Fim de festa

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15 de fevereiro de 2018

Festa é bom antes, durante e depois. Os preparativos, a escolha da roupa, dos arreios.

Conto: meu pai, morando e clinicando em Garanhuns, tinha muitos amigos. Presenciei a prosa dele com um deles, fazendeiro próspero de café e gado. Estávamos em uma comemoração no Hotel Sanatório Tavares Correia. Inauguração da boate. Foi a única vez que vi meu pai beber: whisky com guaraná.

Antes de entrar na boate escurinha, as pessoas conversavam no terraço aprazível do hotel, com cadeiras de vime confortáveis espalhadas ao longo do bar. Esse hotel não ficava a dever nada aos cassinos de São Lourenço de Minas Gerais, ao tempo em que era estação d’água frequentada por Getúlio Vargas. Na conversa com meu pai, dizia o fazendeiro, Olha Zé, não é que as mulheres cariocas são mais bonitas do que as nossas. O que elas sabem é botar os arreios.

Carnaval, então, meu deus do céu! Muitos são os arreios das mulheres e dos homens. É uma das poucas ocasiões em que os homens têm essa chance. Os sabidos. Outros ficam enrustidos, dizendo que não gostam de carnaval. Mentira!

A festa é a melhor do ano. As outras todas duram um dia, uma noite. Carnaval são quatro dias. Para os verdadeiros foliões, mais.

Falta-me agora umas amigas de antigamente, do tempo dos bailes na AGA (Associação Garanhuense de Atletismo), clube das grandes orquestras, boleros. No outro dia do baile de sábado, nos reuníamos para comentar a festa. O assunto às vezes rendia até o recreio da segunda feira. Era como fazer o balanço de lucros e perdas.

Vamos ao balanço do carnaval 2018. Quem sempre animou mais o carnaval, fosse ele em qualquer recanto do planeta, foram os veados e as putas. Aqueles continuam, muito embora às vezes ocupem uma rua só para eles, segregados. O que é ruim, pois sua alegria faz falta.

A língua inglesa, dominante no mundo, criou a denominação guarda-chuva para as mais de cem nomeações hoje existente: gays. Que significa alegres. O resto, são firulas. Ou invencionices copiadas dos americanos, que criaram a mania de, para encobrir o problema, nomeá-lo. Sentem-se incomodados com as minorias, com sua alegre irreverência, com sua alegria desbragada, e danam-se a lhes dar nomeações. E incriminar quem não obedece à nova sinalização.

Que grande bobagem não poder falar abertamente veado, bicha, frango. (Antes da televisão uniformizar a linguagem brasileira, um paulista que chegasse no Recife perguntando por um lugar bom para comer frango, arriscava-se a ser encaminhado para outro que não restaurante). Querem ser respeitados em seus direitos? Nada mais merecido. Pois ressignifiquem a linguagem popular. E deixem de macaquear o lixo produzido nos Estados Unidos da América. Porque, em matéria de liberdade, aquele grande país promoveu a primeira democracia do mundo. Mas em matéria de direitos civis, o ranço da religião puritana os levou à multiplicidade de nomeações para encobrir a ferida mais profunda: uma aversão a qualquer forma de prazer.

Sapatão é uma palavrinha tão simpática! No aniversário de uma amiga, com verdadeiro espírito gay, ela fez questão de ser fotografada pela amiga mostrando a sola do sapato número quarenta. Mais apropriado seria a designação aos travestis, que botam silicone nos peitos, se vestem de mulher, tomam hormônio para reduzir os pelos, tantos arreios, mas não podem reduzir o tamanho dos pés.

Voltemos ao balanço do carnaval. Se gays não faltaram, cadê as putas? Coitadas, reduziram-se a esmoleiras, sem um centavo para uma fantasia de carnaval.

Um jornalista pernambucano escreveu um livro de ficção sobre o cineasta Rosseline no Recife. A descrição dos cenários da cidade nos anos cinquenta do século passado, aqui, a nossa década de ouro, é uma beleza. Mas faltou ao escritor mais vida às personagens. Só se salvam as conversas no bar de dona Bombom. Precisava entrar mais a fundo no universo das putas, nos terreiros de Xangô. Sendo homem, para escrever sobre mulher, é preciso uma intimidade que tem um Chico Buarque de Holanda, para citar apenas um entre muitos. Homem para escrever sobre mulher, carece de penetrá-la até o fundo de suas entranhas. O mesmo para a mulher escrever sobre homem.

Acabaram-se os puteiros da Ilha do Recife. De grandes noitadas. Estas, descritas magnificamente no referido romance que, não por acaso, se mistura com o carnaval. Nada nessa cidade prospera sem passar pelo carnaval.

No baile do bloco Paraquedista Real, vi uma moça com uma bela frase escrita em letras grandes no diadema que usava: Alma de Puta. Pelo menos a alma de alguma chegou lá.

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