas. Você mais bonita de rosto e de corpo, tal qual tia Maria, a mais bela das quatro irmãs.

– Josué, tia Nenê não era invejosa. Não diga isso de sua mãe.

– Não, Emília, entenda. Ela não tinha inveja de você nem da irmã. Filha de Iemanjá, minha mãe sempre foi a grande mãe que a todos acolhia em seu colo generoso. Mas isso não a impediu de reconhecer e, digo mais, até se regozijar, com a beleza tua e da tia Maria. Vi pelos olhos daqueles homens do restaurante onde tomamos o café da manhã. Você é a mais legítima mulata brasileira, Emília. Bunda redonda, grande, que se mexe com perfeição a cada passo. E, como se tudo isso não bastasse, ainda tem a boceta capô de fusca.

– Capô de fusca, Josué?

– É o que já te disse, querida. Homem é bicho safado. Aprendi isso numa prosa regada a chope na padaria do Sílvio. Passava uma mocinha com calças compridas muito justas. Um deles comentou: lá vai uma capozinho de fusca. É dessas bocetas salientes, sabe, Emília? Que se mostram através das calças compridas que hoje em dia se usa muito para caminhadas e academias. A boceta capô de fusca é a mais valorizada.

– Credo, Josué!

            – E você, Emília, mesmo que esteja envolta em um capote, os homens adivinham essa bunda pelo teu andar manso. Já te vi comer depressa, até trepar depressa. Mas nunca te vi, Emília, andar depressa. Você sempre caminha desfilando numa passarela. Agora pense, Emília, essa mulata com um vestidinho de alça… Sem sutiã…

– Tira a mão daí, Josué! Você está dirigindo! Em velocidade!

– Sem sutiã. E você é safada, Emília. Nisso, você não perde para os homens. Ou você pensa que eles não imaginam que, assim como está, sem sutiã, também não estará sem calcinha? Ah, Emília, como eu queria ser o dono dessa mulher, prendê-la em meu quintal, fora de todos os olhares, de todos os desejos, só minha!

– Sai pra lá, Josué! Não quero ouvir essa prosa. Costuma nos afastar.

***

Emília e Josué já haviam percorrido mais de dois mil quilômetros de estradas. Desde que entraram na Rio-Bahia, haviam enfrentado alguns trechos péssimos. De repente, o asfalto sumia. Perto de Jequié, ônibus, automóveis, caminhonetes, caminhões, tratavam de se livrar de buracos, alguns, verdadeiras crateras, cheios de água de chuva barrenta. Nesses trechos, não se obedecia a mão nem a contra mão; era um salve-se quem puder. 

Viajavam há cinco dias e não tinham pressa em chegar ao destino. Quando entraram em Sergipe, começaram a contar quantos quilômetros até chegar a Propriá, às margens do rio São Francisco, limite com o estado das Alagoas. O Velho Chico é orgulho de todo nordestino. Ao avistá-lo, Josué parou a caminhonete num acostamento. Desceu, arrodeou o carro e veio dar a mão para Emília descer. Ali se abraçaram. “Esse rio é a primeira porteira de casa, Emília”. Ao atravessarem a cidade, Emília pensava, “Por que não seguimos por essa estradinha, fora das grandes e péssimas rodovias? Assim sem destino, até encontrar um pouso minimamente decente onde dormir? Por que não amanhecemos espiando esse mundão de água doce?”

Josué adquirira há muito o mau hábito de adivinhar os pensamentos de Emília. Tomou uma estradinha secundária e seguiram sem mapa. O primeiro povoado que encontraram era de uma pobreza de Jó. Uma única rua calçada de paralelepípedos, terminava em uma pracinha sem cimentados, sem gramados, em chão batido, com canteiros floridos e bancos sombreados por árvores. Dessas praças em que o prefeito ainda não tivera verbas federais (de alguma emenda parlamentar de deputado) para estragar. Nessa rua, algumas lojas, uma bomba de gasolina, e uma igreja de telhado alto e bancos duros. Ali Josué parou a Toyota, adivinhando que Emília iria querer rezar as três Ave Marias. Uma velhinha de véu na cabeça rezava o terço, ajoelhada no banco da frente. O chiado de seus lábios era ouvido até no terceiro banco, onde Emília também se ajoelhou. Depois, aproximou-se dela para as primeiras informações. A velhinha falou primeiro da igreja, com o orgulho de um guia turístico que mostrasse a Catedral de Notre Dame em Paris. Nossa Senhora da Conceição, padroeira da cidade, tinha a ela dedicado o altarzinho do lado direito, enfeitado com flores de plástico coloridas e sujas de cocô de mosca. No altar do lado esquerdo, outra imagem de santa, que Emília não reconheceu, e soube ser da segunda padroeira da cidade. “Sim, dona, porque essa cidade, em outros tempos, foi só essa igreja, construída em pagamento a uma promessa à mimosa Santa Terezinha do Menino Jesus. Por isso a cidade ficou sendo chamada de Terezinha do Menino Jesus”. E Emília pensou, “esse minúsculo povoado, com duas padroeiras”.

Enquanto Emília interrompia o terço da velha, Josué abastecia o carro e se informava com o bombeiro onde poderia encontrar uma oficina. Era inacreditável, mas havia sim, uma. Depois de abastecida, a Toyota só pegou no tranco. Foram dali direto para a oficina. Mal Josué freou a caminhonete, como adivinhando que chegara ao lugar certo, a amarelinha morreu de vez. Emília deixou Josué conversando com o dono do pequeno estabelecimento e foi dar uma volta a pé pelas treze ruas da cidade. Quando retornou, já havia o diagnóstico: problema no motor. Teriam que mandar buscar a peça em São Paulo, sem previsão de tempo para chegar. “É o que dá comprar carro de segunda mão”, pensava Emília. Mas agora era tarde. A Toyota, aparentemente em bom estado, possivelmente teria sido usada previamente para participar de rallies, conforme supôs o esperto dono da oficina. Um senhor de uns cinquenta anos, que falava todo o tempo com um tique nervoso de levantar o ombro direito, como se quisesse levantar voo com uma única asa.

Vendo as bagagens, informou que a hospedaria da cidade era precária, e sugeriu a pousada de um estrangeiro meio amalucado, mas num lugar aprazível, distante dali três quilômetros. Emprestou o carro dele para Josué colocar as tralhas e ir até lá deixar a patroa arrumando as malas.

Não foi difícil encontrar o local, com as indicações do muro pintado de verde e coberto de Bougainvilleas. A campainha não funcionava. Bateram palmas. Nada. Emília empurrou o portão, que estava apenas encostado. Deixaram o carro na estrada e foram entrando. Não havia cão de guarda, felizmente. Depois de um terreno de uns quinhentos metros, com alguns restos de grama, coqueiros, palmeiras, pés de jambo, seguiram na direção de onde vinha o som de um bandoneón tocando La Cumparsita. Só ao chegar perto da casa onde tocava o tango, viram, à direita deles, cinco pequenas construções, parecendo casinhas de bonecas, com telhados apropriados para receber neve.

Pablo era o nome do moço que os recebeu à soleira da porta, com uma cara de quem, a última coisa que gostaria de fazer, era receber um hóspede. Já devia estar adiantado nas doses de whisky, porque cambaleava quando conduziu os dois à primeira das minúsculas casinhas. Teto de madeira alto no topo, baixinho nos lados, cabendo apenas a cama de casal. “E onde colocamos nossas malas?” Ele olhou com má vontade para Emília, caçou no bolso o molho de chaves, e conduziu-os à casa de bonecas vizinha. “Cá podem baixar as vossas bagagens.” 

Aos poucos, ficariam sabendo um pouco da história do dono dessa pousada. Argentino, legítimo portenho, meio hippy. Apaixonara-se por uma baiana, numas férias em Itapoã, na Bahia. Largou tudo em seu país, e fora com ela tentar a sorte nessa terra que a baianinha herdara do pai. Em Buenos Aires, trabalhava como engenheiro civil. Junto com a mulher, resolveram abrir a pousada. E deram com os burros n’água. Primeiro, porque nenhum dos dois tinha experiência prévia no ramo nem gosto pelo negócio. Pablo entendia de construção. E segundo, porque a baianinha separou-se dele em menos de um ano de casados, fugindo com o trapezista de um circo que se hospedara com toda trupe na pousada. O portenho já havia investido muito na construção da casa onde moravam, nas cabanas, na infraestrutura de banheiros e cozinha. Enquanto a família da sua mulher não viesse reclamar a propriedade, ele ia levando, curtindo uma dor de cotovelo que atacava principalmente nos finais de tarde, aplacada com whisky e jazz de primeiríssima, permeado por tangos dolentes.

Na verdade, a pousada foi um achado. Josué voltou para devolver o carro e Emília ficou arrumando as malas na cabana que funcionou como closet. Haviam chegado a essa pousada no dia 15 de junho. Em estradas boas, teriam avançado mais. Porém, até ali, haviam conseguido apenas uma velocidade média de 400 quilômetros por dia, a Toyota farrapando aqui e acolá. Esperou apenas chegar às margens do Velho Chico, para pifar de vez. Menos ruim. Estavam em um lugar lindo! A pousada, projetada inicialmente para ser área de camping, tivera seu tempo áureo, malgrado a incompetência dos donos, quando Pablo resolvera empregar parte dos lucros para construir as cinco casinhas para casais mais velhos, que reclamavam do frio à noite. O muro era apenas o que dava frente para a estrada. Toda a área do lado esquerdo, onde estavam as casinhas de boneca, situava-se às margens do rio, sem outra visão que o correr das águas. Enquanto Emília se movimentava de uma cabana a outra, forrando a cama, separando as roupas em cima dos dois beliches do “closet”, viu que Pablo armara uma rede entre dois coqueiros. Parou tudo e fui se deitar lá. O estômago começava a reclamar. Já passava das duas horas da tarde e Josué não chegava. Ali, naquela pousada, certamente não teriam refeição alguma. Nenhum cheiro de comida. Nenhum serviçal à vista. Pablo não era dado a prosa.

Chovera muito nos dias precedentes e o rio estava cheio, as águas turvas. Balançando-se na rede, Emília espiava o São Francisco de largas margens, caminhando apressado ao seu destino, o destino dos rios: o encontro com as águas salgadas do mar.

Na volta da oficina (“Mas o pobre vê nas estradas, o orvalho beijando a flor. Vê de perto o Galo Campina, que quando canta muda de cor. Vai andando pelos riachos, que riqueza, Nosso Senhor! Vai olhando coisa a grané, coisa que pra mode ver, o cristão tem que andar a pé”), Josué encontrara uns pescadores. Puxara conversa. Chegou na pousada de volta, com dois pequenos peixes para o almoço. Nunca antes Emília vira Josué limpando um peixe, tirando as vísceras.

– Aprendi com meu pai, Emília. A melhor peixada era a de dona Nenê. Mas era seu Bartolomeu quem trazia o melhor peixe, que não iria para os fregueses, mas para aquela grande família de dez filhos; Antes de entregar à patroa, lavava, limpava, cortava em postas grossas para o cozido, a cabeça separada para o pirão. – Emília olhava séria para Josué, a recordar o Janga. – Só não me peça, Josué, para fazer aqui a peixada de minha tia, a melhor que comi até hoje. Concorrer com tua mãe seria covardia.

As pequenas Traíras cheias de espinhas foram um fiasco. Na cozinha da pousada, haviam encontrado apenas pratos, talheres, panelas em estado deplorável, um resto de sal, e só. Porém, nos dias que se seguiram, fizeram daquela pousada sua casa. De manhã, Josué ia caminhando até a cidadezinha para acompanhar os serviços da caminhonete. Na volta, trazia ingredientes para prepararem as refeições: os parcos produtos de uma venda em Terezinha de Jesus; e, da pequena colônia de pescadores, o peixe e a fartura do rio São Francisco – couve, alface, tomate, coentro, cebola, cebolinha, inhame, macaxeira, banana da terra, banana prata. Até uvas!  

O almoço do segundo dia foi mais caprichado: peixe temperado com limão, cozido com bastante coentro, cebolinha, cebola, tomate, e azeite de dendê, que haviam acrescentado ao farnel na caminhonete, quando passaram em Feira de Santana, na Bahia. Comeram uma moqueca acompanhada de farofa de dendê, pirão e arroz branco.

Próximo às cinco casinhas, havia um banheiro masculino e outro feminino. Apossaram-se dos dois e lá colocaram os artigos de toalete e as toalhas de banho. Ficaram por donos de todo aquele grande terreiro, para inteiro desfrute só deles. À sombra dos coqueiros, palmeiras e pés de jambo, duas redes e cadeiras espalhadas. Como não havia outros hóspedes, podiam fumar à vontade, cada um a seu gosto. E ainda desfrutavam da boa música que dava para ouvir do potente som da casa do portenho.

Nesse segundo dia, principiaram uma prosa que se espichou, feito conversa de pescador, até o dia em que tiveram a boa nova de que a Toyota estava pronta para seguir viagem. Antes da noite de São João, daria tempo de chegar à fazenda Baraúna, pertencente a Francisco, o irmão mais velho de Josué. Foi somente nessas prosas de beira de rio que Josué contou a Emília dessa fazenda, e do desejo de rever esse irmão, de quem Emília tinha a vaga lembrança de um sorriso paternal no dia do primeiro almoço na casa da tia Nenê.

(continua no próximo domingo)

Emília

11. Um quadro de Braque

Emília comemorou a passagem do milênio no Pina. Bem acomodada num voo direto da Varig, pensava a que vinha nessa viagem. Aniversário de trinta e oito anos de José, em 27 de dezembro. Naquele ano, ele pedira que a mãe viesse. Esse pedido do filho vinha martelando na cabeça de Emília. (A propósito, qual a última vez que os leitores dessa novela ouviram falar dele? Lembram? Estava no colo da avó, com três anos incompletos, no dia em que Emília chegara de volta de uma semana com Pantélia no Brejo de Gravatá. No dia em que precisou desembrulhar três presentes para ter o filho de volta ao colo).

Até a aeromoça passar servindo o almoço, Emília deu um cochilo. Depois de almoçar, colocou a bandeja com os pratos usados no apoio da poltrona do lado, que estava vazia, e aproveitou para fazer o que ela mais gostava em avião: escrever.  

Quantos vezes nos encontramos, desde aquele dia, em outubro de 1965? Essa é a terceira. Estranha maneira de ser mãe e filho. Contudo, essa estranheza não me perturba. Sempre achei que José seria mais bem criado pela avó. E até Marcelino, aquele turrão, aliado das duas filhas para me torturar no purgatório daquele junho de 1954 no Pina, lembram? Com meu filho, parecia que o neto era dele. Vovô Celinho…As crianças detêm esse condão de apagar mágoas e tristezas passadas.

Não, não vou me gabar de ser uma mãe sem culpa. Será que faz parte da natureza de ser mãe? Minha culpa é de não ter amamentado José. Tanto que eu queria! Quando voltei para casa com um filho nos braços e não a desejada filha, minha mãe estava a postos para os tempos do resguardo.

“Deixa o bebê sugar”, dizia. A mesma ladainha da enfermeira na maternidade, “Por enquanto é o colostro. Mas vai chegar leite”. Não chegou. Ou eu não tive paciência. Luizinho parecia um ator coadjuvante de filme de chanchada, atrapalhado, arranjando mais motivos ainda para estar ausente de casa. Já dera o desejado neto para o pai dele. O resto era comigo. Até hoje não sei por que me casei com aquele homem, a quem nunca amei. Talvez porque era chegada a hora de fazer pelo menos esse desejo de minha avó, continuar a corrente das Emílias e Marias. Calhou de ser Luizinho quem apareceu na minha vida naquele momento. Depois ficaria claro para mim: também ele nunca me amou. Procurava apenas uma mulher para lhe dar descendência.

Desse Luizinho nunca mais soube. Desde o dia em que descobri seu pequeno studio, numa travessa da avenida Conde da Boa Vista, para onde ele ia, em dias incertos, vestir-se de mulher. Como é possível, passado tanto tempo, ainda doer a imagem do camarim, das roupas colombinas espalhadas pelo chão? Liguei para Maria, a amiga das grandes alegrias, das maiores tristezas. Ela veio me encontrar no Parque Treze de Maio. José Carlos iria fazer um PHD no MIT e ela se preparava para fazer a seleção para o curso de Direito de Harvard. Era um princípio de tarde e o parque, lugar de passagem dos que retornavam ao trabalho, dos estudantes chegando para as aulas, aquele calor recifense do sol quase a pino. Um flamboyan florido nos dava sombra benfazeja. “Para fazer a seleção de Harvard, Maria, carece ser formada em Direito?” “Não, Emília, qualquer curso superior”. Quando retornei para casa no final da tarde, deixei as lágrimas no chão batido do Parque Treze de Maio, e trouxe comigo esperanças novas no coração.

Desembarcando no aeroporto dos Guararapes, Emília sabia que ninguém estaria à sua espera. Sempre gostou de chegar sozinha ao Recife. Antes de sentir a primeira baforada quente em contraste com o ar condicionado, como era bom ver do alto a cidade cortada pelos rios! A Recife que tanto amava!

Já no taxi a caminho do apartamento da mãe (não sem antes recomendar ao motorista, pela beira mar, por favor), pensava mais uma vez, por que, naquele ano, o filho fizera questão da presença dela numa comemoração, à qual sempre estivera ausente? Os parabéns até então haviam sido um telefonema e um presente enviado pelo correio.

A festa foi na antiga casa de Maria Emília. A não ser pelo mesmo endereço, quase nada mais restava daquela casa na qual Emília fora morar em 1954, com treze anos de idade. O próprio Pina fora praticamente incorporado à vizinha Boa Viagem, através dos prédios de luxo da avenida. A parte de trás dessa avenida conservara, contudo, aos trancos e barrancos, vestígios do antigo bairro.

A casa de Maria Emília e Marcelino ficou irreconhecível à primeira vista, por causa de um bonito jardim de flores tropicais. Por dentro, não sobrou parede da antiga casa. Porém, o velho quintal, este permaneceu com as mesmas Mangueiras, Cajueiros, Coqueiros e Castanholas. A casa era agora a morada e o atelier de José. Os avós, ambos com oitenta anos, moravam em um belo e confortável apartamento à beira mar, próximo à velha casa.

Todos os artistas da roda de José estavam no aniversário dele. E deram o tom da festa: músicas de jazz e caribenhas, comandadas por um DJ; comidas, bebidas e outros prazeres da fantasia à fartura. Afora essa tribo, a família: os avós, a um canto da sala, qual fossem mobília velha que tivesse sobrado da antiga casa. De vez em quando alguém se achegava a eles para trazer um petisco, dizer uma palavrinha carinhosa…

Emília foi à festa vestida de vermelho. Assim se apresentou a mãe de José no aniversário do filho: uma mulata de cabelos grisalhos bem curtinhos, brincos enormes nas orelhas, e discreta maquiagem, realçada apenas pelo batom vermelho. Mesmo que quisesse, e queria, ficar igual aos avós de José, uma peça do mobiliário a quem os jovens se dirigem vez por outra para dar uma esmola de atenção, seu vestido e seu batom não permitiram.

Ao chegar, deixou Maria Emília e Marcelino sentados na sala e dirigiu-se direto para o quintal. Queria sentir o cheiro dos seus treze anos: cheiro de manga e de caju maduros no pé. Foi a primeira a ocupar uma das mesas, embaixo de um pé de Castanhola. Permaneceu embaixo dessa árvore frondosa que ela mesma, junto com Maria Emília, haviam plantado numa manhã invernosa. Era uma plantinha de nada. Embaixo dessa Amendoeira, que os da terra também gostam de chamar Coração de Negro, havia agora uma escultura em bronze feita por José: a figura de uma mulher segurando a mão de um menino pequeno, ambos rindo um para o outro, com os pés afundados na areia.

O céu estava limpo, sem lua. As árvores do quintal, iluminadas de baixo para cima, lembravam um parque europeu. As primeiras pessoas que se sentaram à mesa onde estava Emília, vinham de um balcão, cada uma segurando um copo na mão. Depois de cumprimentarem cerimoniosamente aquela desconhecida senhora, voltaram à prosa entre eles. Emília estava atenta, mas sem participar. Um, percebendo seu interesse, quis ser gentil e lhe perguntou, Bebe? Sim. Bebia.

O carro chefe da noite foram as caipirinhas. Um balcão de bebidas havia sido improvisado num telheiro entre a cozinha e o quintal, no qual muitas frutas estavam arrumadas em belas naturezas mortas. Lá, os dois garçons, no auge da festa, já não davam conta em servir as caipirinhas e caipiroscas preparadas na hora, e os pedidos de outras bebidas, que eram servidas nas mesas do quintal.

Emília não se fez de casa. Quem sabe, fosse aquela a casa de uma filha? Da filha que não teve? Que se chamaria Maria Emília? E daria sequência à corrente das Emílias e das Marias? Aquele pensamento lhe trouxe uma tristeza esquecida.

Numa festa, há pessoas que não param quietas. Trocam de lugar, de rodas de conversa, como um sedento que quer beber de tudo um pouco. Há outras, que se acomodam em um grupinho e com ele passam a noite. Emília se acomodara numa das cadeiras embaixo da amendoeira, um lugar privilegiado, de onde podia assistir a um espetáculo de muitos atores, que se revezaram, ora sentados na sua mesa, ora circulando pelas outras. Até rolar um fumo. Aí entrou na roda, na conversa, e na dança, na sala dentro de casa.

O DJ atacava de blues da pesada, quase rock. Com o copo de caipirosca de caju na mão, entrou no salão de dança sozinha. Nessa hora, não viu quem mais dançava. Seu corpo cabia nele próprio em cada movimento. Xangô, fogo encarnado, vinha encontrar Oxum. Já não era a mãe de José, nem a filha de Maria Emília – com essa, trocou um rasgo de olhar numa dos volteios do corpo, deixando com ela o copo de bebida. José, Emília não lembra de tê-lo visto enquanto dançava. Talvez estivesse no quintal.

Às tantas, os jovens fizeram uma roda em torno dela, como para apreciar sua dança. Nessa hora, Emília viu José passando em direção à cozinha, seus amigos querendo que ele viesse se juntar a eles, sem saber ser aquela mulher a mãe do dono da casa. Emília viu nele um menininho com medo da mãe. Teve ímpetos de parar de dançar, mas era tarde. Sua deusa, poderosa e sedutora, já havia tomado conta de seu corpo.

Enquanto dançava, rolou um filme na cabeça de Emília: o primeiro e único transe na festa de Oxum, no terreiro da avó; Josué, com a guia vermelha trespassando seu corpo de pescador, atravessando o coração, batendo na cintura, sua dança rápida aos agitados tambores tocados para seu santo. Emília temeu pela sua sanidade. Estava na casa do filho. Melhor voltar a ser móvel velho.

Paciência. José teria que pagar análise de divã para encarar aquela mãe, que era a dele. Uma mulher do mundo. Os pais verdadeiros de José eram aqueles velhinhos sentados num canto da sala, que o teriam colocado no colo, se pudessem, na hora de seu profundo embaraço quando foi convidado a entrar na dança em torno de uma Oxum.

Parecia até que o DJ entrara em contato com Emília em espírito, quando mudou repentinamente a agitação do blues de Muddy Waters, para um dolente trompete de Wynton Marsallis com o piano de Marcus Roberts. Emília se sentiu então conduzida ao Peji, as Akedes fossem acalmando seu corpo.

Pediu ao garçom uma jarrinha de água de coco e voltou a seu lugar, à mesa junto da escultura onde se via representada na primeira memória do filho: ela brincando com ele nas areias do Pina, a mesma brincadeira aprendida com Josué nas areias do Janga. Recordou-se dos domingos em que ia com José tomar banho de mar na praia do Pina, a maré cheia, os dois rindo muito na aposta de quem aguentaria mais tempo sem cair, a cada vaga do mar que ia enterrando os pés dos dois na areia molhada.

Após a euforia da dança, sentada de volta ao seu ponto de observação da festa, sorvendo em curtos goles a água de coco, como quem toma glicose na veia, Emília teve um pressentimento: não chegaria aos sessenta anos. Já estava no lucro. Lembrou, não da fisionomia, pois estava de olhos fechados, mas do timbre de voz fanhoso e desagradável do cirurgião de Boston, arrodeado de estudantes residentes em cardiologia. Algo lhe dizia que aquela era a sua despedida da mãe e do filho.

José veio até a mesa onde estava Emília. Ela reparou como se parecia com Luizinho. Em pé junto de Emília, passou a mão nos cabelos da mãe, como fosse pai, e não filho. Puxou a cabeça da mãe para junto de si. Emília passou o braço em torno da cintura dele. José ficara um moço bonito, elegante, mais alto do que o pai, de pele morena clara queimada de sol, barbas e cabelos pretos. Uma mecha dos cabelos caía na testa e ele tirava com a mão, com o mesmo gesto paterno (com quem ele só convivera, assim mesmo com muita distância, nos primeiros oito meses de vida), sacudindo com uma certa graça a cabeça para trás.

Quando os garçons já recolhiam os restos da festa, a moça lavava a louça e arrumava a cozinha, ficaram, à mesa da sala, a família. José foi providenciar um chá inglês, um dos presentes que a mãe lhe trouxera. Marcelino cochilava na cadeira. E Maria Emília havia se levantado para ajudar José na cozinha. Emília observava tudo. Estes são os pais de José, pensava. Vejam a cena: o filho quer ser gentil com a “visita” que lhe presenteou o chá; a mãe logo acorre para ajuda-lo; e o pai cochila.

Emília não se mexeu do lugar onde estava. Na parede da frente, José havia colocado um único quadro, uma reprodução. A princípio, ela não entendeu o lugar de destaque para uma simples reprodução, na casa de um pintor com tantas obras suas e de outros bons artistas. Aquela reprodução pertencera a Luizinho. Já existia no apartamento dele quando se casaram e foram morar lá. Como teria vindo parar aqui na casa de José? Quando Emília desocupou o apartamento para alugar, antes da viagem aos Estados Unidos, que fim ela teria dado a esse quadro? De certeza, sabia que não tinha ido para a casa de Maria Emília no Pina, junto com o berço, o carrinho e os brinquedos do filho.

O mais fácil seria perguntar a José, ele bem ali na frente, servindo uma xícara de chá. Por que não perguntou? “Não sei. Estranho. Como se, perguntando, estivesse devassando algum segredo.”

José afastou-se de novo com a avó, dessa vez para mostrar um armário do seu atelier, do qual estava querendo se desfazer, para colocar no lugar um gaveteiro de telas. Marcelino acordara apenas para tomar o chá e voltara a cochilar sentado, cabeceando. Maria Emília havia lhe oferecido para se deitar na cama de José, ou mesmo no sofá, mas ele respondera que não estava com sono e não queria dormir.

Emília gostou de ficar de novo sozinha mirando a reprodução de Braque. “Aonde ficava esse quadro no apartamento de Luizinho… Um apartamento onde na verdade nunca me senti em casa?” Foi passando na memória aquele apartamento, de espaço em espaço, até localizar a reprodução na sala, também em lugar de destaque, na parede em cima do guarda-louça. Com a câmera que não chegou a usar durante toda a festa, tirou a única foto da noite: queria ficar com as cores daquele quadro guardadas, como a única lembrança de um casamento fracassado.

Esse diário está recheado de cartas que nunca foram enviadas. Hoje escrevo mais uma. Querido José. Não conhecia a casa depois que passou a ser tua. Ficou linda, meu filho! Vocês, a família, devem ter estranhado meu comportamento. O certo, sei disso, teria sido eu ter ficado sentada ao lado de minha mãe e Marcelino, recebendo os cumprimentos de quem chegava. Mas não. Enfiei-me quintal a fora e não saí daquela cadeira a não ser para dançar. Isso lá é comportamento de uma mãe? É estranho mesmo, meu filho. Mas essa é a tua mãe.

Agora, que a festa acabou e dela sobram as crônicas, vou te passar a minha. Na noite de teu aniversário, o que mais me tocou foi a reprodução de Braque na tua sala. Só fui descobrir no fim da festa, quando todos já haviam ido embora e ficou a família em torno da mesa tomando um chá. Foi somente nessa hora que meus olhos bateram naquele quadro, e me levaram a reminiscências. Talvez eu tenha ido à tua casa mais para o passado do que para o futuro milênio, que seria comemorado em grande estilo dali a alguns dias. Foi só botar os pés dentro da casa, e saí, quase correndo, direto para o quintal. E sabe por que, meu filho? Ali eu poderia ainda abraçar as minhas velhas árvores. Ah, José! Você não pode imaginar a minha alegria em ver teu trabalho mais premiado, a escultura da mãe com o filho, plantada embaixo de minha castanhola.

Sentada na confortável cadeira embaixo daquela árvore, poderia ter ficado a festa inteira igual aos teus verdadeiros pais, Marcelino e Maria Emília. O problema foi que misturei álcool com maconha. Aí, meu filho, aí ninguém me segura, até a dança aplacar todos os meus medos. O garoto que comandava a música pode nunca ter ido a uma festa de Xangô, mas sabe de tambores. O santo dele conversou com o meu, e combinaram mudar o ritmo da música na hora certa.

 Aquele quintal era meu refúgio de chorar sozinha, sentindo um aperto no coração… uma dor que doía mais do que todas as dores do coração de verdade. Era uma dor no coração de minha alma de treze anos.

Para mim, a casa era aquele quintal, as velhas árvores, que naquele dia me receberam sorridentes, iluminadas. Até a hora do chá na mesa da sala, não sabia ainda que ali estava reservada para mim a maior surpresa da tua casa, o quadro de Braque. Daí por diante, distanciei-me de tudo o mais que aconteceu. Dos cochilos de Marcelino. Da cumplicidade de mãe e filho entre você e Maria Emília.

Esse quadro foi a única lembrança que ficou do teu pai. Quando nos separamos, você tinha oito meses. Mas, com essa natureza morta, você conviveu até eu me desfazer do quadro, quando aluguei a casa, deixei você com Maria Emília e viajei aos Estados Unidos. Você tinha então dois anos e sete meses.

Esse quadro ficava à tua vista de bebê, quando passávamos pela sala, você no meu colo. Talvez até tenhas mirado ele de perto, num certo dia em que me demorei acertando tarefas da casa com a empregada, você sentadinho no meu braço, teu rostinho olhando diretamente para o quadro, tua cabecinha tentando se equilibrar. Nesse dia, lembro que choraste sem motivo, quando de lá me afastei para te trocar no quarto. Terá sido porque tirei teus olhos das cores de Braque?

Mirando o quadro no dia de tua festa de trinta e oito anos, te vi bebê e te segurava no colo. E foi tão bom te segurar no colo, meu filho! Talvez seja por isso que as avós gostam tanto de ser avós.

Sou capaz de jurar: o azul forte foi a primeira cor que chegou à tua retina. Tu, meu filho, bebê, já atento às cores que irias explorar vida a fora. Ao tempo em que engatinhavas, perdeste a visão do azul anil de Braque. Foi o tempo em que caçavas meticulosamente pequenos insetos entre as tábuas do assoalho.

Tinhas pouco menos, pouco mais de um ano, quando deste os primeiros passos. Naquele dia, saindo do banheiro para teu quarto, você enroladinho na toalha, quiseste descer de meu colo. O dia estava quente, era verão. Coloquei você em pezinho, nu, segurado na borda da mesa de centro. A pouca distância, baixei-me e passei a te chamar, incentivando-te a caminhar sozinho até onde eu estava. Tu me viste. Olhaste, contudo, em outra direção, onde eu havia colocado o quadro de Braque no chão, escorado no guarda-louça, enquanto não o colocava de volta na parede com um prego mais resistente. Foi nessa direção que você deu os primeiros passos, José.

Nesses passos trôpegos, terás te encantado com as outras cores? Das uvas azuis e dos pêssegos se esparramando pela mesa? O cinza, o marrom, o branco muito branco da bandeja e do cálice. Terá nascido naquele instante, meu filho, a tua centelha criativa?

Tua avó sempre recebeu de mim a recomendação de nunca economizar dinheiro para te comprar qualquer artigo das melhores papelarias. Quando nossa correspondência por correio já era de amor, eu trazia de minhas viagens tudo que me encomendavas das papelarias especializadas de Nova York, de Paris, de Florença… Dei muito lucro aos correios de entregas internacionais.

Morrerei antes de ti, meu filho, como morrem as mães abençoadas. Herdaste de tua mãe a coragem. Contudo, ainda não alcançaste idade para usar essa coragem em favor de tua liberdade. Esse sentimento de liberdade a gente vai apurando quanto mais fica velho. Se um dia tiveres filhos, meus netos, serão criados em uma família diferente da que conhecemos e nos aferramos a ela, porque a sociedade é assim mesmo, meu filho, mais conservadora do que as pessoas, e se apega ao conhecido por medo do desconhecido. Mas tu, meu filho, és corajoso como tua mãe. Criarás teu filho, meu neto, que não conhecerei, com a liberdade que é inerente ao ser humano. Com a tua liberdade. Numa família única, como única é cada família no mundo.

Emília

10. Encantador de serpentes

Josué estava ao lado de Emília, quando ela ligou de um telefone público para o número que havia copiado do quadro mural da Faculdade. Haviam tomado o café da manhã no balcão da padaria vizinha: suco de laranja, pão na chapa e café com leite. Atendeu uma voz com sotaque estrangeiro. Emília anotou o endereço para onde deveria levar um curriculum vitae em inglês, e esperar ser chamada para uma entrevista. “Não tenho a mínima chance, Josué. Imagina! O curriculum daqueles alunos da USP, dos professores… E preciso arrumar algum emprego, meu primo. Tenho um filho para sustentar. Não quero mais depender das cabeças de gado de meu pai, a moeda que até hoje me deu arrimo.” “Também não exagera, Emília. Você deu um duro danado naquele escritório de contabilidade. Ou não?”

No curriculum vitae, além do curso de Ciências Sociais, da experiência no escritório de contabilidade, da aceitação para cursar Direito em Harvard, Emília relatou, em poucas palavras, a cirurgia em Boston e a recomendação do médico para continuar sendo acompanhada pelo Doutor Zerbini em São Paulo. Tudo verdade. Meia verdade, pois não caberia nenhuma referência ao motivo real que a trouxera a São Paulo: encontrar Josué.

Foi uma das dez chamadas para entrevista. “O nome Harvard é tão poderoso”, pensava Emília, “que bastou ter pisado nos seus parques, para conseguir passar à frente de outros, que portavam muito mais títulos do que eu.” A única exigência que lhe fizeram, depois de classificada, foi trazer um documento assinado pelo Doutor Zerbini, atestando estar apta a exercer uma atividade profissional que implicava em muitas viagens.

Na entrevista, Emília fora percebendo que os dois gringos estavam mais interessados em sua vida do que nas informações acadêmicas. Uma intuição (ou teria sido um sopro de Oxum?), sugeriu-lhe continuar falando dela própria, vender o peixe conforme o gosto do freguês. Sem querer, escapuliu algum detalhe da viagem à África. Na hora, Emília se saiu com um “Valha-me Deus!”. Eles riram, perceberam que ela saíra do script, e insistiram, “go ahead”. E Emília pensou com seus botões, “perdida por cem, perdida por mil”. Disse tudo. Do pedido da avó transmitido pela tia Nenê; da aventura pelo Senegal até chegar a Cachéu, na Guiné Bissau, e lá encontrar o babalorixá Alabi; da missão de encontrar o primo em São Paulo; de como conseguiu chegar a ele pelos estudantes que conheceu no saguão da Maria Antônia, onde anotou o telefone do quadro mural; e finalmente, ali estava, pronta para o que o destino lhe reservasse. Percebera que os olhinhos azuis de um deles brilhavam à proporção em que ela falava com entusiasmo, pensando que acabara de perder um emprego, certamente um bom emprego, mas não perderia uma boa história, a sua história. Muitas vezes, a gente só se dá conta dela ao contar para outrem.

Não fora, portanto, a grana dos jardins de Harvard, mas a pobreza árida da África (e a capacidade de Emília de enfrentar desafios, de que ela mesma não se sabia), o que levou aqueles dois entrevistadores a aprovarem seu nome para ocupar o cargo. Mantiveram, contudo, a exigência do exame médico. Afinal, igualmente era verdade ser ela portadora da Tetralogia de Fallot no coração.


Josué também estava com Emília na semana seguinte, como fiador do aluguel de um sobradinho numa pequena rua próxima à feira da Vila Madalena. Era um imóvel velho, com pequeno quintal cimentado e ladeado de canteiros de azaléas.

A rua era silenciosa. Aos poucos, Emília ia chegando. Já gostava da cidade, especialmente daquele bairro. Ao primeiro sábado depois de estar morando no sobrado, comprou um carrinho de feira e saiu pela Mourato Coelho, rua acima, rua abaixo, numa alegria de manhã de sol. Tudo tão limpinho, tão arrumadinho! As barracas, quase todas com toldos novos. Não havia frutas ou legumes espalhados pelo chão em lonas improvisadas, como na feira do Velame. Ouviu com atenção o pregão dos vendedores, muitos, japoneses. No Velame de seu tempo, não havia um só japonês. Nem na feira, nem em lugar nenhum. Na banca das folhas, só de alface, Emília contou mais de três ou quatro variedades. Umas laranjas cravo grandes, cheias de vento, com o engraçado nome de mexericas. Umas frutas que Emília não conhecia. Os caquis, comprou a primeira vez achando que fossem tomates maduros. As alcachofras, colocou em um imenso vaso ao chegar em casa. “E alcachofra não é flor de enfeitar, Josué? É flor de comer?” Foi seguindo o cheiro de fritura até chegar aos pastéis. Pediu um de palmito. Pastel acompanhado de caldo de cana. No Velame, o que acompanhava o caldo de cana era pão doce.

Josué ia ficando. Não falava em Cotia. Talvez para preservar a ilha de felicidade, Emília nada perguntava. De meados de novembro a meados de dezembro daquele 1965, São Paulo era uma festa! E Josué sabia aonde acontecia a festa. A cada noite. A cada final de semana. Nas noitadas paulistanas, Josué parecia um encantador de serpentes.

Como cabia tanta vida em vinte e quatro horas? Era o que Emília se perguntava, quanto mais conhecia Josué. Ele foi trazendo, sem alarde, a cada semana, peças de roupa e livros, que iam ocupando o quarto de hóspedes. Pregou cabides na parede daquele quarto; improvisou uma estante baixinha com tábuas e tijolos. E foi chegando. Por derradeiro, trouxe um violão velho. No dia em que chegou com esse violão, era tarde da noite, Emília já dormia. Levantou-se assustada, “meu deus, Josué vai acordar os vizinhos!” Cantava, com seu vozeirão, “Fascinação”, embaixo da janela da sala. E fez questão de entrar em casa por essa mesma janela, na qual ele dera a última demão de tinta verde há três dias.


Em todas as ausências de dois, três dias, Emília nunca se perguntou nem perguntou a Josué de onde ele vinha, com quem dormira. Supunha ser com a mulher. Mas não tinha certeza. Para aplacar a ansiedade, principiou a escrever um diário.

Há menos de um mês, vivi a tórrida aventura brejeira com Pantélia. Josué não sabe desse africano e não tenciono dizer. É assunto meu, e a ninguém mais importa. Onde estará Pantélia nesse momento? Continuará bebendo? Terá arrumado outra mulher? E eu? Gostava daquele homem?

Sim. Gostei. Mas foi muito diferente de como gosto agora de Josué. Eu e Josué nos cabemos inteiros um no outro. As nossas conversas noite adentro, comentando uma peça do teatro de Arena… Diário é coisa íntima, que não será publicado. Aqui posso dizer o que não direi nunca a Josué. Pudesse a gente separar as partes do corpo humano… Pantélia ganha, Josué. Você é filho de pescador, tem um corpo perfeito, braços e peitos fortes e acolhedores. Mas teu pau não é lá grande coisa.

Já ouvi dizer que isso não tem nenhuma importância. E não tem mesmo. O que interessa é que permaneça rijo, que aguente firme, gozando, o gozo da mulher, no tempo dela. Bom, não vou negar. Embora o tamanho não conte, é bonito de se ver. Nada a ver com as esculturas clássicas dos deuses gregos. O corpo de um negro sem roupa é de uma beleza estonteante. E Pantélia, de brinde para meus olhos, ainda portava em volta da cintura, à altura do umbigo, uma tira fininha, gasta pelo tempo, que um dia deve ter sido branca. Ele não tirava nunca essa tira do corpo. À minha curiosidade, apenas sorriu e nada disse.

Contudo, se me fosse dado escolher, tipo um sorteio, não pensaria duas vezes. Josué tem o mesmo cheiro meu. Com ele, estou em casa. Não carecemos nem falar para saber um do outro. E faz tão pouco tempo que estamos juntos… Menos de duas semanas. Será que Josué vai abandonar a mulher e vem morar comigo?


Emília trouxera da África uma calça e uma camisa folgadas de madapolão, uma espécie de tecido grosso, de algodão cru. Um dia, com a janela do quarto aberta, ao ventinho da madrugada, Emília experimentou essa roupa para dormir. Ao acordarem, Josué pediu, “Você me empresta, Emília? Quero passar o resto do dia sentindo teu cheirinho.” “Pra onde você vai assim, Josué? Parecendo um pescador, com essa calça de pular cerca?”. Sem querer, Emília antecipava uma cena que presenciaria algumas horas depois.

Josué estava vestido com essa roupa quando saíram de casa para a estreia da peça Morte e Vida Severina, no teatro da PUC. Antes, iriam encontrar os atores numa cervejaria na rua Monte Alegre. Ele conhecia todo o elenco, formado por estudantes daquela universidade. Um dos alunos de Josué estudava Ciências Sociais de dia, na USP, e História à noite, na PUC. Por sugestão desse aluno, Josué aproximara-se do grupo quando discutiam em seminário “Geografia da Fome”, de Josué de Castro. Ficou conhecendo o diretor artístico da peça.

“O diretor é uma figura extraordinária, Emília. Para ele, o poema de João Cabral faz alusão a uma história que poderia ocorrer na África, na Ásia, em qualquer país da América Latina. Trata-se do dilema do homem perante a vida e a morte, qualquer homem, não necessariamente o retirante nordestino. Na concepção do espetáculo, esse dramaturgo imprimiu sua concepção filosófica aprendida com os frades dominicanos, mola mestra dos primórdios da Ação Popular: a centralidade do homem como sujeito da história.

“Você vai ver isso, Emília, em várias cenas do espetáculo. Por exemplo, quando Severino retirante avista a paisagem da cana-de-açúcar. O que ele vê ao fundo do palco? Os trinta e três atores balançando o corpo em sintonia com uma música dolente que imita o vento no canavial, eles próprios representando o canavial. Tive alguns diálogos com esse diretor artístico muito enriquecedores para mim. Ainda sem compreender bem toda a concepção que estava por trás da encenação, argumentei que a história narrada por João Cabral só se sustentava no espaço físico onde fora ambientada, o percurso do rio Capibaribe. Hoje dou minha mão à palmatória. A obra de arte, afinal, é isso mesmo: será sempre reescrita por quem aprecia, quem lê, quem assiste.”

“Pode ser legal conhecer esse grupo, Josué. Mas, pensa bem. Lá, vou me sentir peixe fora d’água.” “Não, querida. Lá você será apenas a minha mulher.”

Emília tomou um susto. Sua mulher? Para ela, a mulher de Josué era Dolores, para quem ele voltava em dias incertos, trazendo de lá peças de roupa e livros. Ouviu calada. Enquanto tomava banho e depois escolhia à dedo a roupa com a qual o acompanharia, ficou se deliciando com a ideia de ter um marido.

“Marido é coisa boa”, pensava. “O meu não foi. Luizinho era um horror! Mas eu observava como Maria se referia a José Carlos, quando o apresentava a estranhos, ‘esse é meu marido’. Enchia a boca.” Emília se lembrou das histórias de trancoso de Carmem, ela sentadinha no chão da cozinha da casa do Velame. Naquela noite, iria brincar de marido e mulher.

Estavam ainda na cervejaria, quando passa apressado, segurando um guarda-chuva numa mão e uma pesada pasta na outra, o próprio diretor artístico. Josué apontou-o para Emília. Um homem comum, em torno dos cinquenta anos, nem gordo nem magro, olhos castanho escuros, cabelos pretos já com muitos fios prateados e bem penteados para trás, barba aparada, e um sorriso aberto de bons amigos. Um dos estudantes convidou-o para um chope. Aceitou. Sentado em frente a Josué e Emília, olhou primeiro para ela e depois para Josué. Aproveitou que o ambiente era descontraído e perguntou, com cara de quem quer apenas puxar conversa, “Rapaz, você não faz parte do elenco, faz?” “Não, senhor diretor – os outros riram da ironia – sou apenas o professor de antropologia do Márcio, no curso de Ciências Sociais da Maria Antônia. Estou aqui na qualidade de curioso.” Nessa hora, Josué se levantou de um estremo da mesa e, estirando o braço na direção do diretor, como se ambos estivessem se vendo pela primeira vez. “Josué, seu criado.”

O diretor mirou Josué e quis saber de onde ele trazia o sotaque. Emília viu o sorriso estampado no rosto do “marido”, iluminando todo o seu semblante. “Sou natural de Pernambuco. Nasci numa praia deserta chamada Janga. Desde menino trabalhei em roçado, trepei em muito coqueiro alto para tirar coco, e acompanhei meu pai em pescarias.” “E essa roupa, pescador?” Os outros riram novamente. Nesse momento, Josué sentiu-se na pele de seu pai. Ser chamado de pescador lhe trazia o Janga de volta. Em casa, à noite, falaria horas a fio sobre essa paternidade recuperada para ele ali, por um homem que mal o conhecia.

“Quer mesmo que eu diga? É de minha mulher, Emília, essa morena bonita que acaba de chegar da Guiné Bissau.” Emília percebeu nessa hora que Josué ficara com ciúmes do olhar cobiçoso do diretor na direção dela, e aproveitara para botar as cartas na mesa. “De lá ela trouxe essa roupa, que aqui usa às vezes como pijama.” “Posso aproveitar esse pijama de tua mulher como modelo? Não estou nada satisfeito com o nosso figurino atual. Esse pijama de Emília casa como luva para expressar a ideia de homem universal que quero transmitir na peça, mais do que o figurino atual, ainda lembrando um retirante nordestino. Aliás, esse que você defendeu um dia como o verdadeiro personagem do poeta. Veja que ironia, pescador. Justamente você, com esse pijama africano de tua mulher, acaba de me dar a brilhante ideia de ser esse o nosso figurino.” E, dirigindo-se ao cenografista, “O que você acha? Daria para repensar o figurino já para as próximas apresentações?”

Josué ia ficando cada vez mais tempo no sobradinho. Frequentavam cinemas, teatros, exposições, bares. O entorno da Maria Antônia se acendia todas as noites. E eles estavam sempre juntos. Viraram uma entidade: o casal nordestino. Ser nordestino em São Paulo pode ter sentidos opostos. Josué vivera o primeiro, como peão de obra: o baiano, que calava a boca na rua para não ser identificado pelo sotaque; e que tentou aprender o novo idioma da terra com a companheirada da construção civil, cuidar de desaprender o tempo subjuntivo dos verbos. Professor da USP, tratou de recuperar – e Emília estava ali a seu lado reforçando isso – o português mais ibérico, que, ainda diferente, era apreciado, junto com a cor da pele, os cabelos, a roupa descontraída. O intelectual e o artista paulistanos engajados em uma grande frente a favor de mudanças sociais, tinham em Josué um símbolo do Nordeste brasileiro. Ser dele amigo, era sinal de não ter preconceito. E ele sabia tirar bom partido disso.

A festa durou até o sábado em que Josué sumiu de casa e deixou Emília desesperada.

Beiço de negro. Os beiços de Marcus Roberts, de óculos escuros, tocando ao piano Rapsódia in Blue de Gershwin. Os beiços de Pantélia. Os beiços de Pantélia nos meus grandes e pequenos lábios… Girassóis rebeldes ao sol; as pedras, as estrelas, uma cama quase beijando o telhado e um amor sem governo. Ah, Pantélia! Foste o rio de águas mais profundas onde mergulhei.

 E agora, Josué? Você dorme em outros braços. Minha única ventura é fazer de conta que estou te escrevendo nesse diário. Quem sabe, você o lerá um dia? Mesmo que eu já tenha morrido, saberás do meu desespero desta noite, caçando no meu corpo um passado efêmero com outro homem pelo qual jamais te trocaria.

São quase quatro horas da madrugada. E se você não gostar mais de mim, Josué? E se tudo foi apenas um sonho, desses que a gente acorda e ainda guarda naqueles segundos do acordar uma doce sensação, que logo se esvai com a luz do dia? Meu amor, tenho medo. Tenho muito medo. Você entrou de novo na minha vida, ou talvez dela nunca tenha saído. Reencontrar você alumiou um caminho ladeado de velames cheirosos.

Então vou tomar banho, tomar o café da manhã, qualquer rotina da vida, e lá está você. E dói não ter você. Como se houvéssemos vivido juntos a vida toda. Você continua me povoando. Acordo e tua lembrança é a primeira do dia, que faz o sol brilhar mais, faz a música mais bonita, faz a ameixa roxa doce e carnuda do café da manhã parecer jambo do Pará. Nunca te disse isso e digo agora: eu te amo. Te desejo na cama, na cozinha, na rua, debaixo do sol, debaixo da chuva, na sombra do cajueiro, no correr das águas da cachoeira, no banho de mar, no banho de rio, no céu, no meio dos infernos com os seiscentos milheiros de diabos.

Um dia ainda escrevo algo tão bonito pra você, como o poema de Cora Coralina que você leu para mim numa madrugada. É só você continuar ao meu lado, dentro de mim, me embalando como filha e me possuindo como mulher de um jeito, que ninguém fez até agora e nem fará nunca. Só a tua claridade, sol das três horas da tarde na praia do Janga, para fazer desabrochar em mim uma paixão que quer a beleza, a arte, a natureza, o universo.

Na tristeza de tua ausência, sei que nas quatro semanas em que invadiste meu sobradinho, vivemos a felicidade das brincadeiras dos meninos pequenos. Nosso sentimento de entrega foi tão intenso, que já não sabíamos onde começava o meu corpo e terminava o teu. Se estávamos juntos, e estávamos quase todo o tempo juntos, nossos desejos se misturavam e não careciam sequer da palavra para tomar decisões comezinhas da vida. Precisávamos da palavra, sim, para contar uma história que fora interrompida por onze anos e agora começava a ser recontada com as mesmas tintas coloridas. Porém, às vezes, também chorávamos pelo tempo que ficáramos separados, pela Maria Emília que você não plantou no meu útero, pelos ombros um do outro para acalentar os sofrimentos da vida.

Sonho em criar poderes de ficar invisível e voar até junto de ti em Cotia. Me deitar a teu lado para alimentar-te com leite doce, mel das flores de jasmim. E te tirar da escuridão da noite para o sol do dia despontando em nossas praias desertas.

Voltarás segunda feira, Josué? Em cada ausência tua a dor é mais funda. Hoje, porém, um mal presságio ronda minha insônia. Pressinto que não retornarás segunda feira, nem terça, nem quarta. Nem sei se voltarás. E se tu morreres, Josué? Não, isso não. Morrerei antes de ti, nos teus braços. Não sei até quando irá a sobrevida prevista pelo cirurgião de Boston, quando supunha que eu, em coma, não o estivesse escutando. Esses médicos não sabem mesmo é de nada. Sou mais os chás e banhos de ervas de minha tia cabimbozeira.

Sabe, Josué? Não consigo te ver nos braços de Dolores. Não depois de nosso reencontro aqui em São Paulo.

O dia já amanhecia quando Emília parou de escrever, exausta, suando, com a janela do quarto fechada. Abriu-a de par em par e deixou entrar o vento da madrugada. Fazia silêncio. Foi até o quintal e colheu azaleias para colocar em um vaso em cima da mesa. Preparou um café preto e tomou com torradas.

A ferida continuava sangrando. Olhou o vaso de azaleias brancas e cor de rosa. Sem pensar muito (quem pensa não casa), pegou o telefone e ligou para um número que estava escrito em um pedacinho de papel marcando o poema de Cora Coralina no livro. Arriscou (quem não arrisca, não petisca). “Alô? Josué?” Ouviu do outro lado da linha uma voz fraca, falando baixo, acuada. Sem a arrogância do encantador de serpentes das noites paulistanas. Permaneceu calado depois que ela disse, “É Emília”. Quarenta segundos de silêncio é muito, ao telefone. Teria acabado tudo? As únicas palavras que Emília disse, antes de desligar o aparelho sem se despedir, “Sai dessa quaresma, Josué. Vem pro carnaval”.

Na semana seguinte, encontrou um bilhete embaixo da porta, “Aonde é o carnaval?”

Josué aparecia e sumia da vida de Emília, ora com pequenos intervalos de tempo, ora grandes. Dizia, brincando, “Você, Emília, é o meu Lítio”. Emília, castanhola plantada em terreno firme. Josué, coqueiro de folhas que voavam aos ventos fortes da vida. E assim se passaram mais de trinta anos… Até o dia em que resolveram cumprir os desígnios dos Orixás e partir juntos para buscar o Assentamento de Oxum na praia do Janga.

(continua no próximo domingo)

Emília

  1. Gerânios floridos

 

Emília desembarcou em São Paulo numa primavera incerta de 1965. Precisamente, 14 de novembro. Com a certeza de que os Orixás continuariam segurando sua mão. Agora, mais ainda, pois a busca em São Paulo seria mais difícil: sem guia, guardava apenas a lembrança de um garoto de 13 anos, seu primeiro amor. Mas sabia também que carecia usar razão e lógica para ajudar os Orixás nessa busca. Ora, se o Pai Alabi mandou encontrar Josué para ele ir buscar no Janga o assentamento de Oxum, significava que, em São Paulo, ele possivelmente estaria ainda ligado ao Povo de Santo. Tal como no Recife, também naquela grande e desconhecida metrópole, Emília começaria sua busca pelos intelectuais.

Tomou informações no aeroporto e foi direto para uma pousada, espécie de pensionato, na Vila Madalena. Nesse tempo, o bairro era o comércio da rua Teodoro Sampaio e imediações, e o resto, moradias tranquilas em ruas, vilas… Sobrados minúsculos de vizinhos lavando a calçada. Um ou outro restaurante, serralheria… A pousada ficava numa rua onde passavam ônibus, porém, o quarto de Emília, no andar térreo, dava para os fundos do prédio de dois andares e não era barulhento. Tudo muito simples, mas limpinho, boas toalhas de banho. A janela do quarto se abria para um pequeno pátio cimentado, com dois vasos de gerânios floridos. Para sempre São Paulo ficou sendo para Emília a vista dessa janela para dois vasos de gerânios floridos. Chegou à pousada tão cansada, que somente tomou um banho morninho (ah, que maravilha!) e caiu na cama para só acordar no outro dia, que era o feriado de 15 de novembro. Sozinha numa cidade onde não conhecia ninguém. A padaria estava aberta e era vizinha ao pensionato, no outro lado da rua. Primeira lição de São Paulo: essa cidade não fecha.

No dia 16 de novembro, uma sexta feira, tomou um taxi às nove horas da manhã com destino à rua Maria Antônia. Começaria sua busca pela USP. Através de algum professor de antropologia, localizaria talvez os terreiros de candomblé de São Paulo, possível caminho para encontrar Josué. Ao chegar ao saguão de entrada do prédio da Faculdade de Filosofia, a primeira coisa que lhe chamou a atenção foi um imenso quadro mural com recortes de jornal, avisos sobre atividades no Campus, etc. Afixado em um cantinho meio escondido desse quadro, havia o anúncio de uma seleção para trabalhar em uma organização de direitos humanos. Emília anotou o telefone no verso de seu talão de cheques. E ficou por ali, olhando as várias portas, indecisa para onde se dirigir… quando um estudante lhe perguntou se precisava de ajuda. Ele estava junto com outros, eram três rapazes e duas moças. Para eles, Emília disse apenas que precisava encontrar um primo, que fugira de casa aos treze anos, teria vindo, possivelmente, para algum terreiro de candomblé em São Paulo, e a família queria saber o paradeiro dele. Talvez um professor de Antropologia pudesse informar sobre os candomblés de São Paulo.

Uma mulata nordestina, elegante, bonita, perdida em São Paulo à procura de um improvável primo. Pressentiram nela uma futura militante. Alguém com o perfil certo para ser nucleada na luta por um país igual e justo. Compraram a busca de Emília como fosse mais uma das tarefas revolucionárias do Partido. Eram todos muito branquinhos e Emília se destacava no meio deles. “A pessoa certa para te conduzir ao caminho das pedras – dizia um -, é o nosso professor de Antropologia. Mas nesse momento está participando de um congresso em Lisboa”.

Apresentaram Emília à secretária do departamento e deram uma volta com ela pela biblioteca. Aproximava-se a hora do almoço. Convidaram-na para acompanhá-los, e foram a um boteco próximo, onde pediram um PF básico, feijão, arroz, bife e salada. Emília fez o mesmo pedido. Reclamaram da comida. “Paulista reclama de barriga cheia”, pensou ela. Comparava com o que era servido nos botecos próximos à sua faculdade. Aquele Prato Feito de São Paulo era um banquete! E ela refletia, “É. O Nordeste é pobre mesmo.”

No almoço, conversou mais com uma moça de cabelos castanhos amarrados num rabo de cavalo, magrinha, risonha. Ela estava curiosa a respeito de Emília, que disse rapidamente do curso de Ciências Sociais no Recife. Levou menos tempo percorrendo os quatro anos do curso, do que a moça para falar de uma única disciplina. “Sabe Emília? Isso é graças ao entusiasmo com que nosso professor, um dos mais jovens aqui da Maria Antônia (esse, que você vai conhecer quando ele voltar do congresso), fala das tribos africanas, da religião dos Orixás, de nossos ancestrais indígenas. Ele dá aula com vida, não tem quem não preste atenção. O professor Josué, é uma figura!”. Quando a moça de rabo de cavalo falou o nome, Josué, Emília tomou um susto. E ela percebeu. “Por que você fez essa cara, Emília?” “É que esse também é o nome do primo a quem eu procuro.” A moça magrinha e risonha dirigiu-se aos outros, que discutiam outros assuntos, “Pessoal, o primo da Emília, a quem ela procura, se chama Josué.” Descreveram os traços do professor: mais ou menos da altura dela, mais preto, cabelos penteados ao estilo rastafári. E até no maior inverno, vem dar aulas sempre com umas sandálias de couro parecendo as de vaqueiro sertanejo. “Não, não fala com teu sotaque tão carregado.” O que disse isso, corou um pouco e tentou consertar elogiando o professor, “Às vezes, em sala de aula, se sai com alguma palavra engraçada, desconhecida para nós, e ainda goza da nossa cara. ‘Vocês são uns italianos que não conhecem a riqueza da língua portuguesa.’”

Agora acrescentava-se um ingrediente excitante ao trabalho de detetive do grupo. Seria o professor Josué, o mesmo Josué que fugira de casa aos treze anos?

 

 

No pensionato, Emília tomou banho, passou creme hidratante no corpo, ficou mais tempo do que o costumeiro em frente ao espelho, arrumando os cabelos, em dúvida se punha ou não batom. “Será? Não é melhor ir de rosto lavado, cabelos ao vento, sem nenhuma pintura? Como será Josué de cabelos rastafári? Será que vou reconhece-lo? E ele?” Só conseguia ver o rapazinho de treze anos e meio, os olhos de jabuticaba, os ombros largos de pescador, uns braços e um peito que um dia acolheram seus medos.

O dia amanhecera ensolarado e quente, abafado. Talvez fosse prenúncio de chuvas. “Chuva é um elemento da natureza que carregamos dentro de nós, talvez porque somos mais água que sólido. A minha chuva é no inverno. Em São Paulo a chuva é no verão. A gente se acostuma com a comida, com o sotaque, com a pressa do povo… até com a estranheza deles com nossa fala, quando nos perguntam, ‘e você, é de onde mesmo?’. Mas chuva no verão? Chuva é a que a gente carrega da infância.”

Chegou em frente à Faculdade de Filosofia às nove horas em ponto. A secretária informou que o professor só chegaria às dez. Voltou para rua e foi na direção da Igreja da Consolação. Desde que chegara a São Paulo não entrara ainda em nenhuma igreja. Aquela era bonita, mas sem os rococós de ouro das de Olinda e do Recife. Umas mulheres rezavam o terço nos bancos próximos ao altar. Ajoelhou-se no último, fez o sinal da cruz e rezou as três ave marias costumeiras à primeira vez em qualquer igreja. Saiu para o dia de sol e foi procurar um banco sombreado na praça. Voltava a imagem de Josué no Janga.

Está assim em devaneios, quando vê descendo do ônibus um negro de cabelos rastafári e calçando alpercatas de vaqueiro. Enquanto ele aguardava para atravessar a rua, Emília disparou correndo em sua direção. Ele deve ter pressentido algo porque, de onde estava, com outros pedestres esperando o sinal abrir, olhou para trás. Viu aquela moça correndo em sua direção. “Para mim, Emília, você foi uma aparição. Eu tinha sonhado uns dias antes com uma figura poderosa, como se fosse um leão. No sonho, não sabia se era eu esse leão ou alguém que iria aparecer na minha vida. Você foi essa aparição, Emília.” “E como você soube que era eu, Josué?” “Ora, minha prima, por causa do sonho. Não tive dúvida.” Porém, o que Josué disse a Emília muito tempo depois, recordando aquele encontro, foi outra coisa. “Lá vinha correndo para mim aquela moça linda, linda como até então só havia visto uma mocinha medrosa e envergonhada de treze anos, que me fizera sentir a primeira sensação de homem. E quando chegou perto com aquele vestido de florzinhas que mostrava as pernas perfeitas, os braços luminosos pelo sol, o colo bronzeado e o começo dos seios fartos … quando chegou perto com um sorriso que mostrava os dentes brancos e perfeitos, um sorriso que escondia um pouco os olhos verdes da cor do mar das nove horas da manhã na praia do Forte de Pau Amarelo, já não tive dúvida. Aquela é Emília”.

O mundo parou. Os outros atravessaram a rua quando o sinal abriu. Emília e Josué caminharam na direção contrária, ao banco da praça onde ela estivera sentada. Só então se abraçaram de novo, agora sem o ingrediente do espanto. Inundava Emília uma alegria menina, das primeiras férias na praia do Janga. Se sentaram. Josué esqueceu a mão em cima da mão de Emília. Virada para ele, contra o sol, Emília observava os traços do rosto do primo. Era um rosto mais cheio, com barba espessa, bigodes. Viu o sorriso dela refletido nos olhos de jabuticaba dele. E não conseguiu prestar atenção ao que ele dizia. Ouvia o timbre da voz, um pouco mais grave do que no tempo do Janga. Uma voz que a embalasse ao colo.

Josué havia perdido muito do sotaque pernambucano em troca de uns esses e erres paulistas. “Ossos do ofício”, dizia ele. “Trabalhei muito em Construção Civil, prima. Nunca fiquei desempregado aqui em São Paulo. E aprendi que, enquanto não sabemos a língua da terra, melhor ficar calado. Eu via nos ônibus, nos trens, quando o camarada começava a falar arrastado, “anda logo, baiano, que a fila está grande”. Aí eu passei a imitar a fala dos companheiros das construções. Naquele tempo São Paulo não parava de crescer para cima. Ainda peguei casarões da Avenida Paulista sendo derrubados, uma judiação! E você, Emília? A última que soube tua, você tinha ido morar nos Estados Unidos para estudar em Harvard. Ah, minha prima, não sabe como fiquei orgulhoso de você!” “Oxente, Josué, como você soube? Lá ninguém tinha notícia tua. Você é tido como desaparecido.” “É uma longa história, Emília. Eu tenho de chegar na universidade, que minha aula é daqui a pouco, às 10 horas.”

Marcaram para se encontrar ao meio dia e meio no mesmo banco. O resto da manhã Emília conheceu o Mappin e o Viaduto do Chá. “Vá lá, Emília. Ali é um pedaço de nossa raça negra em São Paulo”.

 

 

Enquanto o ônibus descia a rua da Consolação, Josué vinha calado, a mão ainda esquecida na de Emília, como se pousada por distração em cima de um móvel. O olhar distante… Ao chegarem defronte à pousada, Josué puxou Emília para o outro lado da rua, aonde estava a padaria. Sentaram-se numa mesinha na calçada sem vizinho ao lado. Josué chamou o garçom, “Sílvio, essa é minha prima, Emília, conterrânea nossa e que está hospedada aqui na pousada vizinha. Emília, Sílvio é o melhor garçom de São Paulo. Sabe a bebida favorita de todos os fregueses. Vai tomar o que, Emília?” “Eu te acompanho, Josué. Cafezinho?” “Não Emília. Acho que estamos precisando quebrar um gelo de onze anos.” E, dirigindo-se ao garçom, “O de sempre, Sílvio. Para dois.”

Novo silêncio. Emília tomou a iniciativa e voltou à pergunta que ficara sem resposta no banco da praça Roosevelt. “Josué, como você soube dos Estados Unidos?”

O garçom chegava com dois chopes com colarinho e duas cachaças em copinhos. Brindaram. “Ao reencontro”. Josué tirou do bolso um maço de cigarros Continental sem filtro. Emília não aceitou. E disse, mais para provocar, “Só fumo maconha, Josué”. “Trouxe?”. “Não. Estou em abstinência desde a viagem à África.” “Viagem à África? Dessa eu não sabia”.

Emília aprendia com Josué a misturar goles de cerveja e um de cachaça, à maneira de Noel Rosa. A geladinha caia bem no calor da tarde. Alguns cigarros depois, Josué sabia do pedido da avó, da viagem à África, tudo ainda pulsando no coração de Emília. Quando parou de falar, tomando mais um gole da branquinha de Minas Gerais, Emília pensava, “Escutou-me como fosse eu uma aluna em seminário. Não fez nenhum comentário sobre a missão a ele conferida pelos Orixás. Ouviu como se esse Josué de minha narração não fosse ele.”

“E Harvard, Emília? A última carta que recebi de tia Ceiça dizia que você havia viajado para os Estados Unidos e lá ficaria por alguns anos, até virar doutora de Harvard” Ao riso de mofa de Emília, ele completou, “Foi essa mesmo a expressão usada pela nossa tia. Não disse qual curso você faria lá, nada.” “Ah, não, Josué. Antes de eu te contar de Boston, quero saber dessa tua correspondência com tia Ceiça. Até quando eu saí do Janga, já disse, você era tido como desaparecido.”

Muito chope, muito Continental sem filtro, uma pizza, uma urgência de falar, falar, numa tarde com o sol da Vila Madalena já batendo nos pés dos dois na calçada da padaria. Falar pelos onze anos distantes um do outro. Da viagem de Josué como ajudante do tio, que abandonara o ofício de pescador pelo de motorista de caminhão. “E você trabalhou até como Calunga, Josué? Como chegou a professor da USP? Essa tua história, como costumam dizer, dá um livro.” “E a tua, Emília? Veja o mote: uma futura doutora por Harvard, que abandona a fama e a glória, para obedecer a desígnios misteriosos que escapam ao nosso entendimento com as ferramentas da razão.”

“E na correspondência com a tia Ceiça, Josué, até onde você soube de mim?” “Sei que você se formou em Contabilidade no colégio das freiras, foi trabalhar em um escritório na avenida Guararapes, casou-se com um tal Luizinho, que numa festa de ciranda havia se encantado com a Oxum que te habita. Sei que com ele você teve um filho, e que esse marido, branquelo de merda, te abandonou com o filho pequeno. E que depois você deixou o menino com tia Maria e foi estudar em Boston. Estou certo?”

No quarto do pensionato, o dia seguinte amanhecia. Emília e Josué não se saciavam da palavra. Outros desejos, quase dormiam ao lado deles numa cama de solteiro. Emília soube de Dolores, a moça protegida da tia Ceiça, que veio com Josué e o tio na primeira viagem, hoje Filha de Santo num terreiro de Cotia; e que essa Dolores foi o esteio seguro, para Josué percorrer todos degraus da via sacra até chegar ao sacrossanto templo da Maria Antônia.

 

 

Emília

  1. Mãos de lavadeira

 

Naquela noite Emília não conseguiu conciliar o sono. Dormia cochilos, com sonhos que fugiam de sua lembrança, logo acordava com os roncos da avó da casa, com quem compartilhou um quarto apertado. Um calor abafado. Insetos picavam e zuniam. Emília levantou-se e foi para o terracinho do tamanho de sua esteira, um metro e setenta ao comprido.

Sem lâmpadas de eletricidade perto ou distante, espiava o céu africano. Uma brisa forte cheirando a mangue, vinda do rio Cachéu, espantou o zunido dos mosquitos. Ouvia agora a noite profunda da África. Não podia ler, um hábito das insônias. Mirava as estrelas cintilando como em noite de festa, que ali pareciam lhe dizer: sempre existe alguma festa dentro de você, moça.

Lembrou-se do aniversário de quinze anos na casa da avó no Janga.

 

  1. Eu cursava o quarto ano ginasial. Desde o fatídico aniversário de treze anos, o dia 21 de maio não foi mais motivo de comemoração para mim, até muitos anos depois, quando minha vida já se afastara do Velame, do Pina, do Janga. Porém, nas férias de verão daquele ano, a avó quis me fazer uma surpresa. Depois do almoço, “Traz o bolo, Ceiça.” “Mas vovó, o aniversário já passou.” “Eu sei, minha filha. Mas você tem quinze anos até 21 de maio do ano que vem. É somente mode não passar em branco uma idade tão bonita. Não sei quanto tempo de vida vou ter pela frente, Emília. Faça esse gosto para a sua avó.”

A tia trouxe um bolo de massa de mandioca com quinze velinhas brancas. Depois dos parabéns, “Vamos lá no meu quarto, minha xará.” – Lá entregou-me, quase solenemente, o presente de aniversário: o adereço de cabeça usado por ela nas cerimônias sagradas. Fora a derradeira tentativa de minha avó, em vida, de me transmitir a descendência africana da religião negra.

Nas férias grandes de dois anos atrás, em que deveria me tornar abiã e fazer o noviciado para ser filha de santo, eu havia pedido permissão à avó para adiar a decisão. Ela foi tranquilizada naquela ocasião por uma mensagem de Ifá pelos búzios. O recado dos deuses era para ela ter paciência, que um grande futuro estava reservado para aquela Casa de Santo.

Depois do almoço, do bolo, dos parabéns e do presente, fui ajudar Maria Emília a lavar a louça. Acabada a limpeza da cozinha, fomos para a fresca da Castanhola em frente de casa, onde já estavam as tias e algumas primas. A avó, na rede da varanda, ora cochilava, ora ouvia a prosa e palpitava. Era um dia quente de verão.  Quando o sol principiou a encompridar as sombras para o lado do mar, Maria Emília me chamou para uma caminhada. “Deixe as alpercatas aqui, Emília. Vamos descalças. A areia da praia a essa hora não queima mais a sola dos pés.”

A maternidade de Maria Emília comigo era distante. Eu nunca havia me sentido à vontade como filha. Os trinta dias de convivência no Pina, a perversidade das irmãs, o estranhamento das refeições, da casa, da vizinhança… No Velame, eu era uma menina mimada por duas empregadas e um pai que me faziam todas as vontades. Nunca havia lavado um talher, um copo. Não sabia o que era forrar uma cama.

Nos primeiros dias, Maria Emília parecia Carmem, como se fosse ainda a empregada doméstica do doutor Juvenal e dona Heloísa, cuidando da princesa que não vira crescer. No primeiro dia em que me ofereci para ajudá-la nas tarefas de casa, esse gelo começou a ser quebrado pelas beiradas. Fazer junto as tarefas comezinhas de varrer casa, preparar comida, lavar louça, favorece uma proximidade que a gente experimenta em poucas situações na vida.

Quando Maria Emília me chamou para caminhar, eram mais ou menos três e meia da tarde. Até às cinco, o mar de esmeralda desses nortes esplandece em tantas cores e tão rápido, que deixaria um Manet, acostumado aos lentos entardeceres europeus, desnorteado com suas tintas. Caminhamos quase meia hora sem pressa e sem pronunciar palavra. A maré estava a meio caminho entre o mar cheio e seco. Havia chovido na véspera, e num trecho de praia andávamos por sobre sargaços, um tapete verde e marrom macio aos pés. “Cuidado, Emília, para não pisar nessa caravela.”

Descalças, as ondas molhando os pés e as pernas, às vezes a barra da saia, chegamos às margens do rio Doce. Ali esbarramos. Até então, Maria Emília vinha entretida com seus pensamentos, como alguém que estivesse preparando um discurso de improviso. Sentamo-nos num pedaço de areia no encontro do rio com o mar. O lugar do encontro das águas doces com as águas salgadas é sempre sítio sagrado, onde Oxum vem tomar a bênção à sua mãe Iemanjá. Ali ficamos ainda um tempinho caladas. O sol caminhava para o crepúsculo. Alguém que espiasse de longe, diria, duas amigas.

Segurei a mão de minha mãe. Igual ela fazia comigo quando me levava ao ponto de ônibus no Pina. Mãos de lavadeira. Ela teve um sobressalto, quase imperceptível. Estávamos distraídas uma da outra, num silêncio só cortado pela disputa do rio com o mar, o encontro magnífico das águas.

Ela olhou-me, sorriu, e disse, sem preâmbulos.

– Minha filha, seu pai é seu pai. – Será que eu sempre soube? Desvendava-se o último segredo. E Maria Emília abriu o coração, como uma amiga confidente. – Quando a barriga começou a aparecer, voltei para o Janga. E você, minha filha, nasceu numa noite de lua cheia. Comecei a sentir as dores do parto no meio de uma festa de santo. Baixou meu orixá e dancei, dancei, até uma contração forte. Dei um grito e me levaram para a camarinha de sua avó. Não dava tempo de chamar a parteira. Foi pelas mãos de minha mãe, tua avó, que você viu a luz do dia que começava a clarear. 21 de maio de 1941.

 

Deitada no terraço da pequena casa de taipa dos conterrâneos de Braima, Emília viu as estrelas se recolhendo às primeiras claridades do sol, e ouviu distante o primeiro galo da madrugada. Dentro de casa ainda reinava o silêncio. E ela continuou entregue aos pensamentos trazidos pela brisa do rio Cachéu. Parecia que sua avó estava ali, ao lado dela, como sempre esteve, mesmo depois de morrer.

 

O ano de 1954 foi tão longo na minha vida quanto estava sendo esse, de 1965. Nas férias grandes de verão daquele ano, faria o noviciado no terreiro da avó para ser Filha de Santo. Ah, quantas dúvidas me assaltaram o espírito naquela ocasião! Enquanto arrumava as malas no colégio para ir ao Janga, “Será que quero mesmo ser Filha de Santo? Perpetuar uma tradição que só fui conhecer aos treze anos, e é tão diferente de tudo o que foi minha vida até hoje?”

Perdi a fé católica no angustioso dilema entre abraçar a religião africana ou permanecer naquela onde fora criada. Já não tinha significado para mim os diálogos com o Padre Carício, que, à minha confissão sobre o dia em que havia sido incorporada por Oxum, impusera-me pesada penitência de muitos terços e até uma pedrinha no sapato para expiar o pecado. Encantavam-me os rituais do terreiro, a conexão dos deuses com os elementos da natureza. Deuses que baixavam do céu (Orum) à terra (Oiá) pelo corpo de seus devotos em transes espetaculares. Na religião católica, Cristo se dá a comer e beber aos fiéis na hora da comunhão, em contrição. Nos ritos do Candomblé, ao ritmo dos tambores, das músicas, das danças, a comunhão é de cada filho com o seu santo, que se incorpora nele em festa. Tudo tão bonito, colorido, alegre… Descobri por que eu era tão atraída pelas águas doces dos rios e das cachoeiras, Oxum, e pelas águas salgadas do mar, Iemanjá.

Porém, quando fechei a mala com a decisão de passar as férias com a família no Janga, não sabia ainda se lá seria ou não Abiã. Com minha indecisão (isso o leitor já soube), a avó ouvira o oráculo e me dispensara das obrigações do noviciado naquele momento.   

 

E assim se passaram onze anos. As voltas que a vida dá. Estava ali Emília, deitada numa esteira no terracinho de uma casa estranha, ouvindo os primeiros ruídos de pessoas se levantando e abrindo a porta dos fundos para ir buscar água na cacimba. Levantou-se. Chegara a hora de ir com Braima consultar o Pai Alabi.

O velho babalorixá os recebeu em seu Quimbo, onde morava com quatro esposas, cada uma na casa dela, e muitos filhos. O quimbo é um agrupamento de palhoças de taipa cobertas de palha, ao estilo das que Emília vira pelo caminho na viagem de barco de São Domingos a Cachéu. Nesse, onde morava o Pai Alabi, as palhoças situavam-se em torno de um pátio central, semelhando nossas habitações indígenas. A cozinha ficava nesse pátio e era de uso coletivo para todas as mulheres. Ali, as crianças brincavam; as moças conversavam, trançavam os cabelos; as mulheres abriam mariscos, preparavam comida. Uma mãe catava piolhos na cabeça de uma menina.

Foram recebidos pela mulher mais velha do Pai Alabi, uma mulher de porte altivo, alta, magra. Usava um vestido comprido, solto no corpo, com estampas esmaecidas de um tecido que devia ter sido muito colorido em rosas, verdes, amarelos e branco. À cabeça, portava um pano do mesmo tecido, menos desbotado. Dirigiu-se a Emília com um sorriso discreto de bem receber, sem fazer perguntas, como se soubesse já o motivo da visita. E cumprimentou-a com um abraço de cada lado, como costuma fazer o povo de santo. Pediu para Braima permanecer na entrada da casa e levou Emília para dentro. O que Emília viu primeiro foi um fogareiro aceso ao fundo da sala. Lá estava o Pai Alabi.

A mulher deixou Emília numa esteira ao rés do chão, ao lado de outra, onde estava sentado o Pai Alabi. Com o contraste da claridade tropical de fora e o escuro de dentro da casa, ela não vislumbrou a princípio a fisionomia do pai de santo. Pela maneira como a mulher se dirigiu a ele, percebeu que era cego. Ela falou com ele em crioulo. Ele nada respondeu. Apenas assentiu com a cabeça.

A vista de Emília ia se acostumando à meia luz e, aos poucos, distinguia um homem baixo, magro, de grande serenidade no rosto. Fosse branco, seria a figura de Dom Helder Câmara. Emília não careceu contar dos últimos dias da avó Emília, do sonho da tia Nenê, do caderno com o nome dele.

O Pai Alabi pediu que Emília repetisse o nome dela de pia. Ao ouvi-lo pela segunda vez, ele teve um ligeiro sobressalto. Tateando, procurou a mão de Emília. Levou-a à boca e beijou. Em torna, Emília beijou a dele, como fosse a bênção aos mais velhos que aprendera em menina. Naquele momento, o sentimento de Emília foi de que, há muito, estava sendo esperada como alguém especial. O velho babalorixá chamou a mulher e pediu a ela a presença do neto.

Dirigiram-se os três a uma árvore que ficava a poucos metros de distância do Quimbo, um Baobá, que tinha um pano branco envolvendo o tronco. Ordenou ao neto para ir buscar a tábua de consultar Orunmilá. O sol das dez horas da manhã estava forte. Soprava, contudo, uma brisa agradável embaixo do Baobá. O Pai Alabi vestia uma calça de tecido cru, folgada no corpo magro e amarrada na cintura por uma embira, cujo nó aparecia embaixo da túnica branca que descia até quase os pés. Portava um turbante branco. De pés descalços, procurou pelo tato dos pés determinada raiz daquela árvore, onde se sentou com a ajuda de Emília e do neto. Mandou que Emília se assentasse na raiz em frente à dele. O neto permaneceu ao lado do avô, em pé.

O Pai Alabi pediu para que Emília fechasse os olhos e se concentrasse no motivo de tê-lo procurado, o motivo da avó. Que fizesse alguma oração e depois ficasse em silêncio até ele começar a jogar os odus. “Eu me afastei do povo de santo, meu Pai. Dediquei-me a estudar. Só me lembro de rezas do tempo do colégio das freiras católicas.” “Pois reze essas, minha filha”.

Com a leitura dos dezesseis odus, que Emília conhecia no terreiro da avó como búzios e que lá eram nozes de dendê, o Pai Alabi revelou, primeiro, o que Emília já sabia: que o ori dela era de Oxum, no centro da cabeça, sendo o ajuntó (os lados da cabeça) de Iemanjá. Depois fez outras invocações em yorubá e jogou as nozes de dendê muitas vezes. Pelo tato, o Pai Alabi sabia se caiam no tabuleiro virados para cima ou para baixo. Por fim, falou em crioulo, pedindo ao neto para traduzir tudo para Emília assentar no papel. Ela tirou da mochila o caderno velho de Josué. Com a solenidade de um ritual, o Babalorixá transmitiu a Emília o recado dos orixás.

– Emília, você volta para o seu país e vai procurar Josué aonde ele estiver. Com a morte de sua avó, a grande Yalorixá do terreiro do Janga, o assentamento de Oxum carece de ser retirado de lá, e levado por você mais Josué do Janga para São Paulo. Em São Paulo, Josué carece de procurar um terreno perto de um rio, aonde plante todas as nossas ervas e tenha bom lugar para construir a casa e o terreiro. – “Vigie depois, menino, para sua avó entregar a Emília as sementes que ela vai levar”, disse ele ao neto. – Essa, minha filha, é a sua missão na terra. Oxum quer levar o conforto espiritual para seus filhos, que das terras do Norte fugiram de grandes estiagens para trabalhar nas construções do Sul.

Emília não tinha notícia de Josué desde que ele abandonara o Janga, naquele mesmo ano em que se apaixonaram, 1954. O primo havia ido com um tio para São Paulo e nunca mais dera notícia.

Se encontrara o Babalorixá Alabi em Cachéu, Emília não tinha dúvida de que acharia Josué em São Paulo.

 

(Continua no próximo domingo)

A frágil vida humana

26 de agosto de 2020

Ontem a morte bateu de novo à minha porta. Morria meu cunhado, Plínio, tão irmão quanto meus irmãos. Chorei no telefonema de Rosa, de Brasília, como se estivéssemos abraçadas uma à outra, inconsolável ela, o choro de uma tristeza que só sabem as viúvas de casamentos duradouros. Ontem foi dia do Soldado e minha irmã lembrou disso. E até rimos, à recordação de Plínio recruta, ela ligando de um orelhão perto da Casa da Universitária, doença em família, uma mentira que rendera uma noitada recifense para os namorados, no tempo em que as praças do Brasil eram abertas.

Ocupei-me o dia de ontem com a morte, os avisos, os retornos dos amigos, da família, a nota de falecimento para a imprensa, as lembranças. Do que se passou com minhas emoções, a ausência do contato físico em nada alterou o que sentiria se estivéssemos todos juntos nas cerimônias do velório e do enterro. Como se a palavra escrita se revestisse de mais força.

Hoje não consegui ainda retomar o novo episódio de Emília. A morte dormiu e acordou comigo. Penso mesmo que ela tem sido uma companhia antiga na minha vida.

  1. Meu pai deitado numa cama trazida do Hospital Pedro II, onde fizera residência na segunda metade dos anos trinta do século passado. Os dois filhos mais velhos se ocupavam das providências médicas; o do meio, na força dos braços jovens de dezoito anos, enfermeiro; as duas mais novas, minha irmã e eu, nas tarefas comezinhas de ajudar nas arrumações de uma casa movimentada pelo entrar e sair de médicos, familiares, amigos. Alguma dessas tarefas eu fazia no quarto de meu pai, quando adentra o dr. Hindenburg Lemos, primo de minha mãe, companheiro dele de antigas venturas médicas, meu padrinho. Permaneci sentada na cama que ficava perpendicular ao leito do paciente. O colega médico postara-se de pé, encostado à janela aberta. De onde eu estava, via-o impecável em seu terno branco, o jeito brincalhão com que sempre os via quando se encontravam. Puxava assuntos triviais.

– É, Bubu. Você aí disfarçando tão bem. Já fiz muito isso. E sei que é o momento mais difícil na vida de um médico, quando toma tento de que não é Deus – Quando deu fé de que eu ouvia, olhou-me com um ar pesaroso, mas tentou rir e, com carinho na voz, – o que você faz aqui, minha lourinha? Ande, vá continuar o que estava fazendo.

A crença na vida eterna certamente foi o bálsamo para que meu pai olhasse a morte de frente, deixando um diário, que conservo, escrito numa cadernetinha onde misturou anotações médicas, reflexões sobre a vida e a morte, contas de seu recente empréstimo no banco Lar Brasileiro para comprar a casa do Recife na rua professor Edgar Altino. Os dois outros moribundos que acompanhei até a hora derradeira, lutaram como quixotes contra aquela que chega sem dó nem contemplação na hora certa. Tão certa, segundo crença popular, como a hora em que se chega ao mundo.

Mais uma derrota da frágil vida humana para o destino inexorável do homem.

Emília

  1. Doutor Juvenal

 

Se o leitor retroceder ao início dessa novela, vai recordar que em outubro de 1965 Emília desembarcava no Aeroporto Internacional dos Guararapes, acompanhada de um negão, e, de longe, fazia sinal para Maria guardar segredo do que via. Maria era grande amiga desde o colégio das freiras. A única a quem Emília escrevera sobre a verdade da internação, pois, aos outros correspondentes – a mãe e o pai –, disse da geografia de Boston, das linhas de metrô, das municipalidades agrupadas, às vezes em uma mesma rua, como na Comonwealth Avenue, o Harvard Square com a animação juvenil dos fins de tarde. Com Maria, Emília havia comemorado o dia da alta no hospital, com peixes e vinhos no Leagal Sea Food.

Desde a despedida no aeroporto, perdera contato com a amiga. Estivera envolvida com a missão confiada a ela pela avó moribunda, através da tia Nenê, de empreender longa jornada para ir buscar recados dos Orixás. Quando se viu com a decisão tomada, tendo como mapa e guia um caderno velho com as palavras África, Cachéu e Alabi, Emília ressuscitou nela a mulher racional. Era hora de procurar Maria.

Viúva fresca, Maria andava flauteando por reuniões literárias, festinhas, saraus musicais. Foram naquela noite a um sarau. Só que o músico propriamente, um que tocaria violão para todos ou cada um cantar, não apareceu. Então. Bebia-se, comia-se, fumava-se, conversava-se. Na hora em que Emília foi apresentada como alguém que estava indo à África para cumprir um mandado dos Orixás, e precisava decifrar três palavras – como quem decifra uma grafia diversa da que conhecemos -, aqueles jovens advogados, engenheiros, professores, chegaram ao entorno dela como insetos atraídos pela luz.

– Sim, vamos ver, traz o mapa… onde fica Cachéu? Uuumm, mas logo a Guiné Bissau, Emília? Essa orixá não podia ter escolhido outro pais que nesse momento não estivesse em guerra? – Era daqueles que, pela vida afora, nunca vão perder o espírito de militância. Por um acaso, que Emília logo entendeu não como acaso, mas como caminhos que principiavam a ser traçados para ela pelos deuses que habitam no Orum, aquele jovem advogado estava justamente naquele momento acompanhando de longe, por rádio e pelas parcas notícias da imprensa, os desdobramentos das revoluções de libertação nacional de países da África. Guiné Bissau e Cabo Verde eram a bola da vez. Emília teve uma aula de história. Ao final do sarau, madrugada alta, muitas garrafas vazias, já dispunha de uma estratégia de guerra: Paris-Dakar de avião; dali atravessar a fronteira, clandestinos, ela e algum guia que carecia conseguir lá; e cruzar a fronteira perto da nascente do Rio Cachéu, tomando dali, já no lado da Guiné Bissau, uma embarcação até a cidade do mesmo nome. Sobrava para ela o enigma principal: descobrir quem era Alabi.

 

 

Porém, antes de partir para a aventura, Emília carecia resolver dois assuntos de ordem prática: com quem deixaria José; e quem bancaria os custos da viagem. A solução para o filho já estava dada desde antes, quando Emília deixara José para a avó tomar conta pelo tempo que durasse seu curso fora do país. A essa altura da vida, com vinte e quatro anos, Emília já sabia que o filho seria mais bem criado pela avó do que por ela. Sabia que as pessoas carentes de mãe na infância guardam na alma uma lacuna que nada preenche. Não tendo aprendido em pequena o que é amor de mãe, não sabem o que oferecer ao filho. Portanto, tudo continuaria como já estava, José aos cuidados da avó.

Até então, a fonte de sustento para Emília havia sido as cabeças de gado das fazendas do pai. (Com a única exceção do curto período, de menos de três anos, em que viveu casada, morando e trabalhando no Recife.) Mais uma vez, iria beber nessa fonte. Na viagem ao Velame, abriu a janela do ônibus ao passar pela mesma cerca de arame onde, há menos de quinze dias, fizera Pantélia parar o jeep. Agora, mesmo de longe, à terra molhada por uma chuva ligeira e a um ventinho fresco que entrava pela janela aberta, sentiu aquele cheiro de infância.

No Velame encontrou o pai mais abatido. As prescrições médicas após o enfarto lhe haviam roubado alguns quilos. Ele tomou um susto ao ver chegar Emília. De pronto, com uma alegria saindo pelos olhos claros, realçados por uma testa que parecia maior, os cabelos rarefeitos e grisalhos concentrando-se perto da nuca, não quis saber por que ela ali, quando deveria estar em aulas. Falava das cartas de Emília, com o entusiasmo com que defendia uma causa no foro. Ria da comparação do rio Charles com o rio Capibaribe. E Emília pensou, Ele nem sequer imaginava que essa carta eu escrevi recostada na cama inclinada de uma enfermaria, à luz da réstia de sol que iluminava os trinta centímetros pelos quais aquele rio chegava à minha retina pela janela.

Proseavam, cada um em sua rede, no mesmo terraço onde ela soubera um dia a verdade da adoção. Naquele dia, 21 de maio de 1954, Emília havia completado 13 anos. Foi também naquele dia que ficou moça. Calados, se balançando, que era como o doutor Juvenal gostava de ficar um bom tempo, antes de prosseguir uma prosa. Emília recordava aquele dia. Como uma premonição, acordara com um trovão ao longe. Com pouco, a água escorria pelo telhado. Abriu a janela para sentir o cheiro de terra molhada. Nessa hora, viu o clarão do relâmpago cortando o céu, antes de ouvir o estrondo de outro trovão ainda maior. Teria caído algum raio? Teve ímpeto de fechar a janela. Mas não resistiu ao cheiro da primeira chuva do inverno. As rosas de abril ainda rescendiam em maio. Fechou os olhos para sentir melhor os cheiros e ouvir os pingos d’água, que formavam uma cortina de cristal pelo lado de fora da janela. A madrugada chuvosa e úmida esfriou seu rosto e braços. Foi até a escrivaninha, abriu o estojo de lápis e voltou com o terço na mão. Ajoelhou-se de novo no colchão, as mãos recebendo respingos da cortina de chuva; rezou o terço.

Depois, fechou a janela, os postigos, e, embalada por um pingo monótono em uma lata velha num canteiro de rosas, adormeceu, para só acordar a tempo de se arrumar para ir ao colégio.

Após o almoço meio festivo daquele 21 de maio de seu aniversário de treze anos, lia um romance deitada na rede. Voltara a chover. Chuva e sol. Concentrada na leitura de M. Delly, quase não percebeu quando Natércia chegou junto dela, segurou o braço da rede, balançando-a um pouco.

– Ói, Emília, eu vou te dizer uma coisa que ninguém até hoje teve coragem. – Natércia estava em pé, vendo de cima para baixo quando Emília interrompeu a leitura e olhou para ela, que mostrava um sorriso desconfiado. Fez cara de mistério, olhou para os lados, a ver se não havia ninguém por perto. Baixou a voz. – Você promete guardar segredo?

– Sim, Natércia, prometo. Conta logo.

– Minha mãe conhece tua mãe de verdade. Ela é casada com um pescador e mora no Recife.

Emília pulou de um salto da rede e se sentou numa cadeira. Chamou a arrumadeira para se sentar na cadeira ao lado. Ficou um tempo sem falar nada. Depois disse,

– Você está brincando comigo, Natércia?

– Não, Emília. Foi minha mãe quem pediu para eu te contar. Tua mãe de verdade quer te ver.

– E meu pai?

– Teu pai não é o marido dela. Foi-se embora pra São Paulo e nunca mais voltou nem deu notícia.

Natércia ficou assustada quando Emília principiou a chorar. Mas não desdisse. Foram até a cozinha e a cozinheira, Carmem, confirmou. Era verdade.

Trancada no quarto, Emília não viu mais os pais naquele dia. No dia seguinte, Quinta Feira Santa, alegando lições do colégio, não os acompanhou à fazenda do avô. Sozinha em casa, sob os cuidados vigilantes das duas cúmplices de sua mãe de sangue, vagava pelos cômodos daquela casa espaçosa e confortável, que agora lhe parecia estranha.

Filha adotiva… Martelando na cabeça.

O doutor Juvenal, na rede dele, lembrava de um dia invernoso de julho, três meses atrás, quando Emília o procurou para dizer que havia sido aprovada em Harvard. Lembrava daquele como um dos dias mais felizes de sua vida. Também naquele dia ela chegara de surpresa. Com aquele constrangimento de pedir o que para ela era muito e para ele tão pouco, botando na balança gastar o que um dia seria mesmo dela, em troca da filha realizar o grande sonho dele – maior, muito maior do que simplesmente ser advogada. Jurista formada em Harvard!

Ao baixarem ao presente, Emília contou do desmaio no guichê da secretaria da universidade, onde acabara de receber a carteira de estudante, da cirurgia no coração, repetindo a mesma história dita à mãe. E o pai reagiu com o mesmo conhecido ditado, de que Deus escreve certo por linhas tortas: “A crise de coração deixou para acontecer quando você estava no lugar certo, Emília, com a medicina que podia te curar.” E Emília, balançando a rede com o calcanhar na pilastra do terraço, criava coragem para dizer o motivo principal da visita. Ao ouvir os planos da África, foi a vez do doutor Juvenal dar impulso de balanço na rede e dizer, com a voz um tanto impaciente, “só não entendo, minha filha, você, uma moça tão inteligente, resolver seguir a maluquice dessa tia catimbozeira.” Ficaram mais um tempo se balançando. Até que o juiz de direito interrompeu o silencio e, levantando a voz, pediu para Carmem coar mais um café. Chamou Emília para a mesa de jantar.

Emília observava o pai, que sorvia goles estalados do café preto muito quente, pousava a xícara no pires a intervalos, as mãos cruzadas sobre a mesa, rodando os polegares um no outro. Olhou para a filha com um ar desolado e disse sério, quase como um padre num sermão de missa, “Quem somos nós, Emília, para julgar desígnios misteriosos da vida? Nessa última estiagem morreram muitas cabeças de gado. A cobra picou outras tantas, na conta feita pelo administrador, sem o olho do dono. Mas ainda tem muito boi no pasto que paga muitas viagens tuas, minha filha. Para a África. Para os Estados Unidos. Para a China…”

O pai falava agora com uma tristeza na voz, um olhar distante, que não parecia ter nada a ver com o projeto interrompido de Harvard e o plano maluco da filha de viajar para Guiné Bissau. Alguns anos depois, quando Emília veio de São Paulo para os momentos derradeiros e o enterro do doutor Juvenal, compreendeu que, naquele último encontro dela com a lucidez do pai, na fala que se seguiu, ele já mirava, com mais medo do que esperança, a indesejada das gentes.

– Emília você é muito jovem. Vinte e quatro anos é o começo da vida adulta e você já viveu tanto! Já é mãe. Tem sido uma filha exemplar, que nunca me deu nenhum motivo de desgosto. Se alguém aqui já deu esse motivo, fui eu. Mas tudo nessa vida passa, minha filha. Como dizia Goethe, a vida é curta. E muito longa a arte. Vá, Emília. Vá para a África. Na volta você retoma sua vida, que já teve tantos recomeços.

 

 

No dia 7 de novembro de 1965 Emília partiu. Achava que era branca quando morou no Velame, “bonita e inteligente, puxou ao pai”. Nos Estados Unidos descobriu-se negra. Agora, vestida com as cores vivas dos tecidos do Senegal no corpo e na cabeça, via-se diferente das mulheres africanas.

Deixou-se guiar por Braima, um jovem de 22 anos que falava português e crioulo, refugiado da Guiné Bissau depois de quase ter sido assassinado pelo exército português e que, disso Emília não tinha dúvida, devia ter sido enviado pelos Orixás.

Atravessaram a fronteira em São Domingos e tomaram a primeira embarcação com destino a Cachéu, junto com homens, mulheres, meninos, galinhas, porcos, verduras, sacos de carvão, de amendoim, sal, pescados. O cheiro de peixe lhe lembrava a praia do Janga. Às vezes, chegava a sentir a presença da avó ali perto dela. Moleirão, o rio Cachéu atravessava a Guinéu Bissau sem pressa, demorando-se em portos menores, embarcando e desembarcando gentes, animais e mercadorias. Sentada em um caixote vazio, Emília espiava as margens de um verde luxuriante: por trás dos manguezais ladeando o rio, imensos campos cobertos de mangueiras, cajueiros. Trocasse as palmeiras de Dendê por coqueiros, as casas de taipa cobertas por palhas de Colmos pelas dos coqueiros, era ver a paisagem do Janga. Com uma majestade: os imensos Baobás, a árvore sagrada, que logo Emília ficaria conhecendo de perto, no Quimbo onde morava o Pai Alabi, o mais velho Babalorixá de Cachéu, cego e doente, e que ainda comandava o terreiro de Oxum.

Era de tardinha quando desembarcaram em Cachéu, uma cidade de onde outrora embarcaram muitos negros escravizados para o Brasil. Não havia pousadas. Braima conseguiu hospedagem na casa de um conterrâneo seu de Quinhamel. Ouviam tambores à distância. Enquanto Emília tentava descansar, mal acomodada em uma esteira e fazendo da mochila travesseiro, Braima saiu para tomar informações sobre as guerrilhas, como fez em cada porto onde parou a embarcação. Na volta, já sabia onde ficava o terreiro do Pai Alabi. E contou para Emília de onde vinha o toque dos tambores: um velório, onde o defunto, deitado num catre, envolto em coloridos panos tecidos só por homens para a cerimônia da morte, era velado com danças ao som de rústicos tambores feitos de troncos de árvores.

 

(continua no próximo domingo)