Fosse um horário de recreio

GALO

10 de fevereiro de 2018

Foi um amigo quem me trouxe a minha mãe de volta, em plena abertura do carnaval. Atravessávamos a rua, na Ilha do Recife, para alcançar a Ponte Buarque de Macedo. O guarda controlava carros e pedestres, pois o sinal de trânsito não seria suficiente para tanto movimento. Olhei para a autoridade, sorrimos um para o outro, sem palavras. Ele sabia que pedíamos a vez. Que veio rápido, através de seu apito.

Foi aí que segurei a mão de Humberto e ele me disse, com entonação paternal de voz: me dá a mãozinha para atravessar a rua. Ele é um homem que não desperta a mulher que sou. Mas a menina. Talvez por ser artista, criador. É capaz de criar sentimentos.

Fato é que acordei hoje com ela, dona Otávia. Estamos nós duas sozinhas numa ampla sala, como fosse um auditório sem cadeiras. Ela, minha mãe, morta em 2010, tem às mãos uma blusa que ainda não foi usada. Não reparo no modelo nem na cor. Apenas sinto daquela blusa uma maciez que sobe do tato para o coração. Estávamos naquele imenso salão para cortar o fiozinho de plástico que mantém o preço e a marca a uma roupa recém comprada. E procurávamos uma tesoura, porque esses fios de plástico costumam ser resistentes.

Uma felicidade comanda nossos movimentos na tentativa de cortar o fio.

Esse sonho saiu daquela mão dada para atravessar a rua. Voltávamos do bloco “Nem sempre Lili toca flauta”. Humberto, o artista que faz ano a ano a arte da camisa do bloco, vestia a deste ano. Eu não. Não faço parte dessa história. Cada bloco, aqui no Recife, tem uma história. Um grupo que se reunia regularmente num bar, tocava, ouvia música, gostava de carnaval. É fatal: dali nasce um bloco.

Não faço parte do Lili, como também não do Pisando na Jaca nem tampouco do Paraquedista Real. No tempo em que eles surgiram, minha história se passava em São Paulo. Mas gosto de carnaval, adoro: o colorido, o riso, a máscara, a música, o passo. Sem pertencimento a nenhum bloco, caio na folia.

Talvez por ser alheia ao nascimento deles, blocos de intelectuais, entro numas horas e, noutras, fico de fora, no sereno, espiando, matutando. Ontem, no Lili, foi uma decepção. Um palco, separado dos foliões. Modelo show, sem o conforto das cadeiras. Fomos procurar um bar na rua do Bom Jesus. Lá o garçom sugeriu que, para ter mesa boa, precisava consumir pelo menos uma garrafa de whisky. E mostrou a mesa vizinha, com o litro à mostra. Deixou, contudo, que ocupássemos a mesa mais afastada, quase empurrando a árvore da calçada. Sem ligar para a reclamação dele, “a senhora vai ocupar essa mesa e pedir só uma água de coco?”, sentei-me. Precisava descansar, depois de atravessar tão longo percurso, de meu carro até lá.

Ficamos só o tempo de eu tomar a bebida. Sem chamar o malcriado garçom, sem gorjeta, fui direto ao balcão e paguei o preço do produto, sete paus.

Somente então, fomos encontrar o carnaval do Recife. No meio das ruas sem automóvel, ao som do frevo tocado ao vivo com seus metais maravilhosos, com o povo misturado atrás da orquestra, brincando, rindo, tirando graça proibida fora do carnaval. É a nossa grande festa, a festa da liberdade. Acompanhamos dois Maracatus e um Frevo de Rua. Velhos, exaustos, voltamos cedo. Ainda havia a longa caminhada de volta.

Subimos ao apartamento de Humberto com vista magnífica para o rio Capibaribe e as pontes do Recife. Fotografei, com incompetência, o Galo da Madrugada, recém-nascido durante o dia na ponte de meus amores, a que mais gosto sem ser ela nem bonita: a Duarte Coelho. O amigo, um perfeito irmão, levou-me até meu carro estacionado na rua da Saudade, quase esquina com a Mamede Simões, ao lado do parque Treze de Maio, que já dormia àquela hora, nove da noite.

O meu Recife tem carnaval para todas as idades, da criança ao velho, os dois que se cansam mais depressa. Brincadeira de rua. Fosse um horário de recreio.

Um comentário em “Fosse um horário de recreio

  1. Linda memória de sua mãe; do que Zé Antonio fala, uma pessoa que valia a pena conhecer e de quem era muito bom ser filho!
    Dos blocos e do não-pertencer… Inseri-me nesses todos de que você falou, convivi com diversos de seus fundadores e integrantes de mais longínqua data. Mas, como você, pertencia a nenhum, nunca fui afeita a grupos que parecem se ensimesmar e se apoderar como seus donos – Recife tem dessas coisas, nos blocos de carnaval não é diferente.

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