Momentear

coqueiro

24 de janeiro de 2018

 

Acabo de batizar meu blog. Nasceu parecido comigo. Na pia batismal havia dúvidas se meu nome seria Teresa Cristina, personagem de uma novela de rádio famosa à época; Maria Teresa, escolha de minha mãe; ou Marta, escolha do padrinho. O blog chega à pia de água benta com nomes que foram se sucedendo: Diários do Pina; Devaneios; Momentear.

O devaneio de hoje definiu: momentear. Gosto de verbos. “No princípio era o verbo”. Há muitos anos, desde que perdi contato com o Zé, andava pensando em como recuperar essa palavra. Até que, numa festa de confraternização 2016/2017, encontrei Pedro Leonardo e ele ma revelou. Escrevi na agenda para não perder de novo.

Baixou-me o espírito de Ariano Suassuna, de meu pai, integralista e, portanto, nacionalista: de bem querer para com as nossas palavras em português, a língua pátria. O meu não será blog e sim bloco. Estou botando meu bloco na rua. Não poderia haver tempo mais apropriado, com o carnaval começando a ferver em banho maria nas prévias, nos ensaios, nas costuras de fantasias e adereços.

Para a abertura do bloco, quero as cores vivas do carnaval. O encarnado, embora eu tenha sido, em fantasias de menina, a contra-mestra ou até uma simples pastora do cordão azul do pastoril. Carnaval é o elemento fogo em estado puro. As cores catalunhas amarelo e vermelho. Que para mim se transmutam na minha preferida, das portas e janelas de uma casinha pequenina que mora nos meus sonhos recorrentes – a cor de laranja.

Antes de desfilar nas ladeiras de Olinda, no Recife Antigo e no bairro de São José, o Bloco Momentear será inaugurado ao som de uma banda de música de cidade do interior brasileiro. Houve tempo, logo ao início da televisão, em que um dos canais de televisão – terá sido a Tupi? – promoveu um concurso de bandas de música. Ah! Que preciosidades trazidas dos quatro cantos desse imenso país, naquela época mais rural que urbano. Não somente na população que vivia no campo, como nas cidades do interior.

Escolho hoje, nesse concurso que ainda deve estar em algum arquivo de uma TV extinta, a banda de música de Bezerros.

Mocinha, vi meu pai enxugando as lágrimas ao ver a banda de música de Bezerros desfilar. Não estávamos no velho casarão dos avós, próximo à estação de trem. Meu pai havia alugado uma casa na rua da Matriz, onde passamos as férias. Pai, mãe, filhos, todos comprimidos nas três janela altas – subia-se degraus para entrar na casa – para ver e ouvir a banda. Meu pai chorava.

A mesma orquestra em outro dia, em ritmo lento, acompanhando a procissão. Músicas de igreja. Meu avô, meu tio-avô, parentes tantos que deviam ser metade daquele povo. Estou de novo na janela. Dessa vez, sozinha. A cabeça grande e toda branquinha de meu avô. A mulher logo atrás dele cantando, “no céu, no céu, com a mãe de seu Ioiô estarê, ei”. E a mãe dele é Emília.

1978. A Espanha acabara de sair da ditadura franquista. Minha lembrança de museus, o quadro Guernica e seus esboços. Boch, El Greco, Velázquez … um pano de fundo para o clima de liberdade que se respirava no ar. Um oásis para quem, como nós, estávamos de férias de um Brasil sujeito a uma ditadura militar. A Espanha era uma festa.

Mês de São João. Depois da Galícia – o berço do lado paterno de meus filhos – e de Madrid, Barcelona. Chegamos lá inocentes de suas fogueiras de móveis velhos na periferia da cidade e sua grande festa nas ruas centrais da cidade. Lá, tonéis com gelo, lotados de Cava, o espumante espanhol. Para acompanhar, a coca de São João, no formato de uma pizza individual, feita com farinha de trigo, açúcar e manteiga de porco, recoberta com frutas caramelizadas. Quantas cavas teremos tomado?

Saímos ruas afora. Orquestras para todo gosto. Escolhemos a que tocava Passo Doble, música de tourada. E como dançamos! Aos goles, às risadas. Aquilo era a banda de música de Bezerros. Ou seria o contrário?

Quando toda a música acabou e ainda tínhamos o precioso líquido na garrafa, nos demos conta de que já se encerrara o horário do metro. E não encontramos taxi. Minha coluna doía. Retornamos ao hotel ébrios, por uma rua larga por onde andávamos em volteios. Tirei minhas sandálias de salto. Com elas nos dedos, senti-me a personagem feminina de quem mais gosto, de todas que conheci até hoje: Sinhá Vitória. Nesse tempo, só existia Miguel, que ficara aos cuidados da avó e da tia. Para o quadro completo, ainda nasceria Pedro e a família estaria completa.

Tem gente que mantém a família a vida inteira, mudando apenas as personagens. Não conheço essa façanha. A minha se dissolveu com a morte do Hamilton. Pedro saiu para o mundo que pensava em mudar para melhor. Depois, incorporou-se como família à de sua mulher. Miguel virou monge budista. Mantemos intacta a chama viva do amor de mãe e do amor de filho. Porém os laços já não são de família e não saberia como nomeá-los. Só sei que me sinto neles confortável e tenho grande orgulho de meus dois filhos, do que eles se transformaram na vida adulta.

Voltemos à festa de inauguração do Bloco Momentear. Além da banda de música, quero também duas dúzias de foguetões. O cheiro de pólvora no ar, o pipoco nos ouvidos. Quando completar um ano, se não morrer precocemente como tantos irmãos seus nascidos no carnaval, aí sim, em vez dos foguetões que precederam sua entrada em campo, encomendarei fogos de artifício para serem disparados do meio do mar em frente ao meu camarote no sétimo andar.

Os leitores do bloco caberão na minha sala, haverá taças para todos e o espumante não será a cava nem a champagne nem o prosecco e sim o espumante brasileiro que anda criando fama. Depois de sete minutos de luzes coloridas no céu saídas do mar, subirei em um tamborete e farei um discurso, pois afinal todos gostarão de saber afinal o que é momentear.

Direi que é o que faço todas as madrugadas, em comunhão com a natureza, com meu corpo em exercícios e alongamentos e meditações e até orações. É viver o momento. É quase sinônimo de devanear. Porém mais profundo.

Momentear hoje, sem chuva, sem sol, foi sentir o vento. Vê-lo nas folhas vivas dos coqueiros. “Vento que balança as palhas dos coqueiro. Vento que encrespa as ondas do mar. Vento que assanha os cabelos da morena. Me traz notícia de lá.” Nas tempestades, o coqueiro ficaria inquieto. Mas hoje, ao vento suave do verão, seus dedos apenas me deram adeusinho a cada passo que o deixava em direção a outros, e mais outros, e mais outros, no coqueiral que ainda resta imprensado entre o calçadão, os morrinhos, privilégio do Pina, e a areia da praia.

Está batizado o bloco: Momentear. Não terá padrinho, mas duas madrinhas: Capitu e Sinhá Vitória. Sob a proteção de Oxum e Iemanjá.

3 comentários em “Momentear

  1. Maravilhoso! Bem-vindo, Bloco Momentear, aos carnavais, aos encantos, às paixões. Alimenta-nos com boa prosa, com devaneios, com inteligência e sensibilidade. Conta-nos o tanto de tuas vivências, o tanto de tua história, que, em muito, se confunde com a história de tantos outros. Evoé!

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