Mel com água

03 de abril de 2018

Um dos méritos de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala foi o de ter criado o nosso mito fundador de nação: a mistura das três raças. Lembremos que, antes dele, a literatura sociológica buscava o branqueamento para que nos tornássemos uma nação. Cito apenas, a título de exemplo, Oliveira Vianna.

Casa Grande & Senzala foi alijado dos bancos universitários por longos anos. Porém, como já me referi em crônica anterior (Fetiche da Mercadoria), assim como Os Sertões, de Euclides da Cunha, são livros que sempre fizeram parte da cultura brasileira. Depois, já em meados para finais do século passado, foi aos poucos sendo reconhecido e adotado nos currículos das universidades de norte a sul do país.

Mas Gilberto Freyre, afora esse mérito, que não é de pouca monta, também introduziu um mau costume derivado de sua vaidade. Adorava ser cultuado, bajulado mesmo. Esse visgo açucareiro de deslizar no mel da cana, uns elogiando os outros. O que é outra forma de misturar o privado com o público, um mal de nascença de nossa república, analisado pioneiramente por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil.

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Havia uma cidade em profunda simbiose com a cana-de-açúcar chamada Recife. O que vou relatar aconteceu em finais do século XIX, no Brasil Império. A cidade, por ser, ela em si, o império da cana, era rica, com muitos escravos. Fundou um jornal. Foi a grande novidade daquele século. Todos os homens liam avidamente as notícias do mundo, de Lisboa, de Coimbra. Poucas mulheres sabiam ler naquele tempo.

O jornal ficou sendo o assunto da conversa dos homens cultos da cidade, ao final de seus expedientes de trabalho e de negócios, sempre principiando e acabando no Porto do Recife. Antes de retornarem ao lar, buscavam aconchegantes bares ou puteiros e lá sentavam-se em torno daquelas folhas já amarrotadas. Longas discussões acaloradas, podiam se referir a conflitos armados alhures, jogos, a política do governo para a cana de açúcar. Aí se demoravam. Já então o whisky era a bebida preferida.

Como eram eles mesmos que escreviam, pela pena dos jornalistas, passaram a usar e abusar de alguns espaços do jornal para comunicarem-se entre si. Pouco importava que eles somassem apenas uma ou duas dúzias do que se dizia na época “homens bons”.  Era mais de uma página do jornal com esses comentários pessoais, muitas vezes saído da discussão da véspera, regada ao bom whisky fornecido pelo tráfico clandestino no Porto do Recife. Chegou-se a escrever carta, de fulano para beltrano. Marcavam-se almoços, jantares, compromissos pessoais. Só tiveram o cuidado, supremo segredo masculino, de não mencionar nunca quais os puteiros.

Mas foi precisamente uma prostituta quem enxergou com a luz do dia, ela que vivia quase só à noite. Viu o lado das ruas mal cuidadas, dos tigres carregando aquela merda toda para jogar no mar, sujando a água salgada, benta por Iemanjá, onde as mulheres da vida gostavam de se molhar ao final de uma estafante noite de trabalho, para tirar do corpo as quizilas deixadas pelas almas daqueles homens bons. Isso ela disse de enxerida, sabia ler, inclinada sobre uma roda de conversa de homens em torno das notícias. “Eu por mim, puteiro é puteiro; jornal é jornal”.

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Perambulando pelas ruas do velho porto, havia um doido. Como todo doido, vivia andando à toa, às vezes falando sozinho. Por isso era conhecido de todos. Era chamado Garapa. Ficava furioso, jogava pedra em quem o chamasse por esse apelido. Possivelmente algo que desmerecia sua pessoa. Os moleques então gritavam, com medo das pedradas, Mel com água! Ao que ele revidava, Mistura, peste!

Pois esse mesmo doido, que andava maltrapilho e ridicularizado com um apelido tão apropriado a quem circulava sem destino pela área portuária do Recife, que cheirava a açúcar e suor de negro, esse Garapa às vezes se transformava em inteira outra pessoa. Ninguém sabia ao certo onde ele se enfiava quando desaparecia da rua. Reaparecia para assumir o cargo de escrivão de um escritório do Porto do Recife. Respeitado. De terno e gravata.

Garapa chegou a quase cem anos de vida. Já não tinha o emprego de escrivão no Porto, este já nem cheirava mais a cana e suor de negro cativo. Seu apelido ficara esquecido no tempo. Garapa, velho, virou sábio, quase um monge, um profeta. Um dia uma jornalista veio entrevista-lo. Queria saber qual era o segredo: com noventa anos, à época, permanecia magro, espigado, andar seguro, saúde de ferro, sem nunca ter tomado remédio de farmácia. Respondeu com a mesma agilidade de antigamente, quando jogava pedras nos moleques que o chamavam de Garapa: comer pouco e cagar muito.

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