14. E agora, Emília?
Seguiram viagem. Depois de vários quilômetros, Josué percebeu que havia perdido a conexão para chegar à BR 101. No primeiro posto de gasolina, conversou com motoristas de caminhão, que lhe indicaram uma rodovia alternativa. Passaria pelo Jorro do Tucano e dali seguiria pelo Sertão do São Francisco. Quando olharam no mapa, Emília viu que o Velame ficava no caminho.
– Que bom, Josué! São os Orixás guiando nossa viagem. Antes de chegar à fazenda de teu irmão, vou rever a cidade de minha infância.
Josué ficou em silêncio por alguns segundos. Até que desabafou,
– Eu, para te falar a verdade, Emília, nunca simpatizei com esse tal de doutor Juvenal, que embuxou a tia Maria e deixou a coitada ao Deus dará. Não fosse você ter nascido com aquela doença no coração, nunca mais ele teria tomado conhecimento de que você existia no mundo.
Mal acabou de falar, Josué percebeu que fora longe demais. Viu Emília se encolhendo no canto dela, calada, com as mãos pousadas no colo, olhando para o chão do carro. Arrependeu-se. Mas qualquer emenda seria pior. A estrada naquele trecho estava com bom asfalto, sem sobressaltos. Josué deixou o volante seguro com a mão esquerda, e, com o braço direito, puxou Emília para junto de si. Assim atravessaram uma ponte próxima aos Cânions do São Francisco. Josué parou a Toyota no acostamento após a ponte. Desceu e veio abrir a porta de Emília, que não careceu usar o estribo: ele repetia o gesto de noivo do reencontro em São Paulo. Continuaram sem palavras, sentados numa relva na margem do rio, ouvindo o correr da água, sentindo o cheiro ácido do Sertão, apreciando uma das mais belas obras arquitetônicas de Deus. Somos sempre tão pequenos diante delas…
– Josué, a gente nunca deve julgar o amor. Eu já tinha quinze anos quando soube por Maria Emília a minha verdadeira paternidade. Ela não me escondeu nada. As duras palavras de dona Heloísa. A omissão de meu pai. Naquele dia, Maria Emília pediu que eu perdoasse a mãe de criação. “Não deve ter sido fácil, minha filha, aceitar para criar a filha do marido com a empregada doméstica.” Perdoei dona Heloísa, mas passei a odiar meu pai. Lembrava-me das palavras dele no dia em que conversamos sobre a minha decisão de ir morar com a mãe de verdade. “Sei que vou sofrer muito, minha filha, sem você nessa casa. Mas tenho que me conformar. É castigo de Deus, pelos erros que cometi na vida”. Eu era esse erro na vida dele.
– O tempo, Josué. O tempo. Quando Maria Emília foi me assistir no resguardo de José, eu naquela angústia de não conseguir amamentar meu filho, aprendi mais uma lição com minha mãe. Aprendi que, ao amor, tudo se perdoa. Não há acertos e desacertos no amor. Existe apenas o amor, ou o desamor. E ela me confessou que, com Sinhozinho (como era chamado meu pai em casa), viveram, escondidos do mundo, o maior amor da vida deles. Depois disse, “Você já perdoou dona Heloísa, minha filha. Agora está na hora de perdoar seu pai. Eu dele não guardo mágoa. A lembrança de Sinhozinho é doce, quando ouço nas madrugadas a sabiá anunciando o principiar do dia, quando Sinhozinho saía de meus braços ‘para enfrentar o teatro da vida’, como ele gostava de dizer”.
Emília e Josué dormiram num hotelzinho qualquer da primeira cidade após os Canions do São Francisco. No dia seguinte madrugaram na estrada.
Chegando ao Velame, entraram na cidade pelo bairro da Boa Vista, depois de passar num local onde teria havido um convento das freiras do Bom Pastor. Esse convento era afastado da cidade, e, foi preciso alguém informar que era ali mesmo, “Sim senhora. Olhe ali. Ainda se vê uns restos das paredes grossas cobertas de mato”. O Velame se encompridara em casas pobres. Em menina, por vários anos, todas as segundas e quintas feiras, Emília tivera lá as primeiras lições de piano. Lembrava-se de uma ventania que entrara pelas janelas abertas do carro espalhando as partituras de música. Ia sempre com seu Gonzaga, o motorista do pai. A professora era uma freirinha corcunda, de fala suave, que lhe servia bolos de goma, se ela trouxesse as lições feitas.
A Rua do Comércio guardava o mesmo risco original, com a igreja Batista em uma extremidade e a Catedral de São José na outra. Nessa rua, Emília só reconheceu uma loja do seu tempo, a Farmácia Globo. Dali, indicou a Josué o caminho para chegar à velha estação de trem, onde a casa dos avós. Depois da Catedral, dobraram à esquerda, na rua do colégio das freiras. Não mudara uma janela, uma porta, nada. O jardim entre o portão de entrada e a escadaria que dava acesso à portaria continuava florido. Emília, pisando no passado.
– Para, Josué, para aqui, em frente ao colégio. Não, aqui na entrada principal não. Anda mais um pouquinho. Aqui, aqui! Esse era o portão de entrada das alunas, às 7:30 da manhã. Só quando alguma chegava atrasada, aí tinha que entrar pela portaria principal, com autorização dos pais.
Josué ria com a excitação de Emília. Dali atravessaram uma avenida movimentada por ônibus e automóveis, e seguiram em frente até chegar à Praça Dom Moura. Nova parada.
– Essa sempre foi a praça mais florida da cidade, Josué. Não era perto de minha casa, mas eu vim muitas vezes com minha madrinha.
Sentaram-se num banco. Josué viu um desapontamento nos olhos de Emília e disse,
– Minha prima, nunca mais encontraremos as flores da nossa infância. Serão sempre menos bonitas. Pois eu, digo a você, nunca vi jardim tão lindo quanto este!
– Está vendo a Estação de Trem, Josué? Para lá nós vamos agora. – E puxava-o pela mão, como quem conduz um aprendiz. Josué estacionou perto. Emília viu que a estação era a mesma, porém pintada em cores, sem a sobriedade do creme e da madeira velha das portas. O que não existia mais, disso já sabiam, eram os trens. O apito do trem, ela correndo pelo longo corredor da casa, segurada pela mão de Biu, a negra boa e risonha que também contava histórias de trancoso. O avô, sentado no banco da calçada, esperando que o moleque de recado lhe trouxesse o Diário de Pernambuco.
– Vamos embora, Josué.
– Mas Emília, você não quer entrar na estação? Virou um museu. E a casa de teu avô, não era em frente à estação?
– Pois é, Josué. Derrubaram a casa. Não sobrou nada. Nem o banco velho da calçada.
Os olhos de Emília se encheram de lágrimas. Josué lhe passou o lenço. Ela não mostrou a ele nem o lugar onde ficava a casa. E desabafou, braba.
– Olhe, Josué, nós somos mesmo um país predador, pior do que as traíras do rio São Francisco. Veja a Europa. Ali nada se destrói. E quando acontece um acidente, um terremoto, uma guerra, eles reconstroem tudo igual. Aqui, não carece nem guerra, nem terremoto, que, aliás, não temos. Que espírito é esse, Josué? Me explica, você, que é professor.
Josué pensava, com o ar professoral de quem tem resposta para tudo.
– Somos um país jovem, Emília, comparado à velha Europa. Não criamos ainda esse gosto pelo passado. Perseguimos um progresso ilusório, que está nos dizeres da bandeira…
Mas Emília não o deixou prosseguir,
– E o que dizer dos Estados Unidos, Josué? É um país tão jovem quanto nós. Fui recentemente lá, circulei pelo Harvard Yard, por todos os lugares que conhecia. Não encontrei um só edifício destruído. Uma estudante de pós-graduação me contou que precisou morar muito distante, para poder estudar em Harvard. Não havia uma única acomodação nas imediações para alugar. Por que não copiamos isso dos gringos? Deles, só trazemos lixo. E palavras fora do lugar, como esse tal de “politicamente correto”.
Josué sabia que quando Emília ficava brava não adiantava discutir. O melhor era fazer como se faz com menino pequeno: mudar a prosa, distrair o menino.
– E agora, Emília, para onde vamos?
Foram na direção do Parque dos Eucaliptos. Não havia mais a garagem de aluguel de bicicletas. Mas só o fato de não terem tirado os eucaliptos, mudou o humor de Emília. O cheiro bom… Muitos eram recém-plantados, o que significava que o parque estava sendo conservado. Emília tentou abandonar o lamento do passado e olhar para o presente. Afinal, o parque não diminuíra de tamanho, embora tivesse perdido as bicicletas, a casa dos porcos espinhos, a dos pavões de lindas penas coloridas…
Já passava da hora do almoço. Indicaram um restaurante para os lados do monte Magano, onde encontrariam uma boa Carne de Sol. Aquele Magano era uma das colinas da cidade aonde o doutor Juvenal gostava de ir ver o pôr do sol, com o carro cheio de moças bonitas e Emília no colo de uma delas. O restaurante, conforme indicaram, era modesto. Como modesta a garçonete, vestida como se estivesse na cozinha de casa, que respondeu faceira a Josué, quando ele quis saber se a cerveja estava bem gelada, “e eu sei?” Bem, a cerveja estava bem gelada e a carne de sol, acompanhada com macaxeira cozida, farofa de jerimum, feijão verde, arroz, molho vinagrete e manteiga de garrafa…
Entraram finalmente na avenida Sete de Setembro. Continuava florida no canteiro central. Porém, quase todas as casas haviam sido derrubadas, para dar lugar a comércios, oficinas, postos de gasolina, restaurantes, escritórios, supermercados. A casa do Doutor Pedro, a mais bonita de todas, virara uma cervejaria, com música tão alta que ouviam pelas janelas abertas da caminhonete. As poucas casas de residência restantes esperavam comprador, com matos crescidos nos jardins. Os ricos da cidade moravam agora nas novas ruas construídas na subida do Monte Sinai.
A Toyota andava a passo lento pela Avenida Sete, em respeitoso silêncio, como fosse um velório.
Emília conferiu o número: 1138. “Onde as papoulas encarnadas, amarelas, cor de rosa, que encimavam o muro baixinho em formatos arredondados? Onde as palmeiras? Onde o terraço, com rede de croché e cadeiras de ferro, onde eu estudava geografia? Onde os canteiros de rosas?”
Emília não espiou o que viu. Olhou para dentro de si e estava tudo intacto: do muro ao jardim, às salas, aos quartos, ao seu quarto, onde, em manhãs de abril, o galho de uma roseira branca entrava pela janela aberta. A cozinha, com Carmem cozinhando e lhe contando histórias de trancoso. O quarto das empregadas, onde gostava de ficar ouvindo a prosa delas depois do almoço. O quintal, os abacateiros, as bananeiras, os pés de mamão, o buraco do lixo, a casa do cachorro Cotiabá, o galinheiro, a criação de abelhas.
– Vamos, Josué. Não quero ver mais nada.
Dormiram em hotel desconhecido da cidade, para no outro dia madrugar de novo na estrada.
Do Velame a Raposas, o município onde a Fazenda Baraúna, eram apenas 126 quilômetros. Um pulo, naquela estrada asfaltada. Mas Emília desejaria uma viagem mais demorada, em estradas de terra… “No banco da frente do carro, o pai e o motorista. Eu sozinha atrás, com meus fantasmas. Nas viagens, o pai usava, por cima do terno de linho de Juiz, um apara pó de tecido de algodão, igualmente branco. Embaixo do paletó, umas correias que serviam de bainha para o revólver que costumava levar em viagens. Era um revólver bonito, cabo longo, branco, de madrepérola, calibre 38, nomeado de Colt Cavalinho, porque tinha a cabeça de um cavalo gravada no cabo. Usado pelos cowboys americanos, foi imortalizado pelo ator Roy Roger. Nos filmes do Cinema Eldorado do Velame…”
***
Numa padaria de Raposas, onde comeram pão doce com café preto, tomaram informação sobre qual a estrada para a fazenda Baraúna
– O senhor quer saber da fazenda do doutor Francisco? É muito fácil. É só o senhor pegar essa rua que segue aqui da estação de trem, a rua Torta. Não tem erro. Passadas as Olarias, é a primeira porteira à direita. O senhor vê logo o curral dos bodes.
Já a caminho, Josué comentava,
– Eita, que meu irmão aqui virou doutor… Há quanto tempo, Emília, você não come milho assado numa fogueira?
A porteira estava apenas encostada. No terreiro grande, em frente à casa, havia lugar de sobra para a Toyota. Um cão latiu, mas era manso. Balançando o rabo, veio lamber os pés de Emília, que abrira a porteira.
Francisco não esperava a visita de Josué. Muito menos que chegaria acompanhado da prima. Emília observava a alegria dos irmãos. As falas, os silêncios… Era a véspera de São João e a fogueira já estava armada, coberta com um plástico preto. Acabado o café da manhã, com queijo de coalho assado, queijo de manteiga, cuscus, inhame cozido, coalhada… o café da manhã dos vaqueiros nordestinos, Francisco levou os dois para conhecer a fazenda no entorno da casa. Os campos estavam em verdes invernosos. Passaram primeiro no curral das cabras.
– É o animal que melhor se aclimata aqui, Josué, nessas terras pedregosas. Essa fazenda costuma me dar mais prejuízo do que lucro. Vivemos, na verdade, da aposentadoria, a minha e a de Maria Lucila. Isso aqui é uma festa para nossos netos. Infelizmente, esse ano não puderam vir para o São João.
Enquanto caminhavam, Francisco mostrava a vegetação, sempre junto de Josué. Só não seguravam a mão um do outro porque não era o costume. E Emília pensava, “Como é bom ter irmão. Estar com eles é como voltar à casa da infância.” De repente, Francisco se lembrou que Emília existia e, dirigindo-se a ela,
– Quando comprei essa fazenda, prima, estava adquirindo um verdadeiro museu do Agreste a céu aberto, e que me foi vendida na bacia das almas. O antigo dono, um velho que se dizia por aqui que já nasceu velho, tinha o maior amor a essa propriedade. A vegetação, o curral das cabras, tudo isso já existia. Ele escolheu a dedo para quem vender. Era um sujeito esquisito, meio bruxo. Diziam que ele sabia que seus dias estavam contados. Pensando nos filhos herdeiros, cobiçosos de dinheiro, vendeu a quem ele sabia ia manter o museu para a posteridade.
– Vamos começar por esse Imbuzeiro, a árvore mais perto de minha de casa. Costumo dizer que ele é o ar condicionado do Sertão. Agora é inverno, não tem como demonstrar. Mas no sol a pino do verão, basta ficar embaixo de sua copa grande, você se livra do calor. – Dirigindo-se novamente a Josué, – Cada um de nós, meu irmão, tem um lugar no mundo. O teu talvez seja São Paulo. Ou o Janga, não sei. O meu, fui descobrir quando vim morar aqui: é embaixo desse pé de umbu. – Olhou de novo para a prima e perguntou – Qual o teu lugar no mundo, Emília?
Emília pensava… “Seria a casa de minha avó no Janga? Ou o sobrado na Vila Madalena? Ou a casa da infância, no Velame, ainda pulsando nas minhas veias, após ter visto ontem o lugar onde dela nada mais restou, a não ser o endereço?”
Depois do Umbuzeiro, passaram por vários Marmeleiros, magrinhos no tronco, folhosos, gordos. Logo a seguir, junto à cerca que separava a casa de uma área de pasto, avistaram a velha Baraúna: alta, empertigada, a maior de todas as árvores de lá. Adiante, um pé de Angico, quase tão imponente como a Baraúna, porém menos vistoso. A Catingueira avizinhava a Baraúna, no outro lado da porteira. Seus galhos e folhas em verde novo partiam de vários troncos, sem a convicção de fortaleza do tronco único da Baraúna. Francisco apontava dois pés de Jurema. Tão próximos seus galhos e folhas, que, aos olhos de Emília, pareciam irmãs; tão semelhantes uma da outra… seriam irmãs gêmeas. Logo a seguir, uma Algaroba, com a folhagem mais viçosa voltada para o lado do sol nascente. “Um pé de pau agreste com espírito de girassol”, pensou Emília.
Altos e desengonçados, magros, os Rabos de Cavalo eram como adolescentes em crescimento, vulneráveis aos ventos. Facheiros e Mandacarus lembravam o Sertão. Mais à frente, um pé de Imburana novinho. Ao longe, muito ao longe, o Juazeiro.
Rasteirinhos, sem endereços definidos, espalhados por todo terreno por onde andaram, muitos pés de Jurubeba e Velame. Francisco arrancou uma folha de Velame, partiu ao meio e deu para Emília cheirar. Nem carecia. Ela há muito já conhecia o cheiro do Agreste.
***
O dia, que amanhecera com o friozinho das manhãs de inverno, ia sendo aquecido pelo sol. Josué vivia uma alegria irmã que Emília desconhecia. A conversa continuou dia afora. Nem a sesta os fez se separarem. Foram armadas três redes no lado sombreado do alpendre. Emília cochilava e acordava com os dois proseando… no Janga, nas pescarias, na casa da tia Nenê. Às vezes apanhava fragmentos das conversas,
– Por que “doutor”, Francisco?
– Ora, Josué, aqui não carece de ter diploma para ser doutor. Basta ter dinheiro.
O sol se despedia quando o morador mais antigo da fazenda acendeu a fogueira. Josué e Emília entraram em casa para tomar banho e trocar de roupa. Com a recomendação, “fique bem cheiroso, que hoje quero dançar forró a noite inteira”, Emília entregou na mão de Josué o sabonete Phebo. Ele saiu do banheiro com uma camisa quadriculada, lenço vermelho no pescoço, calça azulão de Alvorada, das que só se vendem na feira de Caruarú. E, claro, sua marca registrada: as alpercatas de rabicho. Para completar, um chapéu de couro. Estava completo. Só faltava Maria Bonita, que saiu do chuveiro depois dele, vestida com saia de chita e uma blusinha branca de algodão abotoada na frente.
– Você vai sentir frio, Emília.
Aí ela botou por cima um xale de croché, que havia sido feito por Maria Emília para que enfrentasse a neve de Boston… Santa inocência! Nos pés, umas alpercatas baixinhas, dessas próprias para arrastar no salão de dança, xeco, xeco; xeco, xeco.
– Vem cá, minha matutinha filha de Oxum com esse xale amarelo…
– Josué, melhor a gente parar por aqui. Essa casa não tem forro e qualquer barulho se ouve no quarto vizinho e até na sala. Além disso, eu vou carecer lavar as partes depois, refazer o batom, vestir a roupa toda de volta. Não, Josué, guarda teu tesão para amanhã.
O que era aquela doidice? Quanto mais perto do destino, mais meninos ficavam. Josué tão bonito, aos olhos de Emília, com aqueles olhos pretos cor da noite. Deixara para trás a pose de professor. Era o Josué que um dia Emília vira se apresentando de brincadeira ao diretor da peça Morte e Vida Severina: filho de pescador, nascido numa praia deserta, que, em menino, ia pescar com o pai, tirava coco em coqueiro alto, sabia de roças e roçados.
Com pouco, começaram a chegar os convidados. Emília e Josué se serviram de uma cachacinha mineira para abrir os trabalhos da noite.
Fazia falta crianças. Festa de São João pede meninos, para a gente ver a alegria nos olhos e na risada deles. Até que chegou um morador a mulher e três filhos. Pronto, a festa começava de verdade. E foram chegando outros meninos, atraídos pelos fogos e pela fogueira. Cada um pegou logo uma caixinha de traque de massa e saiu correndo, fazendo susto um ao outro. O pai de um deles usou um toco de pau de um marmeleiro seco, e fez dele o posto avançado dos fogos maiores, mais perigosos. Dali, dúzias de foguetões pipocavam no ar, sempre à saudação, “Viva São João”!
Os meninos, sorrindo aos fogos de vista. A fogueira assando milho e batata doce. O alpendre, coberto de bandeirolas coloridas. Na mesa, milho e amendoim cozinhados, canjica, pamonha, pé de moleque, munguzá…
“Cada fogueira de São João na minha meninice espantou um pouquinho um sonho renitente: correndo do diabo que, envolto em chamas, vinha em meu encalço. Eu conseguia entrar numa casa abandonada. Descobria no chão um alçapão, abria, descia por uma escada escura que dava no porão. Lá, me encolhia bem caladinha em um canto. Mas, não demorava, o demônio abria a porta do alçapão. Sempre acordei nessa parte do sonho, assustada, o coraçãozinho batendo forte, suada. Às vezes pensava que poderia morrer em um sonho desses, e rezava a Nossa Senhora para não sonhar mais. Hoje, aos sessenta anos, sei que fui espantando todos os meus demônios à cada fogueira de São João de minha vida. Pois não dizem que se deve sempre acender a fogueira nessa noite para que o diabo, nela entretido, não entre na nossa casa? A minha está varrida e limpa.”
Tão distraída estava Emília com seus pensamentos, espiando a fogueira, que até se assustou quando Josué chegou sutil, abraçando-a pelas costas e dizendo baixinho,
– A música está chegando, meu amor.
Os músicos haviam se postado em um recanto da sala: a sanfona de oito baixos, a zabumba, o triângulo e o vozeirão deles. O sanfoneiro abriu os trabalhos com Asa Branca. Encheu o salão. Josué agarrava e soltava Emília, quando a música chegava ao verso “quando o verde dos teus olhos…”. Não paravam de rir. Quando tocou “Vem Morena”, Josué segurava a cintura de Emília para vê-la se remexer ao resfolego da sanfona. Nem reparavam nos outros, como se somente eles dois no salão.
Ao som dolente de Légua Tirana, Emília fechou os olhos e foi seguindo os passos de Josué, que aprendera a dançar forró nos bailes de São Paulo. Sentiu a mão dele por baixo da blusinha fina de algodão, alisando as costas da cintura até o pescoço. Por baixo da calça de alvorada, de tecido mais fino que jeans, Josué “armado”. Emília, com a sainha de chita. Braguilha com braguilha. Não dava nem para os dois se desencostarem. Francisco chegou junto, rindo,
– Josué, meu irmão, olha o respeito no salão! Daqui a pouco vão chamar a polícia! Melhor vocês irem pro quarto”.
Voltando à risadaria, acataram a sugestão.
Não era talvez nem nove horas da noite quando se recolheram, cambaleantes. Sem trocar de roupa, sem nem ao menos escovar os dentes, mal tiraram as sandálias, se enfiaram embaixo das cobertas. No dia seguinte, madrugada ainda escura, Josué despertou, levantou-se, e, pé ante pé, ia saindo do quarto, quando Emília,
– Traz água, Josué.
Já na porta, ele fez um gesto que deu para entender que era justamente o que ia buscar.
Resolveram levantar acampamento.
– Sabe o que acho, Josué? Ressaca de cachaça, dessas mineiras, boas, não é tão ruim como a de whisky escocês.
Josué continuava olhando Emília com os mesmos olhos do quintal da casa da avó, no dia em que escrevera as iniciais E e J no tronco retorcido do cajueiro grande. E disse,
– Meu amor, o estômago é teu único lugar de pobre. De resto, você é rica toda. Até com essa sainha de chita.
– Vamos viajar assim, Josué? Ah, você ficou tão bonito com a calça de Alvorada… Onde conseguiu?
Desconfiou que era de Francisco. Mas Josué nem respondeu, embaixo do chuveiro,
– Vem cá, Emília, deixa eu lavar teu corpo. Vou deixa-lo novinho em folha.
***
Saíram de casa antes das cinco horas da madrugada, ainda escuro. Queriam ver o sol nascer no alto da Serra das Russas.
A longa viagem de volta desde São Paulo trouxera o passado a Emília. O passado nas prosas à beira do São Francisco. O passado no Velame. O futuro, agora, a Deus pertencia.
Começou a passar a mão na coxa esquerda de Josué. Ele enlaçou seu ombro com o braço direito. Estavam no cume da serra. O sol principiava a clarear o mundo. Josué parou a Toyota em um lugar onde outrora, logo que a estrada asfaltada ficou pronta, haviam construído um jardim de cactos, chamado Jardim do Pecado. Emília mirava a Aurora quando o prazer tomou conta de seu corpo.
***
– Você está sorrindo, Emília! Você se parece com a Mona Lisa! Venham ver! Vocês que viajam para apreciar o tesouro que Leonardo da Vinci deixou para a humanidade. Venham ver de perto esse sorriso oblíquo que Machado de Assis botou no rosto de Capitu. Como você é bonita… Pudesses entrar nos meus olhos na hora em que gozas… As estrelas do céu descem em teu benefício e teus olhos brilham mais que todas juntas. Brilham mais que esse sol de fogo que acaba de nascer! Teu grito primal, Emília, é a tempestade da sexta sinfonia de Beethoven em campo aberto de pastores de ovelhas.
– Agora, que te perdi para sempre, sei que foste a minha única mulher. Para quem sempre retornei – minha casa. Aonde agora o meu desejo, levado para sempre nesse sorriso?
– Tu não morreste, Emília, por doentinha, como blasfemava dona Heloísa. Morreste de morte gloriosa! Serás velada pelos teus amigos com esse sorriso nos lábios de quem careceu somente atravessar da pequena para a grande morte?
– E agora, Emília? Terei que devassar os segredos de teus cadernos?
FIM