Mãe Tapuinhas

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18 de fevereiro de 2018

Deus teria autoridade para baixar decretos. O parágrafo primeiro afirmaria que, em todas as cidades do Brasil em que houvesse mar, nunca choveria aos domingos. É o dia em que menino não tem aula. Existe coisa melhor para menino fora da escola do que brincar na praia? Jogar bola, atrapalhando os adultos que querem tomar cerveja. Construir castelos, fazer piscinas onde só cabe uma pessoa, voltando a ser o único cercado de água por todos os lados. Na praia menino corre. E menino adora correr.

Vejam bem a fotografia que ilustra essa crônica. Nós ainda em fevereiro, mal acabou o carnaval. Já são 6:45. Já era para ter ciclistas na ciclovia, domingueiros, corredores, caminhantes, homens chegando suas carroças para montar restaurante de praia. Quanto prejuízo para o comércio um domingo sem sol!

Como não sou deus, vou contar o sucedido sexta feira passada. Afinal, isso aqui é crônica social, tem compasso certo para compor o texto. Não é sair por aí devaneando em ser divindade, isso e aquilo.

Mas, voltando ao assunto, quem não gosta de ser deus? Seus poderes são infinitos.

Existia uma freirinha que era coordenadora do Programa de Religião na PUC de São Paulo. O curso andava recebendo as piores avaliações da CAPES. Cândido Procópio Ferreira de Camargo, seu superior hierárquico naquela universidade, chamou-a para uma conversa. Mostrou quadros com números e curvas que sua secretária organizara especialmente para essa delicada reunião. Na sala, somente ele e a freira, sendo ela há muito mais tempo professora da casa. Quando entrou no assunto do curso, das notas, a freirinha tomou ares, tirou os óculos de leitura, olhou firme para sua autoridade imediata, Quem é a Capes, professor, para me julgar? Para me julgar, só Deus! Procópio contava esse caso com uma graça …

Algumas profissões aproximam mais a pessoa de deus do que outras. Falo por mim, que fui professora. O momento em que mais a gente chega perto da divindade que julga, aceita ou condena, é durante a seleção de alunos para mestrado e doutorado. Seleção para contratar professor. Existem regras, critérios objetivos, estamos pisando no terreno da ciência. Porém, nessa hora, exige-se mais do professor. Ao final da maratona, percorridos todos os obstáculos, Quem? Esse ou aquele? Somos deuses no Olimpo julgando pobres e inseguros terrenos.

Acabado o carnaval, a vida retoma seu curso. Amanhã, a primeira segunda feira depois, é quando se pode dizer que o país inicia o ano. Hoje, último dia do feriadão. Não seria justo, justamente hoje, um domingo de sol?

O caso da última sexta feira. Sucedeu-se numa casa de bairro afastado de uma cidadezinha que poderia estar em qualquer sítio do interior do Nordeste brasileiro. Mulheres, homens, meninos, galinhas, andando, brincando, ciscando pela rua. O carro pede licença para passar. Se for mulher ou galinha, é tiro e queda: vendo o automóvel, atravessa para o outro lado da rua. Tem explicação? Não.

O waze avisa que chegamos a nosso destino. Tocamos a campainha, pregada no alto de um portão de alumínio. Um rapaz de cerca de vinte anos vem nos atender. Diz que a mãe está na sala. Conduz-nos até lá. Fosse um prédio de luxo na rua Cristiano Vianna em Pinheiros, São Paulo, aquilo poderia ser um loft: em espaço único, com pé direito alto. A casa está inacabada, faltando colocar o forro e separar cozinha e quartos. A mulher que procurávamos está sentada em um colchão no chão, à maneira de sofá, ladeada por uma filha e umas crianças, possivelmente netos.

Já sabíamos que atendia sem hora marcada, por ordem de chegada. Havia me preparado para grandes esperas. Saindo de casa, meu irmão viu o livro, Livrinho de viagem? 947 páginas de uma história boa e emocionante, mesmo descontando o não ser contada com a régua da literatura. Fosse, a menina não faria reflexões adultas. Refiro-me a Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves.

O livro foi e voltou sem serventia porque tivemos a sorte de não haver ninguém na fila e sermos os primeiros. O mesmo filho que nos atendeu ao portão, conduz-nos, cozinha afora, por um quintal com plantas, árvores, pé de pimenta, de quiabo … Retira duas cadeiras de plástico verde de um empilhado delas. Ele próprio fica em pé, encostado na parede do terraço onde estamos. Faz-nos sala enquanto a mãe não chega.

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Uma menina traz um copo d’água. Copo grande, de aço. Entrega ao rapaz, que interrompe nossa conversa para levar o copo ao quarto. Ainda não o vimos, embora a porta esteja aberta.

Chega a mulher, andando em passos lentos pelo mesmo caminho que fizemos no quintal. Veste roupa branca de algodão bordado, que antigamente se chamava cassa, saia rodada e blusa folgada de mangas até o meio dos braços. Ao pescoço, uma echarpe que à frente desce até a cintura, de tecido sintético fino, verde, brilhante. Conduz-nos para seu espaço sagrado. Sentamos em duas cadeiras emparelhadas, encostadas na parede oposta ao altar, defronte. A cadeira dela está ao lado do altar. Não a ocupa ainda. Vem até nós saber o que nos trouxe lá. Meu irmão fala. Ela se dirige a mim. Digo que a consulta é para ele, estou de acompanhante. Como continua na minha frente, de pé, olhando para mim, digo de minha coluna, da qual cuido desde os doze anos de idade e que já sei como lidar com isso. Torta, não é minha fia? Você não carece. Já tem traçada sua missão no mundo.

Deixa-nos sentados e se dirige ao altar. Nas paredes, fotografias de santos de quase todas as religiões conhecidas do povo, coração de Jesus e Maria, São Jorge com sua lança, montado no cavalo, Jesus com os discípulos, a índia Tapuinhas. No altar, incenso apagado, três velas acesas, sendo uma de sete dias. O copo d’água fresca trazido de casa, cadernos, pasta, imagens, uma de Padre Cícero do mesmo tamanho da minha, pequena.

A 1:35 da tarde a mulher se dirige ao altar. Fica de costas para nós, como nas celebrações de missa em latim. Está de pé. Com as duas mãos postas no altar, principia uma invocação aos santos todos que estão no altar, nas paredes, os que não estão à vista. Sua voz é lenta, melodiosa, quase um canto. Pede licença para entrar na Mata, espaço sagrado, onde encontrará a força da Jurema. Lá irá encontrar a índia Tapuinhas. Canta uma cantiga pobre como a dos passarinhos, Oh Jurema, meu juremal. E continua a reza, Glória a Deus nas alturas, paz aos homens na terra. Livrai-me e defendei-me de todo o mal. Deus pai. O meu ponto é Umbanda, Saravá Yeyê. Salve mãe sereia, mãe Iemanjá. Saravá meu rei Salomão, para o pai poder trabalhar.

Quando encerra a prece, maior do que o que vai aqui escrito, está serena. Ouve-se apenas o baruho do vento e canto nenhum de passarinho, que eles apreciam mais os horários do madrugar e do entardecer.

A mãe índia, já incorporada, solta os cabelos longos, ainda voltada para o altar. Virando-se de costas, vem na nossa direção. Dirige-se para mim. Seu olhar, seu sorriso, é de quem me reconhece de algum espaço que não identifico. Talvez nem ela. Manda que meu irmão coloque a cadeira onde está sentado diante da sua, ao lado do altar. Nenhuma diferença entre a cadeira dela e as nossas, todas as mais baratas que se encontraria numa loja.

Você venha também, me diz. Sente-se aqui ao lado de seu irmão. Formamos um triângulo, pois minha cadeira, também defronte dela, está entre a sua e a do paciente, bem próxima ao altar.

Para ver seu rim, meu fio, carece virar de costas. Meu irmão se escancha no espaldar da cadeira. Ela toca na área de seu rim direito. Tiro a camisa? Tire, meu fio.

Todos os meus sentidos estão a postos. A índia não queria fotografia e eu faço radical, Está certo, minha mãe, vou desligar o aparelho. É um estranho aqui.

Por sobre a mesa há também um vidro de plástico de alfazema. A mãe índia, depois dos primeiros toques, pede pela primeira vez meus préstimos de enfermeira, Bote alfazema aqui nos meus dedos, minha fia. Continua o toque, quase em círculos, com todos os dedos da pequenina mão. Depois saberei pelo meu irmão que não é toque vigoroso de massagem. Mãos leves de quem auscuta entranhas.

Ói, minha fia, tá saindo!

Como fosse uma trouxinha de buxada, pequena, do tamanho de uma bola de gude. Vai empurrando a trouxinha por todos os lados. Dedos que trabalham com precisão cirúrgica. Quando sai todo o conteúdo, fosse cabeça de criança na hora de nascer, com a mão esquerda segura a ponta da trouxinha com os dedos indicador e polegar em pinça. Com dedos da mão direita, segura o lugar de onde saiu, enquanto coloca a primeira coisa ruim num prato branco de louça.

Suspira. Ao retirar os dedos da mão direita do lugar de onde acabou de sair a coisa ruim, permanece por alguns segundos uma reentrância no tecido da pele, que antes se alongara até expulsar a coisa maligna. Menos de um minuto, a pele já voltou ao normal, sem nenhum sinal de corte ou furo.

A índia Tapuinhas toma um gole d’água. Explica: esse catimbó não foi feito pra ele, mas, com o corpo muito aberto, pegou, num momento de distração, passando pela coisa feita.

Volta ao mesmo rim. O outro está sadio. Desce mais um pouco as mãos. Os mesmos procedimentos, o mesmo pedido de auxilio por água de alfazema. Sai uma segunda trouxinha, de tamanho um pouco maior, mais nojenta, embora não se veja o conteúdo do que está dentro da película de fino couro semelhando a que se usa para cozer as vísceras na buxada. Algo vermelho, cor de sangue pisado, misturado a outras cores. Mostra ao paciente, antes de colocar no prato.

Ele está concentrado, em meditação. Interrompe quando a mulher, pela primeira vez desde que principiou o procedimento, dirige-lhe a palavra para mostrar a segunda trouxinha. Até então, sou seu veículo da palavra, do testemunho.

Novo suspiro de cansaço. Mais um gole d’água. Meu irmão quer mais. Aos poucos, vai abrindo seu corpo que atraiu coisa ruim e se entrega às mãos da mãe Tapuinhas. Fala do intestino. Ela manda que ele se vire de frente. Afrouxa o botão da calça. Igual procedimento.

No intestino é onde mais se demora. Assustadora a primeira coisa que sai lá de dentro. Do tamanho e formato de uma língua de bode, vai saindo, saindo. Ele está concentrado. Eu vejo um parto que em outros tempos seria a foceps. Com a índia e seus poderes de Jurema, só a serventia das mãos. Diferente das trouxinhas, a coisa ruim que sai de sua barriga é da cor e da textura do ferro. Da textura, deduzo pelo barulho ao ser jogada no pratinho.

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