O mar tem ruas e avenidas

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Sexta feira, 31 de março de 2017

(postado em 03 de fevereiro de 2018)

4:15 da madrugada. Ainda é noite clara. Os potentes holofotes dos altos postes de cabeção de ET iluminam o calçadão e a avenida de um lado, os campos de futebol, o quintal de seu Elias e a praia do outro. A não ser em noites de festa, como a da lua grávida de 14 de novembro do ano passado, nunca caminhei sozinha sem a luz do dia.

Atravesso a avenida e nem sinal de automóvel. O velho ainda dorme. Meus passos a quarenta centímetros de distância de sua cama não o despertam. Sigo para o outro lado do muro invisível. Para o lado onde são soberanos o mar e o vento. Tempo de lua nova, as águas de Iemanjá estão bravias, brigando com meus pés. Pelo tempo que saí de casa, serão 4:20 quando alcanço as jangadas. Os pescadores já estão a postos, em prosa animada, como são as prosas dos pescadores na madrugada.

Acompanho os preparativos da viagem. Afastada dele, a jangada na qual estou sentada é nua de apetrechos. A vela deitada, só seria usada em emergência. De casa os pescadores trazem um saco com a rede, a corda, a âncora, a galéia. Desde quando esses mesmos instrumentos de trabalho? Porém o bem precioso, carregado com cuidados de sinhazinha, é o motor a diesel. É o último a entrar na jangada. Depois que ela já rolou de terra para o mar nos cilindros de borracha que substituíram os antigos troncos de coqueiros; depois que já está apetrechada com tudo o mais; e depois que um dos pescadores, usando apenas a sua força, ajudada pelo quebra-mar, manobrou a jangada, que entrou de ré, com a proa para frente.

Motor ligado, singram o oceano. Se eu fosse socióloga já saberia a história de vida de cada um, detalhes de seu trabalho, causos. Já teria um livro escrito. Como não sou mais, invento. Os dois que saem para pescar são pai e filho. O pai é moreno escuro. Está de bermudas, camisa de manga curta abotoada, boné. O filho é negro, camisa azul de mangas compridas e boné com aba protetora de pescoço. Ouço fragmentos da conversa que antecede a saída: levarão ou não o GPS?

No oceano existem ruas e avenidas para quem vive da pesca. Aqui pela redondeza do Pina há sítios chamados Bola, Torrões, Faei, Lana do Avião. Pai e filho estarão sozinhos, em perfeita divisão de trabalho, na qual o velho emprega o seu saber e o jovem a sua força. Essa equação se inverte, a depender do que estarão operando na embarcação. Fosse o GPS? Vejo-os se afastarem. Em algum momento irão abastecer a jangada com mais um apetrecho da pesca: a isca. Presente do mar.

Só podiam ser pescadores os primeiros apóstolos, aqueles que seguiram um visionário que se dizia filho de Deus e estava no mundo para redimir os pecados e trazer a vida eterna. Havia irmãos de sangue naquela irmandade. Não pai e filho, como esses que vejo partir. A saída é esperança e incerteza. Poderá até ser vida eterna.

Espero o sol que se retarda. Os holofotes projetam a sombra das jangadas para a frente. Com o mar cheio, as ondas alcançam as suas sombras. Sentada no banco da jangada, olhando para o mar, também a minha sombra é projetada à frente. Com a luz do sol, estaria atrás de mim. Nunca vi. Com a luz dos holofotes, as ondas lambem a sombra de meus cabelos, de minha cabeça, pescoço, orelhas.

O sol hoje vai demorar a aparecer. Volto para casa com os primeiros claros de azul e cor de rosa no céu. O calçadão ainda está deserto e a avenida silenciosa.

 

2 comentários em “O mar tem ruas e avenidas

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