Festa de família

18 de março de 2018

Ontem foi o aniversário de cem anos da irmã caçula de meu pai, a última tia viva dos dois lados de minha família. Enquanto ela estiver “nítida”, conhecendo cada sobrinho, cada amigo, parente, a quem presenteou com o livro que escreveu rememorando fatos da família, já dedicado a cada um, enquanto isso, somos ainda a segunda geração. Na hora em que ela for embora, subiremos ao pódio, é nossa vez de chegarmos ao topo da pirâmide etária sem mais saída para a indesejada das gentes.

Com meu irmão, planejamos chegar a tempo de perder a missa. O trânsito estava bom num sábado à tardinha, a missa ainda transcorria quando chegamos, com os cânticos que nada mais guardam em comum com as missas de Padre Florentino em Bezerros. Fosse um cantochão, alguma palavra em latim, um ambiente contrito, teria entrado. A gente gosta de cerimônias que lembram a infância. Mas essa missa cheia de alegria? Depois lamentei ter perdido o discurso da tia ao final da missa. Soubesse…

Percorro as mesas, ainda quase vazias esperando o final da missa. Aqui e ali, alguém que teve seus motivos para não entrar. Vejo um primo, reconheço. Não temos assunto. Abstraio o tema da conversa que já acontecia com uma irmã sua e a sobrinha. Vejo nele o rapazinho que foi um dia, ajudando o pai no transporte de cereais de Bezerros para o Recife. O pai desse rapaz, primo irmão do meu, eram amigos inseparáveis. Era uma pessoa adorável. Não conheci ninguém que dele não gostasse, com seus quinze filhos. As filhas, bonitas, algumas com os olhos claros da mãe, casaram todas.

E que família alegre! Lembro o cucus fumegando à mesa do café da manhã, rescendendo a milho seco ralado. Uma leiteira branca enorme, para o carro chefe do café da manhã: cuscus com leite. Pão, café, manteiga. Talvez queijo de coalho assado, desse não tenho lembrança.

Acabada a missa, escolhi a mesa dos primos mais queridos, filhos de tio Adriano e tia Ritinha. Aprenderam a gostar de nós, os filhos de Dé e Otávia, diretamente pelos pais. Foram as portas mais abertas de todas as casas que conheci. Como meu pai, esse tio era um homem de ideias conservadoras e católicas. Porém foi lá que fiquei ao abrigo da perseguição policial depois do Congresso de Ibiúna e em outros momentos difíceis. Até em situações amenas, quando quis simplesmente um lugar sossegado para estudar o vestibular. Isolava-me numa das ilhas de Dois Irmãos, que tinha acabado de se acoplar ao quintal de sua casa, tal uma península. Em todas as vezes em que lá cheguei de mala e cuia, esse tio nunca quis saber o motivo.

Seu livro, tia Lenira, que apenas folheei ontem, circulei pelas fotografias, não vou ler hoje. O dia está lindo, ensolarado, os três campos de futebol na frente de minha janela com jogos se sucedendo, a praia cheia de gente enquanto o inverno não chega. Vou deixar assentar a poeira de ontem. A emoção ainda é grande. Afinal, ouvi a voz de cada tia nas conversas ligeiras com as primas. Percorri as ruas e becos de Bezerros. Atravessei a ponte para ir da casa de meu avô, em frente à estação de trem, para as missas de domingo na rua da Matriz.

Um dia, faz tempo, morava em São Paulo e Rosa, minha irmã, em Brasília. Uma enchente do rio Ipojuca derrubou a velha ponte. Consternação geral. Não paravam nossos telefonemas (naquele tempo não existia o whatsapp), a saber cada detalhe. O meu cunhado Plínio comentava, Nem tivesse sido o rio Sena derrubando a Pont Neuf!

Hoje, tia Léo, o choro que agora apenas aflora enquanto escrevo, iria correr solto como água de rio em enchente. Essa família grande com a qual pouco convivi, pois fiz minha vida produtiva e reprodutiva longe daqui, é como tirar de mim fragmentos do tempo passado, das tias. Com cada uma delas, incluindo a única do lado de minha mãe, tive uma relação especial, só minha. Quando íamos de férias, aquele grude de primos, o avô, pai de meu pai, filosofava, Troquem os filhos. Cada um leva de volta para casa os sobrinhos. Tios criam melhor sobrinhos do que os pais aos filhos.

Para essa crônica não ficar melosa, encerro com uma historinha que se intrometia nas conversas de meu pai e seu primo ao qual me referi lá em cima. Dois compadres se encontraram na estação de trem de Bezerros. Um desceria antes do outro, em Gravatá. Estavam em conversa animada, pois há muito não se viam. Comentavam qual a melhor parte da galinha. Foi só o tempo de um deles dizer, O ovo. Meses depois, encontram-se na mesma estação. Sem preâmbulos,

– Com que, compadre?

– Com sal.

Essa brincadeira prossegue. Vez por outra, no meio de uma conversa sobre qualquer assunto, assim como faziam meu pai e João Batista, perguntamos a um irmão, à queima roupa, Com que? O assunto segue seu curso, não sem antes o outro responder, na bucha, Com sal. Nunca essa pegadinha pegou nenhum de nós.

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