Emília

  1. Josué

 

Há dias mais longos do que as vinte e quatro horas. Aquele cinco de julho de 1954 havia sido um desses dias. No silêncio de uma noite em praia deserta, ouvindo apenas as vagas intermitentes do mar, Emília pensava nas palavras ouvidas da boca da avó, nas palavras escritas naquele papel despedaçado chamado por ela de carta. E temia. Temia a incerteza de uma herança de crenças até então desconhecidas por ela, que só sabia de primeira comunhão, de crisma, das missas aos domingos, da hora do ângelus.

Os filhos da tia Nenê eram um time de futebol completo, metade homem e metade mulher. Do mais velho, rapaz feito, até a caçulinha ainda de colo, Emília os conheceria nos dias seguinte, uns mais, outros menos, nos almoços domingueiros na casa da tia, no dia da festa de Oxum, nos banhos de mar, nas serenatas à beira mar em noite de lua cheia. Depois saberia que aquela tia, Mãe Pequena nas cerimônias de Candomblé, fora destinada pela avó a tomar conta dela em todos os preparativos para festa de Oxum, respondendo a tudo o que ela quisesse saber, ou deixando-a sozinha, quando pressentisse que ela queria ficar calada.

Pela mão da tia Nenê, Emília foi apresentada a espaços inusitados, a nomes desconhecidos do seu vocabulário. O Peji, com seus altares para santos do Cadomblé e da Igreja Católica; com os tambores em descanso, cuja batida ritmada para cada Orixá ela conheceria na festa de Oxum. O Bolé, um aposento sem janela, com um batente largo junto à parede de trás, onde imagens de Iansã e Santa Bárbara, flores de papel, velas. No chão cimentado, várias tigelas, nas quais, em dias de preceitos, eram ofertados alimentos e sangue dos animais sacrificados.

(Os trinta e um dias passados no Pina haviam sido um purgatório na vida de Emília. Para quem ia ao colégio com motorista, agora acordava em horário de pescador, para dar tempo de tomar banho, se vestir, comer, caminhar até o terminal do ônibus, que a deixaria na Avenida Guararapes, para, dali tomar outro ônibus até o colégio, no arrabalde das Graças. À tentação de voltar atrás, para o conforto da casa dos pais adotivos no Velame, ela se lembrava da mãe de criação, o enigma da falta de amor daquela mãe, que Emília só viria a decifrar, o que em nada contribuiu para apaziguar seu sentimento de rejeição, quando soube a verdade de ser filha adotiva. A palavra mamãe havia sido varrida de seu vocabulário: a do Velame, ficou sendo dona Heloísa. E a mãe verdadeira, Maria Emília.)

Quando a tia sentiu que Emília já sabia demais para um dia, segurou a mão da sobrinha, olhou meiga nos olhos dela, que não pareciam propriamente cansados, mas reflexivos. E nem careceu Emília lhe dizer que queria agora ficar sozinha, na esteira de palha de bananeira do quarto dos ancestrais, o Bolé.

Lá, Emília passou a limpo no seu diário a carta da tataravó, e escreveu tudo o que se lembrou da palestra da avó no terraço. Fez um esqueminha para não se confundir com tantas Emílias e tantas Marias. Houve a primeira Emília, a rebelde, a que deu ao mundo uma filha mestiça; a branca que viveu um grande amor com o negro Josué, e dali surgiu a descendência brasileira. Houve a primeira Maria Emília, da qual ela nada soube, porque dela nada foi dito. Sabia apenas que nasceu com os olhos azuis em pele escura, quase negra. Já a segunda Emília, essa era a avó dela, uma mulher plena, com quem a neta criaria vínculos para além dos laços de sangue. A segunda Maria Emília era sua mãe, que ela principiava a conhecer melhor no seio da grande família de santo do Janga. E a terceira Emília era ela, ali sentada numa esteira, escorada na parede, escrevendo com o caderno pousado nos joelhos dobrados.

 

 

O dia da festa de Oxum amanheceu chovendo. Pelas sete horas o sol apareceu. Em toda manhã, Emília acompanhou a faina de muitas mãos nos preparativos da festa, as bandeirolas brancas e amarelas no teto do barracão, o preparo das comidas… Depois do almoço, a avó mandou que ela dormisse um sono na outra rede do terraço, junto à dela. Antes de adormecer, Emília ainda ouviu distante, como se estivesse já sonhando, “Daqui, Emília, é como se eu visse a África do outro lado desse marzão de meu Deus. O lugar de onde veio minha bisavó Dallá.”

Despertou com a tia Nenê a seu lado. Um cheiro de alfazema que mais tarde incensaria o barracão. “Maria me disse que você tem trancelim e pulseiras. Trouxe?” E disse baixinho, quase em segredo, “Oxum gosta de ouro”. Levou a sobrinha para um banho de ervas.

A saia rodada de Emília, em cima de muitas anáguas engomadas, era de um tecido brocado, com o fundo amarelo mais escuro, quase marrom, coberto por grandes folhas de um amarelo mais claro. A blusa branca, abotoada na frente, mangas curtas, de cambraia bordada. Do mesmo tecido da saia, uma faixa para a cintura e um pano longo, retangular, que a tia amarrou em três voltas por sobre a cabeça de Emília. Com a medalhinha de Nossa Senhora do Carmo em corrente de ouro, outros adereços em plaquê, muitas pulseiras nos braços, e guias de Oxum e Iemanjá em volta do pescoço até a cintura, Emília se olhou no espelho. Era ver as bonecas que deixara na casa do Velame. Uma princesa das histórias de trancoso. Lembrou do dia em que o pai adotivo lhe dera aquela medalhinha. Lembrou as histórias de reis e castelos que Carmen lhe contava, ela sentadinha no chão da cozinha. Foi dando um aperto no coração. E essa foi a primeira vez em que a tia Nenê a embalou como a uma criança de colo, deixando que a sobrinha derramasse todas as lágrimas que estavam contidas por muitos sustos.

Entrou no salão da festa junto com a avó, que se vestia com as mesmas cores, porém, de seu turbante, pendiam uns fios de finas correntes douradas com pedrinhas nas pontas, que cobriam seu rosto sem lhe tirar a visão. Ambas portavam nas mãos os símbolos de vaidade de Oxum, o leque e o espelho. Emília deixou a avó sentada em uma cadeira de espaldar alto, de onde logo ela principiaria a puxar os cânticos sagrados. E foi juntar-se aos que estavam em torno do mastro no centro do salão, o Ixé. Ficou junto da tia Nenê.

Foi nesse momento que Emília viu pela primeira vez Josué. Ele estava em pé, com mais dois outros rapazes, próximo à parede oposta ao Peji. Descalço, sem camisa, vestia uma calça folgada de algodão cor de areia e, cruzando o peito do ombro direito ao quadril esquerdo, uma faixa vermelha e um imenso colar de contas vermelho e branco. Um negro da mesma altura dela, um metro e setenta, ombros largos de pescador, olhos da cor de jabuticaba.

A Mãe Pequena deixou Emília com os outros e se dirigiu ao Peji. De lá retornou com os ebós – as oferendas em comidas –, que apresentou à Mãe de Santo. Com voz firme, investida dos poderes sagrados, a Mãe tomou das mãos da Filha as oferendas, e, depois de um silêncio acompanhado pelos que participavam da cerimônia e os convidados, transmitiu a todos o recado dos Orixás: aceitavam o sacrifício dos animais e agouravam paz e tranquilidade para aquela noite.

Depois do recado dos Orixás, a Mãe Pequena levou as oferendas de volta ao Peji e juntou-se aos da roda. Em seguida, Josué e seus dois ajudantes foram também ao Peji, de onde trouxeram os tambores sagrados. Sentados em tamboretes de pernas altas, deram início ao primeiro toque. Até então, todos estavam à espera. Acabado o primeiro toque, a Yalorixá Emília levanta-se da cadeira de espaldar alto, o corpo empertigado, como se as marcas da idade tivessem desaparecido, a voz mais gutural, forte, faz o sinal da cruz com o mesmo gestual católico, e abre a cerimônia com os dizeres, “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”.

Emília observava tudo, não saindo de junto da tia, a quem imitaria dali por diante as danças circulares da esquerda para a direita em torno do Ixé. Respondiam em coro às toadas para cada Orixá, puxadas pela Mãe de Santo. Emília ficaria sabendo que a primeira era sempre para Exu, aquele que abre os caminhos, seguida pelos toques próprios para cada um dos Orixás masculinos, primeiro, femininos depois. Não conseguia tirar os olhos daquele que comandava o som dos atabaques, seu primo Josué, filho da tia Nenê. Viu quando ele entregou seu instrumento para um irmão. Viu quando ele entrou na dança circular. E soube pela tia que aquela era a música para Xangô. Josué dançava cada vez mais rápido, obrigando os tambores a ritmos acelerados. A coreografia de Xangô foi a mais bonita, aos olhos de Emília. Depois de um tempo dançando, tomado por impulsos muito fortes que pareciam vir de dentro dele (quanto tempo? Emília não saberia precisar), Josué dirigiu-se à cadeira de espaldar alto, deitou-se de bruços, em reverência, aos pés da Mãe de Santo, sua avó. Dali, foi levado pelas akedes (as Filhas de Santo destacadas para esta missão durante a cerimônia) para o Peji. Passado um tempo, voltou ao seu posto no comando dos tambores sagrados.

Emília só saberia do que se passou com seu primo e vários outros nos quais baixou o santo, quando ela própria, à terceira volta da toada de Oxum, experimentou essa energia que nasce de dentro da pessoa, indescritível, e que raramente acontece aos que ainda não foram iniciados no culto dos Orixás, que era o caso dela. Oxum entrou no comando de seu corpo e sua vontade. E nela dançou sua dança. Nessa hora, Emília se desgrudou da tia, a quem vinha seguindo os passos. Deixou que seu corpo fosse possuído pela sua deusa, que comandava os movimentos dos braços, ombros, pernas, quadris, as pulseiras tintilando, um sorriso de sedução nos lábios. Dançava como não sabia que sabia. E se viu, ao termo da dança, fazendo os mesmos rituais do primo, com o corpo estendido no chão, na reverência à grande Mãe; no Peji, pelas mãos suaves das akedes que pentearam seus cabelos desalinhados na dança, sentiu um conforto que desconhecia.

Dentro do mar, despontava a barra do dia quando a festa terminou. Os que estavam no salão, ao sol nascente, cantavam e dançavam em homenagem ao velho Oxalá.

 

 

As férias de julho de 1954 foram as melhores na vida de Emília. Fez-se amiga de duas primas, filhas da tia Nenê, com quem foi a festas e cirandas. Sua pele morena queimada de sol brilhava em cor de jambo do Pará, e seus olhos realçavam o verde esmeralda. Josué aproximava-se da prima, sem alarde, temendo a interdição familiar de casamento entre primos. Um dia, levou-a a conhecer o Forte de Pau Amarelo, na praia vizinha ao Janga. Aos treze anos e meio, Josué falava com a voz grave e a sonoridade suave e risonha, que somente possuem os descendentes de africanos.

Caminharam um bom pedaço calados. Por cima do maiô, Emília vestia um vestidinho de algodão branco de alças. Ao chegarem, visitaram o forte e depois se sentaram numa murada alta e grossa, de onde ficaram apreciando o mar. Josué falou das vezes em que acompanhou o pai em pescarias. Emília escutava calada.

– Vamos cair na água, primo?

Josué deu a mão para Emília descer da amurada. Ela, prestando atenção ao chão onde colocaria o pé direito e depois o esquerdo, não percebeu o olhar de Josué no decote de seu vestido. Já na areia da praia, tirou o vestido, Josué a camisa, deixaram na areia junto com a mochila onde a toalha e os dois pares de sandálias, e caminharam até o mar. As costas das mãos se tocaram, como por descuido. Josué sentiu seu membro se avolumando dentro do calção de banho e tentou disfarçar. Emília não chegou a perceber, porque seu sentido estava no oceano à frente, que, naquele momento, às nove horas da manhã, estava exatamente da cor de seus olhos. Ele viu como ela entrava na água, aos poucos, com a estranheza de quem não se criara à beira mar.

– Vamos, Emília, coragem. – A essas palavras, segurou a mão delicada, macia, de quem nunca trabalhou. O arrepio dos pelinhos queimados de sol dos longos braços nus da prima, seria da diferença de temperatura do sol para a água? Ou seria o mesmo arrepio que, de novo, levantava o pau dele, e levou-o a puxá-la mais rápido pela mão, para encobrir dentro do mar o corpo da cintura para baixo? Soltando a mão de Josué, Emília mergulhou. E emergiu das águas uma sereia, os cabelos para trás, e um sorriso que levantava as maçãs do rosto iluminando-o por inteiro.

A tia Nenê insistia para Emília se iniciar na religião, fazendo seu noviciado como Abiã. Teria que perder o início do semestre no colégio. Mas a avó, compreendendo as razões da neta para não querer perder aulas, ordenou diferente.

– Nenê, o tempo é amigo de nosso povo. Ele não vai tirar Emília de nós. Deixa a menina livre esse mês, comigo, mais as tias, mais os primos, mais a mãe, que aqui sai do jugo daquele marido. Deixa Emília avoar que nem passarim. Essa bichinha já sofreu por demais.

As férias chegavam ao final. Josué levou Emília ao cajueiro maior do quintal da avó e, com um canivete, desenhou no tronco retorcido o símbolo mais manjado pelos enamorados e pela literatura: um coração transpassado por uma seta, com as iniciais E. J.  Depois enlaçou Emília em seus braços e o cajueiro testemunhou o primeiro beijo na boca. Josué baixava uma alça do vestidinho, quando viu Emília se afastar dele depressa, mirando na direção da porta da cozinha, onde estava a tia Nenê.

 

 

Emília

  1. A avó Emília

 

No dia cinco de julho de 1954, aos treze anos de idade, Emília conheceu a avó. Com a mãe e as duas irmãs, iriam passar as férias na casa das tias e da avó. Pela primeira vez, Solange e Rejane se esqueciam do complô entre elas para atormentar aquela irmã mais velha, que caíra do céu para dividir com elas o espaço do quarto e a atenção da mãe. Faziam isso com toda a crueldade de que são capazes as crianças. (Emília ainda se sentia uma estranha na casa de dois quartos, uma cozinha no mesmo espaço da mesa com quatro cadeiras e um tamborete, e um sofá onde as irmãs costumavam principiar umas brincadeiras de agarrado que terminavam sempre em briga.)

O percurso da praia do Pina à praia do Janga era uma epopeia. Caminharam até o ponto de ônibus do Pina, que as levaria ao centro da cidade. Ao chegar ao Recife Antigo, Emília olhava fascinada os prédios da praça Rio Branco. Ali tomaram o bonde de Olinda, o Zeppelin. E essa foi a primeira e a última vez que Emília andou de bonde. Eles seriam desativados naquele ano.

Ao terminal do bonde em Olinda, tomaram um ônibus muito velho, apelidado de sopa, que as levou até Rio Doce, a última praia daquela cidade. Para as meninas, o passeio era uma festa. Para Emília, uma grande novidade. Aliás, tudo na sua vida, desde que saíra da casa de seus pais adotivos no Velame para vir morar com a mãe, foi uma novidade que marcou o resto de sua existência. Deixara um palácio de rei, onde era a princesinha, para vir morar numa cabana de pescador. Agora, conheceria a pessoa que havia provocado essa reviravolta na sua vida: a avó, sua xará.

Do pai de Emília não se falava. Quando perguntou por ele à empregada que lhe contara da adoção, “teu pai não é o marido dela. Com esse ela teve mais duas filhas. Dizem que teu pai foi embora para São Paulo e nunca mais voltou nem deu notícia.” Mas o pai de criação, mesmo contrariado com a decisão de uma mocinha de 13 anos de sair de casa para morar com a mãe verdadeira, fez questão de manter a princesa no melhor colégio de freiras do Recife, da mesma ordem religiosa do colégio do Velame. Até Emília ter seu primeiro emprego, e depois, e sempre, até ele morrer, o Juiz de Direito do Velame, proprietário de terras e de gado, esteve presente na vida da filha. De longe. Com um amor incondicional.

Em Rio Doce, depois de atravessar a ponte, estavam no Janga. Porém ainda careciam caminhar cerca de um quilômetro até chegar à primeira casa, da tia Nenê.

Naquele tempo, o Janga era uma praia habitada por pescadores, em casas perdidas no meio de um imenso coqueiral. Pesca, venda de cocos, roçados e pequena criação no quintal, ocupavam os poucos moradores da praia deserta. Abasteciam-se do que plantavam e criavam atrás de casa; e nas “vendas”, que não passavam de um cômodo da casa destinado ao comércio – um terraço, um quarto com a janela aberta… Casas de taipa, cobertas com palhas secas de coqueiro, sem água encanada nem luz elétrica. O sanitário era improvisado numa cabana atrás da casa. A água vinha de um poço cavado no quintal, logo após a cozinha. Puxada à bomba manual, supria as necessidades da cozinha e do banheiro. Este, sem teto ou porta, cercado de palhas e vigiado por quem estivesse por perto enquanto se tomava banho de cuia. No outro lado da estrada de terra, havia extensas matas de caju. Era um lugar de passeio na época da safra, a partir do mês de outubro, para chupar a fruta embaixo dos cajueiros e trazer as castanhas para assar em fogareiros improvisados no fundo do quintal, com tijolos servindo de fogão e latas velhas fazendo as vezes de frigideira.

 

Era inverno. Chuvoso, como todo ano. Mas aquele havia sido um dia de sol. Passaram primeiro na casa da tia Nenê. Lá ficaram Solange e Rejane, que correram com as primas para o primeiro banho de mar. Seguiram as duas irmãs e Emília. Emília ia calada. A mãe e a tia conversavam animadamente e não prestaram atenção em Emíia, que caminhava em contrição, cabeça baixa, como quem se dirige ao altar para receber a comunhão. A sombra dos coqueiros, naquele momento, voltava-se para o mar, maior do que o tamanho real deles. A luminosidade do dia, nessa hora, é de uma beleza estonteante.

Emília viu à distância a avó na varanda da casa, deitada na rede. Ao ver Nenê abrindo a tramela do portãozinho do terraço, fez menção de se levantar. Sem conseguir, quase perdeu o fôlego num acesso de tosse, logo socorrida por um copo d’água trazido pela segunda tia que Emília conheceu nesse dia. A velha Emília pediu para Ceiça levantá-la da rede. Mal olhando para as filhas, dirigiu-se à neta, que entrou por último no terraço. Emília viu na sua frente uma mulher imponente, empertigada, cabelos grisalhos presos num cocó atrás da cabeça. Vestia uma saia comprida de madapolão, cor da areia da praia, e uma blusa solta por cima, de um tecido de cassa amarelo claro. A saia e a blusa folgadas encobriam uma magreza.

– Emília! Até que enfim você chegou.

Esse dia foi para Emília como o batismo da religião católica, onde o pai nomeia a criança na presença de Deus. As lágrimas quentes e salgadas da avó escorrendo pelo rosto da neta, o abraço forte, sem palavras.

– Ceiça, vai buscar o remédio de mãe.

– Deixa de besteira, Nenê. Quem já viu alegria subir pressão de ninguém? – A avó não parava de espiar a neta. Tocava no ombro dela, fazia um agrado, passava a mão nos cabelos, se admirava. E se ria, só pra dentro dela mesma. Assumiu o comando e determinou, Vocês vão lá pra dentro que eu quero ficar sozinha mais Emília. Ceiça, traga aquele envelope velho que está guardado na minha gaveta. Você sabe qual é. Esse dia demorou, mas chegou, graças a Deus.

Ceiça voltou de dentro da casa com um envelope que um dia terá sido branco. E retirou-se. A velha Emília entregou à neta e pediu para ela ler. Emília precisou juntar as quatro dobras de um papel que sofrera os estragos do tempo. Porém a tinta azul estava intacta, numa caligrafia redonda e feminina, quase desenhada.

 

Meu pai era dono de terras, escravos, e criava gado. Por ser a única filha de sete irmãos, sempre fui a preferida. Mesmo sendo desobediente. Junto com meus irmãos e os filhos de moradores da fazenda, saía de casa para armar arapucas de caçar passarinho, matar lagartixa com estilingue… E sabia que a mata era proibida para mim. Meu pai dizia que era lugar de homem. Quando desobedecia, e eu desobedecia muito, recebia como castigo não tomar banho de rio. Entre a floresta e o rio, cresci em prazeres proibidos e punições.

Vizinho de nossa fazenda, morava o fazendeiro mais rico da redondeza. Velho, cinquenta e sete anos, viúvo. Todo dia, depois do almoço, vinha tomar um cafezinho e ter um dedo de prosa com meu pai. Da última travessura, contada pela voz risonha do pai, sorriu e olhou para mim bem dentro de meus olhos. E disse, como a completar o castigo do pai, “Da próxima vez que desobedecer, venho te buscar para casar comigo.”

Eu tinha acabado de completar doze anos. Meus peitos despontavam como umbu maduro, e apareciam os primeiros pelos pubianos. Ainda não menstruara. Casei como uma princesa.

Foi no ano da graça de 1869. Meu marido mandava buscar no Rio de Janeiro as bonecas mais bonitas. Criei caprichos: costureira para mim e para as bonecas. O véu e a grinalda do meu vestido de noiva faziam parte de meu tardio brincar de menina.

A minha mucama recebeu ordens para não me deixar ir à mata. Mas eu desobedecia. Sem castigo, tomava banho de rio todo dia, num sítio com cachoeira.

Um dia o marido soube. À noite, à hora da ceia, olhou para mim com o mesmo olho comprido de quando me ameaçou de casamento na casa de meu pai. Eu usava as mesmas tranças amarradas com laço de fita, e um vestidinho de algodão enfeitado de rendas. Sentou-me no colo. Beijou meu rosto assustado. Senti embaixo da coxa algo se avolumando. Assentei-me mais à vontade e olhei para ele, com um meio sorriso desconfiado; o velho a me dar na boca doce de goiaba em calda feito pela negra cozinheira, com queijo de manteiga mandado da casa de meu pai. Senti um calor que subia pelo corpo como o vento da mata e descia como a cachoeira.

Enquanto meu marido me implorava, como a uma rainha, um bom comportamento, eu, sem mirá-lo, mexia de leve a bundinha nas coxas dele.

Nessa noite, a mucama foi dispensada dos serviços de quarto. Deixei-me despir de costas, olhando para a janela de onde ouvia, no escuro de uma noite sem lua, o farfalhar das folhas do pé de Juá. Levantei os braços, como fazia para a mucama, para deixar deslizar a camisolinha branca pelo meu corpo.

Ele vigiou meu sono nessa noite. Deve ter imaginado o sonho em que abri ligeiramente os lábios, num sorriso e num murmúrio que ele não conseguiu ouvir.

Passaram-se três noites de vigília. Ele cumpria preceito de caboclo para o desabrochar da menina. Ao amanhecer do último dia, me contaria ainda a mucama, saiu para uma faina que não carecia dele. Para isso tinha vaqueiros e escravos. Voltou mais cedo para casa, sol a pino, a tempo apenas de fechar os olhos para sempre.

Vestida de negro, ao pé do caixão, eu estava assustada com a morte. Senti uma dorzinha no baixo ventre e depois um líquido que humedecia minha calcinha. Fiquei moça no dia do funeral de meu marido.

Meu pai quis me levar de volta para casa. Mas agora minha rebeldia dispunha de sustento, pela posse de terras, gado e escravaria. Viúva, guardava uma virgindade que atiçava os homens. Passei a me vestir de calças compridas, que mulheres não usavam naquele tempo, cabelos presos, chapéu, botas. Contratei professor. Aprendi a ler, escrever, fazer contas e alguma coisa do mundo em histórias e geografias. Josué, filho da mucama, foi meu único colega de classe.

Não houve adolescência para mim. Da noite para o dia, eu era uma moça forte, corada de sol, de vontade própria. Alforriei minha mucama, Mãe Dallá, e o filho dela, Josué. Fiz prosperar as terras do meu finado marido, agora minhas. Aprendi por conta própria artes de mandar e ser servida, o que me acompanhou vida afora. Mesmo depois de me casar, aos vinte anos, com Antônio, quatro anos mais velho que eu.

Antônio era um homem alto, cabelos louros e ondulados, barba e bigode levemente ruivos de um antepassado holandês. Tinha astúcia e fineza ancestral nobre, sem terras nem heranças. Eu concedia-lhe todas as poses de mando. Da casa para fora. Da soleira para dentro, continuei no comando do lar e dos negócios. Josué cuidando da contabilidade das fazendas.

Sete meses depois de casada, dei à luz uma menina que recebeu o nome de Maria Emília. Tinha os olhos azuis em pele escura, quase negra.

 

A avó escutou a leitura deitada na rede; Emília, sentada no batente do terraço. Antes de principiar a falar, a avó chamou novamente Ceiça e pediu para ela armar a outra rede para Emília.

– Emília, essa carta foi escrita pela minha avó, tua tataravó. Ela também se chamava Emília. Era uma mulher com pele cor de leite, olhos azuis de um céu de verão, e os cabelos louros em grandes caracóis. Minha mãe, não conheci. Morreu de parto quando nasci. Como ela, fui criada pela Mãe Dallá, mãe de meu avô Josué.

– Quando minha bisavó Dallá morreu, eu já era moça feita. Foi nesse dia que decidi abandonar de vez aquelas terras. Um presságio me dizia que meu destino estava longe dali. Meu avô compreendeu que aquele destino devia de ter sido traçado pela mãe dele, Dallá. Antes de ganhar o mundo, ele quis que eu fosse tomar a bênção a minha avó branca.

– Nesse dia, deixei para trás aquele mundão de terras. Dessa avó, de quem não quis herança, trouxe comigo somente essa carta, que ela me entregou depois de me abençoar. Agora lhe pertence.

– Fui morar na rua, trabalhando nas casas de família, até encontrar meu lugar no mundo, num terreiro de Xangô. Nunca mais soube de nada desse passado. Para mim, a vida principiou no dia em que fui sagrada Mãe de Santo.

A avó estava visivelmente cansada, depois de relatar muitos detalhes de tudo o que se lembrava de sua vida, saindo do Agreste, seguindo caminhos traçados por Oxum até chegar às margens do rio Doce, onde morava aquela Orixá. Com a mesma determinação com que antes se dirigira às filhas, disse para Emília,

– Você hoje descansa, minha neta. Vá ficar mais sua mãe, suas tias, seus primos. Amanhã bem cedo Nenê te mostra o terreiro e nossos espaços sagrados. Lá, vou jogar os búzios, agora na tua presença, para confirmar os recados de Orunmilá. E de noite será a festa de Oxum.

(continua no próximo domingo)

Emília

4. Como você é bonita, minha filha

 

Quando Emília chegou à casa de sua mãe, no Pina, José estava vestido igual aos meninos da vizinhança: shorts, sem camisa e descalço. Não fez festa quando viu a mãe. Na sala, puxava um caminhãozinho amarrado num cordão, enquanto a avó preparava o almoço. Ao ver a filha chegar de surpresa, Maria Emília correu para abraça-la. José permaneceu onde estava, olhando desconfiado para a mãe. As duas foram juntas levar as malas para o quarto das meninas, onde se sentaram na beira da cama. Maria Emília esbanjava sorriso pelos olhos. José veio se sentar no colo da avó, enterrando a cabeça no ombro dela para não olhar Emília. “É sua mãe, meu filho. Vá pro colo dela…” Aí que José mais enfiava a cabecinha no cheiro de maresia, de alhos e cebolas daquele colo conhecido. Emília, era ver uma menina desapontada sem saber onde botar as mãos. Até que tomou uma atitude e abriu a mala dos presentes.

José olhava agora de esguelha, sem se afastar da avó. Emília desembrulhou o primeiro presente, um caminhão de bombeiros movido à corda, que disparava a sirene e andava sozinho. José pulou do colo da avó e correu atrás. Olhou de novo para Emília, ainda desconfiado. Ela tirou da mala o segundo. “Venha, meu filho, tirar o papel de presente. Esse também é pra você”. José sentou-se entre a avó e a mãe. “Ah! esse cheirinho de lavanda…” Somente ao terceiro presente, José sentou-se no colo da mãe.

– Emília, está na hora do banho dele – Virando-se para o neto – Vamos meu filho, a gente pode levar esses peixinhos para tomar banho na banheira junto com você. – Voltando-se de novo para Emília, que acompanhava os dois na direção do banheiro – Depois que ele pegar no sono, a gente tem ainda um tempinho até as meninas chegarem do colégio. Quero saber tudo da viagem, Emília, por que você voltou tão cedo… Quero saber tudo tudo. Tive sonhos ruins, mas sempre suas cartas me acalmavam. Até que você parou de escrever.

Maria Emília era a mais bonita das quatro irmãs. Uma negra alta, esguia, de corpo magro, pernas bem torneadas, ancas, bunda e peitos na fartura. A filha herdou tudo e acrescentou uns olhos verdes de mar. A mãe olhou bem para Emília, dos pés à cabeça, com o mesmo olhar com que vislumbrou a filha aos treze anos de idade, e disse, “Como você é bonita, minha filha!”

Emília recordou um dia de maio, nos prenúncios do inverno de 1954. Boa Viagem era lugar de veraneio de ricos: usineiros, comerciantes, senhores de engenho. E o Pina, bairro de gente pobre. Na praia, jangadas de pescador. Nas ruas estreitas, casas desordenadas. Esgotos a céu aberto. Meninos soltos na rua, como se tudo fosse um grande quintal. Aquele dia estava nublado, ameaçando chuva.  E ela, com a empregada da casa de seus pais adotivos, a caminho de conhecer a mãe verdadeira. “Por que a senhora me enjeitou quando eu não tinha nem dois anos? Por que?” “Você ficou uma moça bonita, minha filha. Não fique assim desconfiada comigo. Você nasceu com uma doença no coração. Quando chorava, ficava roxa, parecia que ia morrer. O médico disse que existia um tratamento, mas eu não tinha dinheiro para pagar. Fui cozinheira na casa de teus pais de criação. Eles não tinham filhos. Você era uma bebê linda! Levei você lá, e te aceitaram para criar como filha.”

Emília se sentia agora aterrissando de outro planeta. Aquela semana confinada com Pantélia fora um sonho, do qual acordava ali, junto da mãe e do filho.

José usava o mesmo berço que fora levado do apartamento do Espinheiro para a casa de Maria Emília no Pina. Não tinha mais o costume de dormir se balançando na rede. A avó colocou-o deitadinho de lado, voltado para a parede, onde havia um móbile pendurado. José desfiava com os dedinhos da mão direita a ponta da fralda amarrada na chupeta deliciosamente na boca. Quando Maria Emília já baixava a mão para embalá-lo, a uma cantiga de ninar, Emília parou o gesto dela no ar e fez as vezes. E sentiu o acolhimento do filho, como o de quem reconhece impressão digital.

– Minha mãe, vou contar tudo – disse Emília –, mas antes a senhora vai prometer não ficar com pena de mim.

Estavam agora de volta ao quarto das meninas, sentadas na mesma beirada de cama, com as maletas espalhadas. José ficara dormindo no berço, ao lado da cama dos avós. Emília relatou toda a viagem aos Estados Unidos. Omitiu a semana no Brejo de Gravatá. (Pantélia ficaria para sempre um segredo na sua vida, revelado apenas a Josué, muito tempo depois.)

Maria Emília cumpriu o prometido e não se compadeceu da filha. Talvez induzida pela maneira como Emília contou, ressaltando mais a cura que a doença. Não se demorou nos dias e dias internada em hospital, com companheiras de quarto desconhecidas; na solidão de uma UTI; no medo da morte. Mas estendeu-se no inglês que aprendeu, na descoberta dos romances de Faulkner, nas histórias que inventou a cada carta enviada a ela, ao pai e à amiga Maria. Quando falou nas cartas, a mãe levantou-se da cama de um pulo. “Já volto, Emília”. E retornou do quarto onde dormia José com todas as cartas, nos respectivos envelopes, amarrados com um laço de fitas cor de rosa. “Posso ficar com elas para mim, Maria Emília?”

– Claro, minha filha. São tuas. Sabe, Emília? Deus escreve mesmo certo por linhas tortas. As vezes a vida nos prega peças. A gente acha que vai seguir numa direção, e, zás, acontece algo imprevisto, algum acaso, e a vida da gente muda de rumo. Você tem duas orixás poderosas na sua proteção, minha filha. Mesmo você não tendo feito as obrigações de filha de santo, não é por isso que elas vão te deixar desamparada. Fique atenta aos sinais.

Ficaram as duas pensativas, enquanto Emília procurava na mala os presentes da mãe, das meninas, de Marcelino … Quando vê a mãe, em sobressalto, colocar a mão na testa, como quem se lembra de alguma coisa.

– Valha-me Deus, já ia me esquecendo! Foi tanta emoção em te ver assim de repente… Tua tia Nenê anda doidinha atrás de você. Faz uns quinze dias que mandou recado, que era para eu ir lá, urgente, para um assunto que tinha a ver com você. Eu, que já andava com maus pressentimentos, corri lá no dia seguinte. Então ela me falou de um sonho, de um caderno, e que carecia te ver antes da próxima lua cheia. Fiquei em dúvida, se deveria te escrever ou não. Você tão longe… Ela não me disse o que tinha escrito no tal caderno, que só a você poderia revelar. Você tão longe… Não queria te aperrear. E, veja como é a vida: você chega de repente, antes da lua cheia.

– Faz quinze dias, desde que estive no Janga com Nenê, que essa história me persegue. Graças a Deus, Emília, você chegou! Um lado meu pedia para eu deixar você em paz com seus estudos. Mas outro lado meu dizia que, nesse pedido de Nenê, poderia haver mandado dos Orixás. Passei dois anos sem deixar tua avó te trazer de volta para nós. Hoje me arrependo. Não queria ter outro motivo de arrependimento, que acontece quando a gente contraria desígnios dos orixás. E terminou que o destino, talvez traçado lá em riba, trouxe você de volta. Você quer ir lá amanhã bem cedo?

A filha observava a mãe. Maria Emília parecia outra mulher, enquanto falava com tanta desenvoltura. Esse sempre fora o lugar ocupado pela tia Nenê. Além disso, a mãe usava um vestido branco, e aquele dia era uma sexta feira, dia de homenagear Oxalá. Será que ela assumira o lugar da irmã no Candomblé?

 

 

 

Logo ao chegar, Maria Emília levou as duas filhas e o neto para um banho de mar e deixou Emília sozinha com a tia, que estava deitada com a janela do quarto fechada para curar uma enxaqueca.

– Quando sua avó estava muito doente, já não atinava coisa com coisa. Sua tia Ceiça, que cuidou dela até o fim, gostava de deitar mãe na rede do terraço. Você se alembra, Emília? Era o lugar da casa que sua avó mais gostava, espiando o mar. Então ela pedia a Ceiça para armar a outra rede. E ficava proseando com você.

Era a segunda vez que a tia consolava Emília. Sentou-se na cabeceira da cama, deitou a cabeça da sobrinha no seu colo e ficou fazendo cafuné, até vê-la acalmar o peito. A notícia da morte da avó lhe chegara algumas semanas antes, por uma carta da mãe, quando Emília se recuperava no hospital em Boston. Mas naquele dia ela não chorou. Para chorar, a gente carece de estar só, ou acompanhada de quem pode compartilhar a tristeza. No quarto do hospital, sua cama ficava entre duas estranhas.

– Às vezes sua avó ficava agitada, queria se levantar da rede para tomar o navio e voltar para a África. Minha mãe só sabia da África que existiu lá a bisavó dela, Dallá, destinada a ser rainha, e que veio cativa num navio para o Brasil. Sabia que era de lá a nossa religião. E sabia das palavras sagradas de nossas cantigas para os orixás. Até morrer, a velha Emília acalentou o desejo de um dia tornar à África.

– Foi com você, Emília, que tua avó esteve nos devaneios de moribunda. “E eu tão distante, numa enfermaria de hospital. Quem sabe, apenas a minha avó sabia de mim e ficou lá me fazendo companhia? Teria deixado comigo sua alma negra?”

– Pedi pra Maria Emília mandar te chamar porque tive um sonho com mãe, ela na agonia da morte, falando da África, dos navios. Nesse sonho, aparecia o caderno onde um dia ela tinha pedido para eu escrever uma carta. “Para quem, mãe?” “Vá buscar o papel, Nenê”. Eu não tinha papel de carta em casa. Fui ver no quarto dos meninos, das meninas… Encontrei um caderno velho no armário de Josué, que ele deixara sem nada escrito, quando sumiu no mundo com destino a São Paulo.

– Quando voltei com o caderno, mãe ditou umas palavras que eu assentei do jeito que ela falou. Depois ela começou a entrar em agonia. Já era a agonia da morte. No sonho, ela me disse que era para você ir para a África levando aquele caderno, que dizia o que você deveria fazer lá.

Emília começava a pensar que o caderno, o sonho, era tudo fantasia da tia que, segundo Maria Emília, andava variando da cabeça desde a morte da mãe. “E cadê o caderno, tia Nenê?”

Nessa hora a tia riu, vendo uma certa descrença no olhar da sobrinha. Virou-se de lado e pegou o caderno embaixo do travesseiro. Emília segurou-o, já sem a capa de trás, as folhas amareladas. Deixou-se ficar com o caderno na mão, sentindo o cheiro de guardado. Nele só havia três palavras: África; Cachéu; Alabi.

Emília se acordou no dia seguinte com o primeiro galo, ainda escuro. Foi caminhar. Depois, sentou-se numa jangada. O sol principiava a clarear o céu e os pensamentos. Quando a bola de fogo subiu pelo mar, Emília já havia decidido. Sim. Iria para a África. Por mais estranho que fosse uma pessoa ter renunciado a uma carreira de jurista formada por Harvard, para cumprir um mandado dos Orixás.

(Continua no próximo domingo)

Emília

  1. Aquele girassol brejeiro

 

No terceiro dia, ao café da manhã na mesinha embaixo do pé de pitomba, Emília e Pantélia principiaram a leitura de Fausto, de Goethe. A versão dela em português; a de Pantélia em alemão. Pantélia sabia alemão. E inglês, e francês, e espanhol. O danado do negro parecia um príncipe africano.

Era custoso tirar palavras de Pantélia. Dele, Emília recebia os abraços cheios de sorrisos, quando chegava na cozinha já tomada banho, cheirosa a perfume francês, vestida com roupa de sair, e ele parava o que estava fazendo, desligava o fogo e vinha ao seu encontro. Com braços fortes, erguia Emília do chão para que ela enlaçasse as pernas na cintura dele, e assim se beijavam muito, como fosse aquele o primeiro beijo do dia.

Alguns monastérios guardam silêncio às refeições. No Brejo, adotaram o costume de outros – a leitura. Ele acompanhava e, vez por outra, traduzia um trecho que em alemão era mais bonito ou mais preciso.

Emília pensava, “A literatura foi sempre meu cajado. Com ela, sobrevivi a um internato em colégio de freiras, tirando dela o prazer escondido nos livros encadernados em papel madeira. Com ela sobrevivi a um casamento sem amor. Com Pantélia, aqui, nesse pequeno paraíso, vivo a literatura, lendo junto, sorvendo o prazer de cada verso.”

Logo, o encantamento da leitura compartilhada invadiu outros espaços da casa. Ao final do dia, num banho em água tépida numa banheira tão grande que cabia os dois, Fausto de Goethe teve seu primeiro encontro com o evocado espírito. Agora, o leitor era Pantélia, sentado em um banquinho, enquanto Emília se envolvia em espumas cheirosas, ouvindo a voz grave, muito grave e suave de Pantélia.

A noite desse terceiro dia, depois de uma chuva passageira, mostrava um céu limpo. “Gostas mais de lua ou de estrelas?”, perguntou Pantélia. “Estrelas, respondeu Emília”. “Então as terás”. Abriu a porta lateral da casa e foram para um deck de madeira escura, nu de móveis. Pantélia trouxe de um mezanino cobertores, almofadas e travesseiros. Cheiravam um pouco a mofo. Porém, com o aroma das Angélicas plantadas do lado de fora, Emília só sentia o cheiro dessa flor, e o friozinho da noite brejeira.

Fazer amor sem teto, sem paredes… Mais de dez anos depois, Josué sentiria um ciúme póstumo de um negro muito mais negro que ele não chegou a conhecer, a não ser nas marcas de prazer deixadas como uma tatuagem de girassol no corpo de Emília.

 

O quarto dia amanheceu chovendo. Tomaram o café da manhã à mesa da cozinha. A casa do Brejo tinha confortos de banheiro e de cozinha. Mas Emília sentiu falta de uma rede. “Não é costume na África, Pantélia?” “Essa herança, Emília, é dos índios de vocês.” Ele pegou o jeep velho e rumaram para Gravatá. Até então, não haviam arredado o pé do sítio.

Em Gravatá, o dono do armazém deu todas as instruções para Pantélia instalar os armadores. Depois, andando pelas lojas da cidade, compraram a rede mais bonita. Eram onze horas da manhã e estavam prontos para retornar. Foi então que Emília ficou conhecendo outro lado de Pantélia.

Entraram em uma mercearia, que também fazia as vezes de bar. Lá, Pantélia conhecia o dono e tinha um copo só para ele, de vidro bom, e uma garrafa de whisky escocês com seu nome. Era a única garrafa de whisky daquela mercearia. Nos dias seguintes, Emília saberia que onze horas era o “início dos trabalhos”, como ele gostava de dizer, enquanto, juntos, preparavam o almoço.

Desse dia em diante, instalou-se uma luta em surdina entre Eros e Baco. Baco trouxe com ele a música, até então só dos passarinhos, das cigarras, dos sapos a festejar as chuvas. Apareceram discos. E Pantélia soltou a língua. Os feitos da sua juventude. O hotel dos oficiais militares portugueses, onde era proibida a entrada de negro, mesmo um oficial negro; até o dia em que esse hotel foi alvo de um ataque de forças aliadas portuguesas à luta de libertação dos africanos. Emília, aninhada em seus braços depois do amor, gostava de ouvir as histórias de Pantélia.

E gostava quando ele botava para tocar umas músicas, que não se sabia se orientais, ibéricas ou africanas.

Estão na cozinha. Acabaram de comer castanhas, queijo de cabra, patês e pães, acompanhados de vinho tinto da região de La Rioja na Espanha. Pantélia está sentado de costas para a mesa, de frente para o espaldar da cadeira, escanchado, e espia Emília dançando a música que ele escolheu. Ela escolheu a roupa, que vai tirando aos poucos. Pelos olhos de Pantélia, Emília vê também os de Júlio menino e os de Josué rapazinho. Dançava como se estivesse no terreiro de Xangô da avó, no Janga.

Pantélia, com o copo na mão, saiu ao relento e colheu um girassol. Entrou em casa cambaleante. Um sorriso bobo. Emília ainda dançava. Enfeitou os cabelos da mulher com aquele girassol brejeiro de talinho mirrado, e abraçou seu corpo. Suas mãos percorriam trôpegas os seios descobertos de Emília, o púbis. A boca, procurando a boca da dançarina, era ver um náufrago pedindo ar. Emília levou-o para a cama, como quem leva um filho para dormir. Ao terminar de tirar o segundo sapato, Pantélia roncava.

Emília não conseguiu conciliar o sono nessa noite. Pela madrugada, Pantélia levantou-se para ir ao banheiro. Na volta, ela deixou-o dormindo na rede. Mesmo com a porta do quarto fechada, Emília ouvia o ronco, mais alto que os grilos da noite. Quando conseguiu dormir, o dia amanhecia.

 

Ao quinto dia, ao acordar, Emília teve um pressentimento de que sua vida estava indo para algum lugar, que ela ainda não sabia qual. Mas sabia que sua Orixá lhe visitara durante a noite, em sonhos, e que iria direcionar seus próximos passos; assim como tinha sido ela, Oxum, quem a trouxera aos braços desse homem. Adiou os pensamentos que haviam atormentado sua madrugada insone, “O que estou fazendo aqui? Por que não enfrento de uma vez a vida que ficou no Pina, nos três anos incompletos de meu filho? Quem sabe, Josué já retornou de São Paulo?”

O sol já aquecera a manhã e os passarinhos haviam se recolhido ao silêncio. Pantélia chegou ao quarto com um copo de suco de laranja e um girassol, que pôs nos cabelos desalinhados de Emília. Como cachorro vira-lata desconfiado, abraçou-a, e depois foi buscar a quartinha d’água. Ao final, Emília recebeu agrados de mãe no corpo satisfeito.

Não fizeram juras de amor depois do amor na cama. Mas o whisky voltou para o fundo do baú.

Os mantimentos para preparar as comidas rareavam. A geladeira, quase vazia. A casa pedia para ser varrida, arrumada, limpa. Fizeram então a divisão ancestral do trabalho: o homem foi para a rua; a mulher ficou em casa.

Já era noite quando Pantélia retornou. Trazia parte das compras e um girassol para Emília. Começou a contar como tivera uma discussão com o dono da venda, que teria roubado na medição de seu litro de whisky. Faria um discurso sobre seus feitos de guerra, histórias do tempo em que fez História. Mas olhou para a mulher a seu lado e sentiu a tristeza dela. A voz dele caiu um tom. E os olhos fitam a mulher, onde lê a tristeza do Noturno de Schubert.  Baco havia mais uma vez vencido a batalha.

Enquanto Pantélia dormia na rede, Emília catou tudo que era dela e estava espalhado pela casa. As roupas do streeptease. As langeries compradas com Maria em uma loja chic de Boston, para estrear a volta à vida no Brasil. Havia sido uma bela estreia!

 

Na manhã do sexto dia, as malas de Emília estavam prontas. Pantélia caminhava pela casa mirando a bagagem. Convidou-a para dar uma volta.

Caminharam de mãos dadas por caminhos empoeirados e lamacentos da estrada. Já não com a alegria ensolarada com que desceram do avião no Aeroporto dos Guararapes, mas com a tristeza de um dia de chuva. Quando o sol anunciou que já seriam onze horas, Pantélia falou. Da angústia do bêbado, angústia que só passa à primeira dose do dia seguinte. Do tremor que já sentia em suas mãos, à aproximação das onze horas da manhã. E pedia, “Fica, Emília. Pelo menos até amanhã, dia de meu aniversário. Vamos continuar Goethe. Vamos ver as estrelas à noite, deitados no deck.”

 

Ao sétimo dia Pantélia deixou Emília de volta ao aeroporto, de onde ela tomou um taxi rumo ao Pina.

 

(continua no próximo domingo)

 

Emília

  1. Emília espiava o mundo pela janela

 

Ao segundo dia Emília se acordou antes de Pantélia. Ainda ouvia a cantiga da noite, com os sapos, as jias, os grilos… Chegou bem junto do nego tição que dormia ao seu lado. Ele cheirava à mistura de óleo diesel com poeira de estrada, e esse cheiro não lhe desagradou. Com pouco, ao bafo quente de Emília no seu pescoço, Pantélia despertou. Foi até a cozinha, trouxe uma quartinha e um caneco de flandre, que pousou na única mesinha ao pé da cama. Depois, tirou do bolso um cigarro enrolado à mão. “Fuma, Emília?” – Emília fez que sim com um gesto de cabeça, mas logo ponderou, “Quer dizer… mais ou menos. No meu tempo de faculdade, filava cigarro vez por outra.” “E maconha?” “Nunca.” “Quer experimentar?” “Quero.” “Segure mais tempo a fumaça no pulmão.”

A mesa onde Pantélia colocou a quartinha e o caneco estava coberta com um pano grande de chita, como fosse a colcha da cama. Depois de algumas baforadas, Emília viu as grandes flores do pano de chita se destacarem e começarem a levitar. Queria tocá-las no ar, mas logo voltavam ao plano da mesa. “Está vendo, Pantélia, as flores flutuando?” “Não, Emília. Só vi essas coisas com ácido.” Ela ria e se deliciava com aquelas flores coloridas imitando as papoulas e os girassóis do caminho. Ouviu distante o galo, outros respondendo, noite escura. Depois, já com os primeiros clarões, o sabiá.

Sem o constrangimento da aeronave, o corpo de Emília estava lânguido, solto, aquecido pelas cobertas. Ainda embaixo das cobertas, principiaram a se beijar. Os beijos pareciam infindáveis… uma saliva doce… As mãos percorrendo os corpos um do outro… Emília se ouviu pedindo, em ânsias, mete, meu amor, mete. E, de suas entranhas, ouviu por fim um grito, quase o mesmo que saíra de sua garganta na dor de parto, mas que agora brotava de um sítio desconhecido de sua alma fêmea. A boca estava seca e Pantélia lhe serviu canecos de água fresca da quartinha. Aconchegaram-se de novo nas cobertas, até quando ele se levantou para preparar o café da manhã. Antes de sair, abriu a janela de par em par, e a brisa da manhã entrou num quarto envolto em nuvens.

O dia clareava, mas o sol ainda estava escondido atrás dos morros. Emília espiava o mundo pela janela. Viu as nuvens escuras cedendo à claridade do sol, que dava vida aos verdes da mata próxima, longe, longe, até outro pedaço da Serra da Borborema. Uma rolinha veio pousar no galho de um limoeiro. “Essa janela que nos separa, rolinha, me deixa do lado de cá, aquecida no meu conforto… E você, que nem precisa de agasalho, aqui tão perto a me dar os bons dias? Você, rolinha, é a alegria passarinha do Brejo”.

A Emília coube, unicamente, arrumar a cama após os desalinhos do amor. Não era tarefa de pouca monta, pois nesse, como em todos os demais dias, a cama foi desfeita muitas vezes. Antes de tirar todos os lençóis e cobertor e coberta e travesseiros para arrumá-los de volta, ela gostava de ficar um tempo deitada para ouvir a sinfonia de fora, numa cama tão alta que careciam de escadas de navio para subir. A cama balouçava como rede, segurada ao teto por grossas correntes de ferro.

Uma revoada de andorinhas passou voando. Uma delas se desviou do grupo e entrou por descuido pela janela. Emília teve medo e gritou por Pantélia. Com mãos grandes e cuidadosas, e com um assobio, ele apanhou a bichinha, que, assustada, voava de um lado para o outro.

Emília voltou a dormir e sonhou. Sonhou que aquela cama era um tapete mágico. O dia já amanhecera, porém o sol ainda estava escondido pela montanha e os pássaros cantavam chamando o sol. O tapete sai flutuando pela janela e entra dentro de uma nuvem, por sobre umas árvores que ela só vira num livro de geografia do terceiro ano ginasial – cedros, araucárias…

Em cima do tapete voador, Emília pousa no galho de um cedro, igual fazem os passarinhos. Eles se assustam quando veem tão grande figura, como o povo se assustou quando viu deslizar do alto da montanha uma imensa pedra, uma história que ouvira na venda, no dia em que chegaram e Pantélia lhe apresentou aos que ali proseavam.

A pedra foi caindo, rolando morro abaixo, e seu barulho era de fim de mundo. O povo todo do lugar, com medo, foi ver. Quando finalmente parou de cair, ainda próxima ao cume da montanha, era ver um ípsilon de cabeça para baixo.

Isso aconteceu logo após a morte de uma velha, que vivia mais o marido há muitos e muitos anos, no alto da montanha. Alimentavam-se do que plantavam e da ajuda dos caminhantes de trilhas. Quando a velhinha ficou doente, os vizinhos de baixo do morro quiseram leva-la ao hospital da cidade. Mas ela não consentiu. E avisou, sem nenhuma tristeza nos olhos, que brilhavam dentro de órbitas fundas, rodeados de vincos formados de muitas luas, muitos sóis e muitas ventanias, “Me deixem morrer aqui. Já tenho a mortalha que costurei e o caixão que José fez com madeira dessas matas. Voltem depois de amanhã para ajudar ele a cavar a cova e colocar a cruz. Não carece de escrever nada em riba.”

Foi depois do enterro da velha que desabou a pedra. Uns diziam que fora castigo, porque o padre usou o dinheiro dos paroquianos para comprar um anel de ouro. Outros, que havia sido feitiço da velha, que tinha poderes de bruxa. Porém, ela sabia: voltava a ser pó com grande estardalhaço, como queria que tivesse sido sua passagem pela vida.

No caminho para o cemitério, a velha apossara-se do tapete voador.

“Encontrei esse tapete jogado na estrada no dia de meu enterro. Nesse dia formou-se uma romaria no povoado. Morta, voltei a ter feições de moça nova. Lábios rosados, corada de sol, mãos carnudas cruzadas embaixo dos peitos fartos e oferecidos. A mortalha que me vestia era de algodãozinho branco. Por baixo, dava para ver o escuro do meio de meu corpo e umas pernas roliças de quem muito cavalgou.

“Os homens, em grande disputa para segurar as alças do caixão que seguia sem a tampa, foram advertidos por meu marido, ‘O caminho é longo. Haverá tempo para todas as mãos desse povoado’.

“Deitada de barriga para cima, já estava cansada de olhar o céu. Deixei lá a minha figura e pulei fora do caixão. Já ninguém me via. Saí voando à frente do cortejo. Acho que fiquei do tamanho de uma sabiá. Mas me sentia igual sempre fui: gente, mulher. Bastava abrir os braços, balança-los suavemente, voava.

“Só vez por outra olhava de esguelha para os lados ou para a frente. Com o rosto voltado para baixo, fui espiando cada pedaço da estrada de terra. A lama. Os buracos. As cores em tons infinitos de marrons, cinzas e vermelhos. Choveu chuva fina. Senti os pingos nas minhas costas nuas e tive todo o gozo dos banhos de chuva de menina.

“Margeando o rio, seguia à frente de meu cortejo. Olhei para trás e o caixão vinha longe. Umas velhas cantavam latomias de igreja, outras rezavam o terço… Para mim, aquilo se parecia mais era um bloco de carnaval. Já estava ficando cansada de voar, quando encontrei esse tapete mágico jogado na estrada. Sentei nele e tomei outro rumo.

“Não assisti a meu enterro. Não sei nem para qual cemitério me levaram. No conforto do tapete voador, dormi. Estava cansada da luta contra a morte. Ninguém pense que morrer é fácil. A gente reluta. E tem medo, porque a morte é desconhecida e a gente só sabe da vida na terra.

“Acordei com o tapete pousado nos galhos desse cedro, que José meu marido plantou quando éramos jovens. Igual aos homens que seguravam as alças de meu caixão, os passarinhos que estavam nesse pé de pau também me viram como moça nova. Espreguicei-me de um sono profundo. E foi então que uma sabiá me trouxe uma trouxinha com comida e uma garrafinha de água, dizendo que eu deveria continuar a viagem por terra, pelas matas – aonde ainda as houvesse –, disputando rodovias com caminhoneiros, até chegar ao Oceano Atlântico, a um lugar chamado Pina, onde o povo de santo se reúne todo dia oito de dezembro para levar presentes à rainha do mar. ‘Hoje – avisava-me a sabiá – já estamos em sete de dezembro. Se apresse para chegar ao Pina até a noite do dia oito. Lá, escolha a mais bela jangada, e siga junto com as flores e oferendas até o fundo do mar, onde sua mãe Iemanjá lhe espera.’”

Emília se benzeu ao acordar desse sonho. Teve o pressentimento de ser a premonição de sua vida, depois que renascera de uma perigosa cirurgia cardíaca no Massachusetts General Hospital em Boston.

(continua no próximo domingo)

 

Emília

A vida estancou nesse paraíso – 07 de julho de 2020

Às 4:45 da madrugada, a Mulher do Sétimo Andar deitava-se na esteira para alongar o corpo, enquanto espera o dia clarear para sair de casa. Depois de dias de chuvas intermitentes, a Estrela da Manhã luzia forte num céu não totalmente negro, mas de um gris escuro. Brilha do lado esquerdo do quadro que forma a janela da varanda aberta, de dois metros e meio ao comprido por noventa e cinco centímetros de altura. Dessa esteira, seu ponto de vista para o horizonte, aprecia o céu mudando as cores lentamente. Os automóveis ainda não invadiram a avenida. Do mar, ouve o murmurar das ondas, e, sem vê-las, sabe que a maré está alta. Escuta o mar, sentindo no corpo o friozinho da madrugada invernosa. O sol ainda não nascera de nuvens escuras, quando a Mulher do Sétimo Andar teve uma ideia. Iria se retirar para um merecido descanso – trabalhara muito durante a Quarentena. Daria a palavra a outra personagem, que, tímida, andava escondida.

Emília vencera a morte pela segunda vez. Voltava para a sua terra. Quando desembarcou no aeroporto dos Guararapes, à claridade escandalosa de uma manhã ensolarada do Recife, apenas sorriu distante para Maria, e lhe fez com o dedo indicador um sinal de silêncio, o mesmo que se vê nos cartazes pendurados em corredores de hospitais.

Ao primeiro dia, com toda bagagem trazida de Boston, rumaram num jeep velho pela BR 232 em direção a Gravatá. Ela e o homem que ficara conhecendo na noite da aeronave. Outubro, fazia verão ameno de uma primavera que mantinha o verde de um bom inverno. Era o ano da graça de 1965. Foi só então que se falaram pela primeira vez. Como é teu nome? Pantélia. E o teu? Emília.

Pantélia era de pouco falar. Pela janela aberta do jeep, o vento assanhava os cabelos soltos de Emília, quando ela sentiu um perfume inebriante e pediu, “Pantélia, Pantélia, para no acostamento.” “Fazer xixi?” “Não, sentir o Cheiro de Velame.” “O que é Velame?” “Não conhece? É aquela plantinha besta.” Emília desceu às pressas do jeep, como uma menina que corresse atrás de uma boneca perdida. Baixou-se para atravessar uma cerca de arame e arrancou um galho novo de Velame. Voltou ao jeep com um sorriso estampado no rosto, enquanto cheirava a plantinha com volúpia. Ofertou ao nariz grosso de Pantélia: Sinta.

Em silêncio, Emília repassava passagens de sua vida e pensava, O cheiro é o sentido do desejo. Será para todos, como é para mim? Mais do que o tato. Mais do que o olhar. O olfato aflora de memórias antigas. E o desejo, que, diferente de nós, não tem idade, toma a frente da cena e empurra para trás o escrúpulo. Às vezes nem chega a ver esse estraga prazer.

Acabavam de atravessar a Serra das Russas. Principiava o Agreste.

Pelo outro lado da rodovia entraram na cidadezinha. Ela não conhecia. Defronte à igreja matriz, com sua torre se destacando dos prédios baixinhos de comércio, via-se a praça com bancos de madeira desbotada pela falta de árvores. Seguiram por uma rua de casas de uma época passada. Uma delas, paredes brancas, janelas cor de laranja, terraço da frente com cadeiras de balanço e rede, jardim de gérberas, cravos, rosas e gerânios. O terraço contornava o oitão livre, onde um pé de jasmim florido certamente perfumaria o ar da tardinha. Emília imaginou mangueiras, abacateiros, mamoeiros e bananeiras no quintal. Abaixo do telhado, numa parede encimando o terraço da frente, estava escrito Villa Octávia. Quem seria aquela Octávia que mereceu ter uma vila com seu nome?

Seguiram na direção do Cruzeiro, em rua sem calçamento. Ao primeiro cruzamento, o jeep desviou da subida do Cruzeiro e seguiu à esquerda, na direção de São Severino dos Macacos. Acabadas as ruas de casinhas pobres, entrou numa estrada de terra, mais própria para montarias. Nesta, não cruzaram com quaisquer outros veículos motorizados. Principiava um caminho ascendente, com curvas acentuadas. O jeep dava mostras de conhecer bem a estrada. “Conheço-a em cada palmo, tão devagar careço de andar nessa rodagem esburacada. Subo agora a Serra da Borborema, nesse pedaço que chamam Serra do Contente. Por enquanto, tudo são flores, que nascem bonitas nesse Brejo. A moça vai contente. Meu patrão mais ainda. Eu e ele somos unha e carne. A moça é bonita. Quem sabe agora meu patrão cria juízo?”

Por aquele caminho não passou boi nem boiada. Quanto mais subiam, mais apareciam florzinhas. Sim, aqui há primavera. No Brejo existe primavera. Flores junto às cercas de arame farpado, beirando a estrada. Primeiro foram as papoulas, que fizeram Emília se lembrar da casa do Velame, onde as papoulas floravam atrás do muro da frente. Coloridas em amarelos, rosas e vermelhos. Depois, as nuvens: delicadas, azuis. Bouganvilles, com todas as cores da primavera, esparramavam-se em cima dos muros. E, sem ordem, enxeridos em qualquer terreno, girassóis. Os daqui não têm a imponência dos que vanGogh pintou em monótonas plantações. Nascem junto ao mato e parecem não ter grande convicção em olhar o sol. Flor agrestina, herdou do sertanejo a desconfiança com sol quente. E, como as papoulas, esses girassóis são crianças pobres: nascem muito e morrem depressa.

O jeep reclamou da subida mais íngreme, desde a fonte de água mineral até uma encruzilhada marcada por uma venda. Tomou a direção de São Severino dos Macacos. No último quilômetro antes de chegar ao destino, a estrada mostrou o Brejo pleno de águas em sua feição própria. Mata dos dois lados, casinhas de sitiantes de vez em quando. Em alguns trechos, os pés de Sabiá fazem uma coberta por cima da estrada, deixando-a sombreada e misteriosa. Nesse trecho, o jeepinho sorriu e pediu a marcha de força, pois ali principiaria seu balé deslizando na lama.

Chegaram. A porteira estava aberta. Apiaram. E prepararam juntos a primeira refeição do dia, frutas, queijos e iogurtes, que comeram sentados nos bancos de uma pequena mesa de madeira roída pelas chuvas e pelo sol, e afixada numa pedra em frente à casa, embaixo de uma pitombeira. Depois foram caminhar no sítio.

No hall de entrada da Casa do Brejo havia um cabideiro com chapéus, agasalhos e guardas-chuvas. Embaixo, um banco velho. Abaixo deste, no chão, calçados apropriados para caminhadas. Pantélia mostrou a Emília um par de botas azul marinho e, com um sorriso maroto lhe disse, “Se couber nos teus pés, serás minha noiva”. Num canto entre as paredes, havia dois cajados. “Pega esse mais bonito”. Emília tomou-o à mão direita e saíram a percorrer os dois hectares e meio.

As tilápias de um barreiro com água escura se aproximaram quando Pantélia jogou ração. Dali, os dois foram por um caminho ladeado por Palmas de São Jorge, até uma pedra espraiada de onde se via o mundo. Foi ali que o Demônio tentou Jesus Cristo, oferecendo-lhe o paraíso terrestre em troca do reino celestial.

Para chegar ao lajedo da tentação de Cristo, caminharam por terra batida, por entre pedregulhos, jaboticabeiras, pitombeiras, mangueiras, jaqueiras, muitas folhas secas no chão. O cajado ali tinha serventia. Numa das pedras do caminho, depois do barreiro, sentaram e tiraram botas e meias. Dali até o lajedo, foram sentindo nos pés o roçar das folhas secas, dos grãos de areia da cor de um caneco de flandre. Havia que ter atenção às pontas afiadas dos gravatás. A pequena viagem a pé carecia de cuidado e explicações de Pantélia.

À chegada ao lajedo, com a visão magnífica da redondeza verde, casinhas espalhadas de longe em longe, parecendo uma natureza pintada, pararam. O danado do negro parecia um profeta, com o cajado na mão apontando ao redor, a cabeça raspada reluzindo ao sol das primeiras horas da manhã, uns olhos que quase faiscavam ao brilho do sol. Sentou numa pedra com formato de cadeira incômoda e cedeu a outra, mais confortável, para Emília. Ficaram ali quanto tempo? O tempo obedecia a outra contagem, porque haviam deixado os relógios dentro de um baú no hall de entrada da casa. Depois do silêncio, calçaram de volta as pesadas botas e iniciaram a descida da encosta do morro. Entraram na mata. Havia uma trilha, na qual cipós e galhos ameaçavam os olhos e os braços. Pantélia puxou de um facão grande embainhado ao cinto na parte de trás das calças, e foi na frente, cortando galhos e cipós, abrindo caminho. Às vezes se voltava e dava a outra mão para Emília atravessar uma passagem mais difícil.

De repente, na mata, uma clareira. No meio dela, o maior pé de pau que Emília já vira na vida. Um baobá. Pantélia lhe assegurou que fora trazido da África. Treparam. Em menina, essa era uma das melhores brincadeiras. No pé de manga do quintal de Silvana e Cristina, viviam comadres e construíam casinhas imaginárias em galhos separados uns dos outros. Ela pequena, aquela mangueira era uma árvore imensa!

– Quer ser meu compadre, Pantélia?

A vida estancou nesse paraíso. Emília não quis pensar no que a esperava e quando.

 

(Emília, contada ao modelo Folhetim do Século XIX com formato Século XXI, continua no próximo domingo)

 

Diário do Pina

A quarta lua – 03 de julho de 2020

 

E estamos chegando à lua cheia nesse domingo, depois de amanhã. A quarta lua da quarentena. Deve ser por isso que a Mulher do Sétimo Andar anda tão agitada. As marés, nesses tempos aluados, ou estão muito altas ou muito baixas. Hoje, dia claro, cinco horas da tarde, a safadinha já aparecia risonha a muitos palmos da barra do Oceano Atlântico. Brinca de esconde-esconde com uma nuvem cinzenta, que lhe diz assim: daqui a pouco você vai realçar no céu escuro da noite. E mais se amostraria a lua, não fossem os postes a lhe tirar a noite, altos que nem perna de pau que anuncia circo chegando na cidade, Hoje… tem… espetáculo? Tem, sim senhor. Oito… horas… da noite? Tem, sim senhor. Arrocha negada! ÊÊÊÊÊ!

Pois como é que uma pessoa que já trabalhou tanto nessa vida; nem votar carece mais, para todo quarto dia útil do mês receber os proventos da aposentadoria, como é que essa pessoa não vai simplesmente descansar em berço esplêndido, tal qual os livros aposentados de sua estante do almoxarifado? Não. Essa pessoa parece até que tem um resto de menina atiçando seu olho comprido para brinquedo novo.

Desde que começou a escrever para não mais do que meia dúzia de leitores, a Mulher do Sétimo Andar passou a fazer disso uma obrigação, como se estivesse comprometida com uma coluna semanal de jornal. Será que a compulsão para trabalhar faz parte da natureza humana, desde que a serpente seduziu Eva, que seduziu Adão para morder a maçã, que depois virou símbolo de uma importante fábrica de máquinas de escrever?

A lua, agora, já não está esmaecida pelos retalhos do sol poente. Brilha altaneira no céu, malgrado o perna de pau bem defronte à janela onde escreve a mulher. Se Deus der bom tempo, essa lua nascerá na hora aprazada, cada dia mais tarde, até seu esplendor no domingo; e o sol, mais preguiçoso no inverno, não deixará de alumiar e aquecer a terra todo santo dia. Tudo isso seguirá seu curso, escreva ou não escreva o Diário do Pina a Mulher do Sétimo Andar. Contudo, mal divulga a crônica no domingo para sua meia dúzia de leitores, ela já se põe a pensar na próxima.

Gostava quando a ideia para a crônica seguinte já aparecia no começo da semana. Assim, teria tempo de ir costurando sem pressa. Foi o caso dessa semana. Na terça feira concluíra a leitura de um romance de Dostoiévski. Copiou um longo parágrafo do epílogo, batizou a crônica de Pandemia, e já estava pelo meio do escrito, quando viu a lua às cinco horas da tarde. Vocês ainda não conhecem bem essa mulher. Em tempos de lua cheia, ela muda de ideia com muita facilidade. Releu o que estava escrito. Era ver o roteiro de uma palestra. Não, não. Deus me defenda. Palestra, nunca mais, foi o que ela pensou. E mudou a prosa, pois, afinal, a praia estava livre dos cocôs de cavalo e havia sido tomada por uma horda de meninos doidos para brincar no marzinho raso e na areia fofinha. Deixou o crime e o castigo de lado, e tomou o caminho da rua. O que é de um cronista sem “A alma encantadora das ruas” (belo título do livro de crônicas de João do Rio)?

Então a Mulher do Sétimo Andar caminhava no primeiro de julho pela areia da praia do Pina. O dia estava invernoso e sombrio. Ao sair de casa, às 5:10 da madrugada, as luzes dos altos postes ainda não haviam se apagado de todo. Caminhou na direção do mar, atravessando a área de mato crescido pelas chuvas. Passou pelo seu coqueiro, que finalmente brotara em folhas novas. Talvez tomasse impulso de crescimento nesse inverno. Arrancou os matos de dentro da pequena área redonda demarcada pelo pneu pintado de branco, onde está escrito em letras pretas Josué 2017. A castanhola Emília, plantada no mesmo dia, com franzino tronco e folhas grandes e espalmadas, já pode dar sombra a três ou quatro pessoas. Que essas pessoas sejam meninos, estarão na idade dela.

Chegando à areia, viu uma jangada entrando no mar. Lembrou que há dois dias nenhuma delas saiu para pescar. Era o 29 de junho. Feriado para os pescadores em homenagem a seu padroeiro. Nesse ano de quarentena, não houve missa campal, celebrada pelo Arcebispo de Olinda e Recife em palco improvisado de Brasília Teimosa. Mas haveria sim a procissão das jangadas de lá. As daqui do Pina, em um rito que deve ter origem nos costumes de nossos pais indígenas para suas entidades sagradas, hastearam as velas desde a véspera à noite. Pela madrugada, o velame tremulava aos ventos sul. Os pescadores iam chegando, retornando as velas brancas a seus mastros. Nesse dia, diferentemente de todos os outros do ano, elas não descansarão deitadas ao comprido da embarcação. Ficarão em posição de sentido, apontadas para o alto, a implorar a São Pedro um bom ano de pescaria. Já em casa, a mulher ouviu os rojões. Imaginou a procissão de jangadas de Brasília Teimosa saindo ao mar.

Porém, o primeiro sol depois da abertura das praias na Quarentena foi antes, no feriado mais festejado pelos pernambucanos, o de São João. Nesse dia, a Mulher do Sétimo Andar não saiu de casa para caminhar, como faz costumeiramente. De pés descalços, perambula pelas prainhas onde brincam meninos pequenos. Escorada nos arrecifes que formam um banco a separar o mar e as piscininhas, espia.

– “Maria Flora!” É a mãe chamando a menina que se aventura a ir mais para o fundo. Toda menina que tem nome composto com Maria, treme quando é chamada pelos dois nomes. É sinal de que vem bronca. Se arrumam para ir embora. A mãe pede ajuda a Gabriel. Ele deixa a tampa do isopor cair do outro lado da barreira de arrecifes, dentro de uma das prainhas. Desce de um pulo para apanhar a tampa, com a maior má vontade. Estava tão bom os dois brincando no mar… A mãe insiste, já brava: vamos embora. Gabriel pega a alça do isopor e pendura ao ombro magrinho. A irmã leva na mão uma das sacolas de plástico com as roupas. Nisso, os meninos avistam lá longe, vindo de Brasília Teimosa,

– “É ele, mãe, não está vendo?” O pai traz mais duas sacolas de plástico nas mãos. Os olhinhos dos meninos brilham! Já a mulher, recebe-o com palavras ásperas, “Por que tanta demora?” “Estava no delivery, mulher, queria o que? Como vou botar comida na mesa em casa? Hoje é feriado, tive que trabalhar em dobro. Desmancha essa tromba. Trouxe aqui o lanche. Ainda tem cerveja?”

Flora e Gabriel esquecem por enquanto o mar. Sentam-se todos na areia da praia, que as sombrinhas e cadeiras ainda não estão permitidas. Coitados dos vendedores ambulantes! A Mulher do Sétimo Andar mudara seu habitat para o outro lado do muro de arrecifes. Deita-se numa das piscininhas, tão rasa que não lhe cobre o corpo. De uma pedra faz travesseiro. E agora espia a família comendo e bebendo em silêncio. O herói, um moreno bonito, entrega um sanduíche a cada filho. À mulher, ele ainda passa a mão no ombro e recebe um sorriso. Estabeleceu-se a paz. Gabriel e Flora sabem que terão mais mar, “com seu cheiro bom, os seus ventos, suas chuvas, seus peixes, seu barulho, sua grande e espantosa beleza”.

Já pensava em retornar de seu devaneio preguiçoso, a Mulher do Sétimo Andar, quando, mais adiante, olhou outra cena que lhe deixou mais tempo deitada em seu travesseiro de pedra. A princípio viu apenas os três rapazes, cavando com as mãos a terra fofa e úmida e cobrindo dois corpos. Lembrou-se dessa brincadeira de seus tempos de veraneio, de enterrar vivos, deixando só a cabeça de fora. Espiava como se na última fila do último camarote de um teatro, apurando a vista para não perder nada pelos olhos, já que os ouvidos ouviam apenas a risadaria gostosa da moçada. Viu quando as duas moças se levantaram, espanando a areia do corpo. Cabelos longos, biquínis fio dental, lindos corpos morenos, com essas bundas redondas e arrebitadas das mulheres brasileiras que carregam sangue negro nas veias. Um cão vira-lata late desesperado, como se quisesse entrar na algazarra dos adolescentes. Invertem-se os papéis e as moças agora é que enterram os rapazes. Pano rápido. Eles são menos pacientes. Os cinco correm de um lado para o outro, elas sacodem os longos cabelos. Uma delas, com o corpo abaixado por mãos e pés apoiados no chão, forma um obstáculo, que os três disputam quem dará o melhor salto ao outro lado.

Na volta pra casa, ainda vê a trupe entrando no mar para tirar a areia do corpo, e depois sair caminhando na direção de Boa Viagem. Não fossem os sacos plásticos e o som, que alguns insistem em ouvir pelo celular, seria um paraíso.

Diário do Pina

Noite de São João – 24 de junho de 2020

 

Ontem, véspera de São João, foi o dia mais difícil da quarentena para a Mulher do Sétimo Andar. Até então ela vinha conformada. O confinamento mudara pouco a sua rotina de anos: viver sozinha, com o mínimo de necessidade alheia. Uma espécie de monastério, com suas próprias crenças apanhadas aqui e ali em retalhos da vida.

Pediu para sua arquiteta botar em desenho um recanto de seu apartamento a que chamou de Peji, justamente por ter ícones de crenças muito variadas, de Iemanjá e Oxum, suas duas orixás de cabeça, a Buda, Nossa Senhora do Carmo, irmã gêmea de Oxum, Nossa Senhora da Conceição, irmã gêmea de Iemanjá; fotos de seus ancestrais, representados pelo pai e pela mãe; uma quartinha de água fresca… Há também nesse Peji umas flores do campo de Minas Gerais, que foram ressecadas em um lindo colorido em amarelos e alaranjados, como se ali estivesse sempre a luz do sol. E um castiçal de sete velas, feito de bambu pelo artesão Sebastião de Almeida Faria. Ficou sendo seu lugar de recolhimento e meditação. Fez ainda uma reforma na cozinha. As prateleiras dos armários, bem como o forno, ficaram à altura de seus braços, para não precisar se abaixar nem subir escadas.

Ah, que paraíso! A semana toda sozinha. Fazendo sua comidinha, lavando a louça, ouvindo música, lendo… Escrevendo. Passeando na areia da praia, no calçadão, nas ruas estreitas de casas de arquitetura popular de Brasília Teimosa… Com setenta e cinco anos, ela pensava assim: quanto me sobrará de vida daqui pra frente, até esbarrar no muro da vida? Nesse assunto, a gente costuma não pensar (a não ser quando vai a enterro de gente de nossa geração), ou pensar pelo melhor: a demografia mostra que, a cada nova geração, está aumentando a esperança de vida. Aí jogamos esse muro lá pra frente, para um infinito fora de nossa vista. E lemos com satisfação as mensagens de whatsapp de bonitas palavras, que romantizam a nossa geração como melhor do que a de nossos pais.

Foi então que a Mulher do Sétimo Andar ponderou: pelo sim, pelo não, o certo é que já vivi três quartos de século. De meus parentes, os que estão acima de mim já se foram todos. Ganharei talvez alguns mirrados anos a mais. Mas o tempo urge, ou ruge, como dizem numa brincadeira, que, nesse caso, senta bem.

O que mais desejava nessa vida aquela mulher? Ela lembrava o tempo de estudante/ativista/professora em escolas primárias. Sempre tanto trabalho, tanto compromisso de leitura chata. Depois, professora universitária. Sempre tanto trabalho, tanto compromisso de leitura chata; quarenta provas, todas sobre o mesmo assunto; todos os anos, os professores amadurecendo nos galhos da academia, os alunos sempre verdes. É certo que havia oásis: os orientandos, as boas leituras dos cursos da pós-graduação. Quando estudante universitária, chegou a devanear: se fosse presa e se na cadeia pudesse ler… Ler sem compromisso, os romancistas russos e franceses… Ler Machado de Assis…

A aposentadoria fora uma bênção de suas orixás. Mandou o marceneiro fazer uma estante no quarto de empregada, compartilhando o espaço daquele quarto com material de limpeza, vassouras, caixa de ferramentas – um almoxarifado. Lá arrumou todos os livros que não vai ler mais nessa vida, inclusive o que ela mesma escreveu em tantas revistas acadêmicas, meu Deus do céu! Não, não renegava nada daquilo. Dormiriam ali em berço esplêndido. Mas agora o tempo e o lugar eram outros. E as estantes do escritório, espaço nobre da casa, foram povoadas somente pelos escritores desejados. Uns foram chegando. Outros já estavam lá, lidos. Outros ainda, esperando a hora. Há quanto tempo? Esperando, esperando. Quem sabe um dia?

Dentre estes, Proust, No Caminho de Swann. Quando pegou o livro na estante, não se lembrava de quase nada do que lá estava escrito. Que raio de leitura fez na época? Sabia que tinha lido, pelo menos até a metade: em certas passagens, haviam frases grifadas. As pessoas podem nunca chegar a firmar uma característica pessoal de escrever. (Privilégio, aliás, dos grandes escritores de ficção). Mas todos os costumazes leitores desenvolvem seu jeito próprio de sublinhar os livros. Foi folheando as páginas, como quem encontra na rua um velho amigo a quem não vê faz tempo; se abraçam, sabe quem é, mas não lembra o nome. E então Proust, com a capa de trás já sem a musculatura forte de livro novo, abriu-se e mostrou as duas últimas páginas. Uma em branco. A outra, imaginem, um Cartão Resposta Comercial, escrito: “Inteiramente Grátis para Você! Receba as próximas edições da Revista Literária Globo, com todo o conforto em seu endereço e sem gastar absolutamente nada!” Ah, eram assim as propagandas daquele tempo.

A surpresa não foi, contudo, o Cartão Resposta Comercial, mas a página em branco. Pois lá, com o mesmo lápis com o qual a leitora sublinhava passagens de Proust, uma criança, com não mais que quatro ou cinco anos, desenhou um foguete.

Ao mirar de perto o foguete, a Mulher do Sétimo Andar viajou no tempo e no espaço. Viu uma jovem mãe sentada num sofá com um livro e um lápis na mão, enquanto os dois filhos, sentados no chão da sala, de onde fora arrastada para um canto a mesa de centro, montam construções com peças de Lego. Lembrou da frase pronunciada pelo filho mais velho, no finalzinho da meninice, Mãe, eu às vezes fico triste quando penso que um dia vou crescer e não vou mais gostar de brincar de Lego.

E ficou pensando na cena. As crianças gostam de brincar sozinhas, mas gostam mais ainda de ter a mãe por perto, à mão. De preferência, prestando atenção ao que fazem. Mostrar um automóvel maluco que acabou de construir. Ou a fábrica onde colocar mais carros. A mãe tenta ler um pouco enquanto eles brincam, aqueles parágrafos infindáveis de Proust, aquelas viagens intermináveis pela sensibilidade e a percepção, quase sem enredo. Quando o pequeno tirano percebe que a atenção da mãe se voltou para algo que não ele, corre aos seus braços. Às vezes o malandrinho (o caçula, certamente) ainda faz uma graça, pede um beijo. Pronto, lá se foi o longo parágrafo, terá que voltar ao princípio. Não, não tem Proust que resista à tirania infantil. Melhor entregar os pontos. Vocês venceram.

A mãe mostra o livro, o filho descobre a penúltima página em branco, Posso desenhar aqui, mãe? E lá ficou o foguete apontado para cima, possivelmente em guerra com outro, incompleto, por falta de espaço, apontado para baixo. Por mais de trinta anos esteve Proust pacientemente esperando na prateleira, junto com outros escritores mais satisfeitos, como Saramago, que dizia, eu, pelo menos, fui lido em quase tudo o que escrevi. Você não saiu do primeiro volume. E não chegou nem à metade.

Então a Mulher do Sétimo Andar foi ler o começo da crônica e ficou espantada com ela mesma, pois, quando principiou a escrita, deu o título de Noite de São João, e dizia, então, que aquele havia sido o dia mais difícil do confinamento. Aí entrou por uma perna de pinto, saiu por uma de pato, sem dizer afinal onde entrava São João nessa história toda. Nunca é tarde, mulher, diga agora. Pois bem, foi duro uma noite de São João sem fogueira. Já nem digo a música, que ela recebeu de montão pelo whatsapp, e ainda botou pra tocar Luiz Gonzaga dos primeiros tempos, de quando ele se apresentava nas Rádios Difusoras desse interiorzão nordestino. As de suas melhores parcerias, com Humberto Teixeira e Zé Dantas. Meu Pé de Serra, Asa Branca, juazeiro, Légua Tirana, Assum Preto, Estrada de Canindé…, Vem Morena, Cintura Fina, Forró de Mané Vito, A volta da Asa Branca… Ou até a comida. Contentou-se com uma pamonha. Nem mesmo a dança. Com um cabo de vassoura, dançou xote e baião. Mas proibiram as fogueiras. Era a primeira vez na história do Nordeste em que se proibiam as fogueiras de São João. Que tempos estamos vivendo, meu Deus do céu, de tanta desgraça! De chegar a esse ponto? De não se ter nem uma fogueira na noite de São João?

Seu João era morador da Fazenda Bálsamo, em Bezerros. Um dia, arresolveu-se a se mudar para Goiás. Entregou a casa ao dotô, acertaram as contas do Inss, e lá se foi mais a família. Eram bonitas as histórias de seu João, com o modo agrestino dele falar, antigo, de um português castiço, misturado ao espanhol. Era escutar Miguel de Cervantes, Guimarães Rosa. Na sua linguagem, a natureza e os bichos tinham sinônimos que se perderam com a televisão: o jumento também é poté, também é polodoro.

Foi embora seu João, com a mulher, os meninos, o matulão. Ia ganhar salário mais gordo nos Goiás. Era o mês de setembro. Em outros setembros, já tivera a experiência de migrar para o que esses agrestinos chamam de Sul. Mas essa era uma viagem curta, dava para deixar a família, se arrumar de qualquer jeito nos galpões da Zona da Mata nomeados de Senzalas; ficar por uma, duas semanas; e voltar com a feira para a família, arrancada com o suor do corte da cana. Foi lá que perdeu os dentes da frente, chupando a cana proibida no meio do canavial. No final do dia, junto com o de comer, uma cachacinha mais os camaradas. Disse que houve um engenho onde mordiscavam as folhinhas de um pé de pau que dava uma alegria besta… danavam-se a dar risada. E lá ficava, por aquele mundo de cana, o verão todo, pagando os pecados. Até ouvir no céu o ronco das trovoadas de janeiro, a esperança de bom inverno.

Dessa vez, ia para o desconhecido. Menos de um ano adispois, regressa seu João. No alpendre da Fazenda Bálsamo, proseava. A senhora quer saber por que voltei? Pois foi por mode uma fogueira. Aquele povo de lá não tem religião não senhora. Só pensa no trabalho. A senhora acredita que ignoraram minha fogueira? Adonde já se viu um cristão não acender uma fogueira na véspera de São João?

Diário do Pina

Vai passando o ferro velho – 20 de junho de 2020

 

A Mulher do Sétimo Andar pegou o hábito de saber as horas do dia pelo movimento da rua. Alguns foram suspensos com a quarentena, como o tenor evangélico da moto, a caminho do trabalho. Todos os dias da semana, às cinco e meia da madrugada, exceto aos domingos.

“Almoço! Almoço é a cinco, almoço é a dez, olh’aí”. Al-moooooo-çô (lá-si bemol-lá). Al-mo-çéacincal-mo-céadezolhaí  (lá-dó-lá-dó-lá). Já esse pregão principiou com a quarentena, entre às onze e meia e onze e quarenta da manhã, também com exceção dos domingos. Para a Mulher do Sétimo Andar, era um aviso para suspender a leitura ou a escrita e começar a preparar o almoço.

Na esquina da rua Ondina com a rua Capitão Ribelinho há um restaurante popular antigo, embaixo de um prédio velho, desses que antecederam a incorporação da orla do Pina ao way of life de Boa Viagem. Esse restaurante, antes da quarentena, era muito frequentado por parte dos serviçais da redondeza: operários de construção, faxineiras, porteiros de prédios. Fornecia também quentinhas. Não seria o pregoeiro do almoço um simulacro dos aplicativos de celular, por parte daquele restaurante da rua Ondina?

Ruas cheias de prédios, há que ter um vozeirão forte para alcançar os andares mais altos. A Mulher do Sétimo Andar, confinada, não vira ainda o homem da quentinha do almoço. Mas ouviu dele a mesma voz do pregoeiro da macaxeira. Este, também, foi outro que sumiu com a quarentena. Eram duas notas musicais somente: ma-ca-xêêêêêêra (dó-lá-dó).

Um dia distante, quando as pessoas ainda saiam às ruas sem máscaras, a Mulher do Sétimo Andar encontrara por acaso o vendedor de macaxeira na calçada. Um homem chegado nos cinquenta anos, magro, (a magreza pobre de antigamente, que a indústria alimentícia e a propaganda de televisão trocaram pelos pobres gordos), sandálias havaianas, bermudas, camiseta de velha campanha eleitoral desbotada, e um chapéu de palha tipo cantor Mariachi do México. Trazia a macaxeira dentro de um carrinho de mão meio enferrujado, onde também uma balança. Naquele dia, viu ali um homem saído da imensa Cidade da Periferia do século XXI, sucedânea da Cidade dos Mocambos do século XX. Um neto, quem sabe, daquela Cidade dos Mocambos. E viu, quando foi descrevê-lo, a figura de seu avô: um pau no ombro, envergado pelo peso de dois balaios pendurados, um em cada lado,

Na manhãzinha fria de junho, quase noite, vêm chegando os balaieiros carregados de frutas e verduras, pela estrada de Afogados. Saiam dos seus mocambos alta madrugada, com os grilos cantando, os sapos respondendo lá fora, de dentro da noite escura. A estrada arrasada, pelas chuvas de maio, está lama só. Os pés chatos dos balaieiros se enterram na terra mole, espirrando barro por entre os dedos. Nesta hora incerta, ainda com a cor da noite, mas já soprando um arzinho da manhã, a estrada do Motocolombó se perde invisível no meio dos mangues, com seus mocambos ainda apagados, dormindo na placidez do charco. (Josué de Castro)                                                                                                                                                                                                                                                                                          Lembrava do tempo de estudante, quando morava no bairro do Poço da Panela, no Recife. Ali passavam muitos. Nesse tempo, o serviço dos pregoeiros era de mais serventia, porque os compradores ainda não viviam trepados e confinados. Alguns, em vez da voz, usavam instrumentos musicais. O apito do amolador de facas e tesouras. O triângulo do vendedor de cavaquinho. O sininho do sorveteiro.

Morando em Boston, economizando tostões, para o mês caber na bolsa de estudos da Capes, resolveu reciclar latas e garrafas no supermercado, que lhe pagaria uma ninharia. E saiu, acompanhada do filho (naquela idade adolescente em que morrem de vergonha dos pais), um frio danado, por ruas de paralelepípedos, o carrinho de compras cheio até a borda, telecoteco, telecoteco. Foi lhe dando uma tristeza de se sentir pobre, e, para espanto do filho (Tá doida, mãe?), gritou a todo pulmão, “Garrafa, meia garrafa, litro. Vai passando o ferro velho!” Com a mesma entonação lenta e compassada do canto de uma nota só, ouvido, há tanto tempo, na rua Professor Edgar Altino. Deu meia volta. E despejou todo o conteúdo no lixão reciclado do prédio onde viveu por um ano.

Diário do Pina

Conto de Quarentena – 13 de junho de 2020

 

Era uma vez um menino que vivia com a mãe, sendo o primogênito e o único filho. Morava em um morro com muitas casas ajuntadas sem ordem de uma cidade grande, cidade fadada pela História a se antecipar às grandes revoltas do reino. Quando nasceu, a mãe estava em dúvida sobre seu nome. E o pai, a quem compete nomear os filhos, determinou que seria chamado Miguel. Este nome, derivado do hebraico, Mi-ka-el, significa “quem é como Deus”. Nos livros sagrados, o Arcanjo Miguel se levantará durante um tempo de aflição que nunca aconteceu antes, como um grande guerreiro que defende o povo de Deus.

No dia de seu nascimento, vieram vizinhos, amigos, e duas ciganas.

– Todo o céu e a terra

lhe cantam louvor.

Foi por ele que a maré

esta noite não baixou.

– Foi por ele que a maré

fez parar o seu motor:

a lama ficou coberta

e o mau-cheiro não voou.

– E a alfazema do sargaço,

ácida, desinfetante,

veio varrer nossas ruas

enviada do mar distante.

– E a língua seca de esponja

que tem o vento terral

veio enxugar a umidade

do encharcado lamaçal.

– E este rio de água cega,

ou baça, de comer terra,

que jamais espelha o céu,

hoje enfeitou-se de estrelas. (João Cabral de Melo Neto)

Em 2 de junho de 2020, o menino Miguel, com cinco anos, acompanhou a mãe ao trabalho. Vestia short e camiseta de seu último aniversário, comemorado com motivo de jogador de futebol, seu projeto de ser grande: jogador ou policial. Dois sonhos de meninos pretos nascidos e criados na periferia daquele imenso reino.

Antes de sair de casa, a mãe prevenira o pequeno Miguel: seria castigado se estirasse a língua para a patroa. Mas ele, travesso, desobedeceu. Ficou de castigo. Não acompanhou a mãe, quando esta desceu no elevador, no quinto andar, para levar a cadela da patroa para fazer xixi e cocô no andar térreo do prédio.

Miguel tomou-se de uma infante revolta: a mãe trocara-o por uma cachorra. A cadela foi passear. Ele ficou confinado. Chorou, esperneou, mostrou a língua mais ainda. Foi levado ao elevador pela impaciente patroa, que não queria ser importunada no trabalho de sua manicure a lhe fazer as unhas. Sozinho no elevador, Miguel vai apertando os botões, em uma brincadeira irresistível às crianças.

Desce no nono andar. É então que vê um coelho correndo apressado, dizendo, “Ai, ai! Ai, ai! Vou chegar atrasado demais”. Quando viu o coelho tirar um relógio do bolso do colete, olhar as horas, e depois sair em disparada, Miguel imaginou que ele sabia o caminho para descer e encontrar a mãe. Qual Alice, a do país das maravilhas, vai atrás do coelho. Primeiro, anda por intrincados corredores do nono andar, sempre seguindo o coelho. Depois, sobe à casa de máquinas dos elevadores. Dali avista a mãe embaixo passeando com a cachorra. Mãe! Mãe! Ela não ouve.

Continua seguindo o coelho, que entra numa toca e vai descendo, descendo, e depois se afunda de repente, tão de repente que Miguel não teve um segundo para pensar em parar antes de se ver despencando num poço muito fundo. Ou o poço era muito fundo, ou ele caía muito devagar. Tentou olhar para baixo, a ver de novo a mãe, os braços da mãe para lhe aparar. Mas a vista escureceu e ele não viu mais nada. Caindo, caindo, caindo.