- Josué
Há dias mais longos do que as vinte e quatro horas. Aquele cinco de julho de 1954 havia sido um desses dias. No silêncio de uma noite em praia deserta, ouvindo apenas as vagas intermitentes do mar, Emília pensava nas palavras ouvidas da boca da avó, nas palavras escritas naquele papel despedaçado chamado por ela de carta. E temia. Temia a incerteza de uma herança de crenças até então desconhecidas por ela, que só sabia de primeira comunhão, de crisma, das missas aos domingos, da hora do ângelus.
Os filhos da tia Nenê eram um time de futebol completo, metade homem e metade mulher. Do mais velho, rapaz feito, até a caçulinha ainda de colo, Emília os conheceria nos dias seguinte, uns mais, outros menos, nos almoços domingueiros na casa da tia, no dia da festa de Oxum, nos banhos de mar, nas serenatas à beira mar em noite de lua cheia. Depois saberia que aquela tia, Mãe Pequena nas cerimônias de Candomblé, fora destinada pela avó a tomar conta dela em todos os preparativos para festa de Oxum, respondendo a tudo o que ela quisesse saber, ou deixando-a sozinha, quando pressentisse que ela queria ficar calada.
Pela mão da tia Nenê, Emília foi apresentada a espaços inusitados, a nomes desconhecidos do seu vocabulário. O Peji, com seus altares para santos do Cadomblé e da Igreja Católica; com os tambores em descanso, cuja batida ritmada para cada Orixá ela conheceria na festa de Oxum. O Bolé, um aposento sem janela, com um batente largo junto à parede de trás, onde imagens de Iansã e Santa Bárbara, flores de papel, velas. No chão cimentado, várias tigelas, nas quais, em dias de preceitos, eram ofertados alimentos e sangue dos animais sacrificados.
(Os trinta e um dias passados no Pina haviam sido um purgatório na vida de Emília. Para quem ia ao colégio com motorista, agora acordava em horário de pescador, para dar tempo de tomar banho, se vestir, comer, caminhar até o terminal do ônibus, que a deixaria na Avenida Guararapes, para, dali tomar outro ônibus até o colégio, no arrabalde das Graças. À tentação de voltar atrás, para o conforto da casa dos pais adotivos no Velame, ela se lembrava da mãe de criação, o enigma da falta de amor daquela mãe, que Emília só viria a decifrar, o que em nada contribuiu para apaziguar seu sentimento de rejeição, quando soube a verdade de ser filha adotiva. A palavra mamãe havia sido varrida de seu vocabulário: a do Velame, ficou sendo dona Heloísa. E a mãe verdadeira, Maria Emília.)
Quando a tia sentiu que Emília já sabia demais para um dia, segurou a mão da sobrinha, olhou meiga nos olhos dela, que não pareciam propriamente cansados, mas reflexivos. E nem careceu Emília lhe dizer que queria agora ficar sozinha, na esteira de palha de bananeira do quarto dos ancestrais, o Bolé.
Lá, Emília passou a limpo no seu diário a carta da tataravó, e escreveu tudo o que se lembrou da palestra da avó no terraço. Fez um esqueminha para não se confundir com tantas Emílias e tantas Marias. Houve a primeira Emília, a rebelde, a que deu ao mundo uma filha mestiça; a branca que viveu um grande amor com o negro Josué, e dali surgiu a descendência brasileira. Houve a primeira Maria Emília, da qual ela nada soube, porque dela nada foi dito. Sabia apenas que nasceu com os olhos azuis em pele escura, quase negra. Já a segunda Emília, essa era a avó dela, uma mulher plena, com quem a neta criaria vínculos para além dos laços de sangue. A segunda Maria Emília era sua mãe, que ela principiava a conhecer melhor no seio da grande família de santo do Janga. E a terceira Emília era ela, ali sentada numa esteira, escorada na parede, escrevendo com o caderno pousado nos joelhos dobrados.
O dia da festa de Oxum amanheceu chovendo. Pelas sete horas o sol apareceu. Em toda manhã, Emília acompanhou a faina de muitas mãos nos preparativos da festa, as bandeirolas brancas e amarelas no teto do barracão, o preparo das comidas… Depois do almoço, a avó mandou que ela dormisse um sono na outra rede do terraço, junto à dela. Antes de adormecer, Emília ainda ouviu distante, como se estivesse já sonhando, “Daqui, Emília, é como se eu visse a África do outro lado desse marzão de meu Deus. O lugar de onde veio minha bisavó Dallá.”
Despertou com a tia Nenê a seu lado. Um cheiro de alfazema que mais tarde incensaria o barracão. “Maria me disse que você tem trancelim e pulseiras. Trouxe?” E disse baixinho, quase em segredo, “Oxum gosta de ouro”. Levou a sobrinha para um banho de ervas.
A saia rodada de Emília, em cima de muitas anáguas engomadas, era de um tecido brocado, com o fundo amarelo mais escuro, quase marrom, coberto por grandes folhas de um amarelo mais claro. A blusa branca, abotoada na frente, mangas curtas, de cambraia bordada. Do mesmo tecido da saia, uma faixa para a cintura e um pano longo, retangular, que a tia amarrou em três voltas por sobre a cabeça de Emília. Com a medalhinha de Nossa Senhora do Carmo em corrente de ouro, outros adereços em plaquê, muitas pulseiras nos braços, e guias de Oxum e Iemanjá em volta do pescoço até a cintura, Emília se olhou no espelho. Era ver as bonecas que deixara na casa do Velame. Uma princesa das histórias de trancoso. Lembrou do dia em que o pai adotivo lhe dera aquela medalhinha. Lembrou as histórias de reis e castelos que Carmen lhe contava, ela sentadinha no chão da cozinha. Foi dando um aperto no coração. E essa foi a primeira vez em que a tia Nenê a embalou como a uma criança de colo, deixando que a sobrinha derramasse todas as lágrimas que estavam contidas por muitos sustos.
Entrou no salão da festa junto com a avó, que se vestia com as mesmas cores, porém, de seu turbante, pendiam uns fios de finas correntes douradas com pedrinhas nas pontas, que cobriam seu rosto sem lhe tirar a visão. Ambas portavam nas mãos os símbolos de vaidade de Oxum, o leque e o espelho. Emília deixou a avó sentada em uma cadeira de espaldar alto, de onde logo ela principiaria a puxar os cânticos sagrados. E foi juntar-se aos que estavam em torno do mastro no centro do salão, o Ixé. Ficou junto da tia Nenê.
Foi nesse momento que Emília viu pela primeira vez Josué. Ele estava em pé, com mais dois outros rapazes, próximo à parede oposta ao Peji. Descalço, sem camisa, vestia uma calça folgada de algodão cor de areia e, cruzando o peito do ombro direito ao quadril esquerdo, uma faixa vermelha e um imenso colar de contas vermelho e branco. Um negro da mesma altura dela, um metro e setenta, ombros largos de pescador, olhos da cor de jabuticaba.
A Mãe Pequena deixou Emília com os outros e se dirigiu ao Peji. De lá retornou com os ebós – as oferendas em comidas –, que apresentou à Mãe de Santo. Com voz firme, investida dos poderes sagrados, a Mãe tomou das mãos da Filha as oferendas, e, depois de um silêncio acompanhado pelos que participavam da cerimônia e os convidados, transmitiu a todos o recado dos Orixás: aceitavam o sacrifício dos animais e agouravam paz e tranquilidade para aquela noite.
Depois do recado dos Orixás, a Mãe Pequena levou as oferendas de volta ao Peji e juntou-se aos da roda. Em seguida, Josué e seus dois ajudantes foram também ao Peji, de onde trouxeram os tambores sagrados. Sentados em tamboretes de pernas altas, deram início ao primeiro toque. Até então, todos estavam à espera. Acabado o primeiro toque, a Yalorixá Emília levanta-se da cadeira de espaldar alto, o corpo empertigado, como se as marcas da idade tivessem desaparecido, a voz mais gutural, forte, faz o sinal da cruz com o mesmo gestual católico, e abre a cerimônia com os dizeres, “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo”.
Emília observava tudo, não saindo de junto da tia, a quem imitaria dali por diante as danças circulares da esquerda para a direita em torno do Ixé. Respondiam em coro às toadas para cada Orixá, puxadas pela Mãe de Santo. Emília ficaria sabendo que a primeira era sempre para Exu, aquele que abre os caminhos, seguida pelos toques próprios para cada um dos Orixás masculinos, primeiro, femininos depois. Não conseguia tirar os olhos daquele que comandava o som dos atabaques, seu primo Josué, filho da tia Nenê. Viu quando ele entregou seu instrumento para um irmão. Viu quando ele entrou na dança circular. E soube pela tia que aquela era a música para Xangô. Josué dançava cada vez mais rápido, obrigando os tambores a ritmos acelerados. A coreografia de Xangô foi a mais bonita, aos olhos de Emília. Depois de um tempo dançando, tomado por impulsos muito fortes que pareciam vir de dentro dele (quanto tempo? Emília não saberia precisar), Josué dirigiu-se à cadeira de espaldar alto, deitou-se de bruços, em reverência, aos pés da Mãe de Santo, sua avó. Dali, foi levado pelas akedes (as Filhas de Santo destacadas para esta missão durante a cerimônia) para o Peji. Passado um tempo, voltou ao seu posto no comando dos tambores sagrados.
Emília só saberia do que se passou com seu primo e vários outros nos quais baixou o santo, quando ela própria, à terceira volta da toada de Oxum, experimentou essa energia que nasce de dentro da pessoa, indescritível, e que raramente acontece aos que ainda não foram iniciados no culto dos Orixás, que era o caso dela. Oxum entrou no comando de seu corpo e sua vontade. E nela dançou sua dança. Nessa hora, Emília se desgrudou da tia, a quem vinha seguindo os passos. Deixou que seu corpo fosse possuído pela sua deusa, que comandava os movimentos dos braços, ombros, pernas, quadris, as pulseiras tintilando, um sorriso de sedução nos lábios. Dançava como não sabia que sabia. E se viu, ao termo da dança, fazendo os mesmos rituais do primo, com o corpo estendido no chão, na reverência à grande Mãe; no Peji, pelas mãos suaves das akedes que pentearam seus cabelos desalinhados na dança, sentiu um conforto que desconhecia.
Dentro do mar, despontava a barra do dia quando a festa terminou. Os que estavam no salão, ao sol nascente, cantavam e dançavam em homenagem ao velho Oxalá.
As férias de julho de 1954 foram as melhores na vida de Emília. Fez-se amiga de duas primas, filhas da tia Nenê, com quem foi a festas e cirandas. Sua pele morena queimada de sol brilhava em cor de jambo do Pará, e seus olhos realçavam o verde esmeralda. Josué aproximava-se da prima, sem alarde, temendo a interdição familiar de casamento entre primos. Um dia, levou-a a conhecer o Forte de Pau Amarelo, na praia vizinha ao Janga. Aos treze anos e meio, Josué falava com a voz grave e a sonoridade suave e risonha, que somente possuem os descendentes de africanos.
Caminharam um bom pedaço calados. Por cima do maiô, Emília vestia um vestidinho de algodão branco de alças. Ao chegarem, visitaram o forte e depois se sentaram numa murada alta e grossa, de onde ficaram apreciando o mar. Josué falou das vezes em que acompanhou o pai em pescarias. Emília escutava calada.
– Vamos cair na água, primo?
Josué deu a mão para Emília descer da amurada. Ela, prestando atenção ao chão onde colocaria o pé direito e depois o esquerdo, não percebeu o olhar de Josué no decote de seu vestido. Já na areia da praia, tirou o vestido, Josué a camisa, deixaram na areia junto com a mochila onde a toalha e os dois pares de sandálias, e caminharam até o mar. As costas das mãos se tocaram, como por descuido. Josué sentiu seu membro se avolumando dentro do calção de banho e tentou disfarçar. Emília não chegou a perceber, porque seu sentido estava no oceano à frente, que, naquele momento, às nove horas da manhã, estava exatamente da cor de seus olhos. Ele viu como ela entrava na água, aos poucos, com a estranheza de quem não se criara à beira mar.
– Vamos, Emília, coragem. – A essas palavras, segurou a mão delicada, macia, de quem nunca trabalhou. O arrepio dos pelinhos queimados de sol dos longos braços nus da prima, seria da diferença de temperatura do sol para a água? Ou seria o mesmo arrepio que, de novo, levantava o pau dele, e levou-o a puxá-la mais rápido pela mão, para encobrir dentro do mar o corpo da cintura para baixo? Soltando a mão de Josué, Emília mergulhou. E emergiu das águas uma sereia, os cabelos para trás, e um sorriso que levantava as maçãs do rosto iluminando-o por inteiro.
A tia Nenê insistia para Emília se iniciar na religião, fazendo seu noviciado como Abiã. Teria que perder o início do semestre no colégio. Mas a avó, compreendendo as razões da neta para não querer perder aulas, ordenou diferente.
– Nenê, o tempo é amigo de nosso povo. Ele não vai tirar Emília de nós. Deixa a menina livre esse mês, comigo, mais as tias, mais os primos, mais a mãe, que aqui sai do jugo daquele marido. Deixa Emília avoar que nem passarim. Essa bichinha já sofreu por demais.
As férias chegavam ao final. Josué levou Emília ao cajueiro maior do quintal da avó e, com um canivete, desenhou no tronco retorcido o símbolo mais manjado pelos enamorados e pela literatura: um coração transpassado por uma seta, com as iniciais E. J. Depois enlaçou Emília em seus braços e o cajueiro testemunhou o primeiro beijo na boca. Josué baixava uma alça do vestidinho, quando viu Emília se afastar dele depressa, mirando na direção da porta da cozinha, onde estava a tia Nenê.