
28 de maio de 2018
Setenta e três anos. No Agreste, o povo da roça diria, “entrou para os setenta e quatro”. Comemoro sozinha, por gosto, coincidindo a data com um feriado em homenagem aos que lutaram e tombaram nas guerras desse país bárbaro que se sente à vontade para invadir terras alheias. Amanhece um friozinho seco. No hemisfério Norte já recebo esse brinde de graça: meu dia sai do outono para a primavera florida. No Brasil, esse dia sempre se pareceu comigo, geminiana; oscilando entre o verão de sol e o inverno de chuva. Maio é um mês indeciso.
Aqui, claramente primavera. Na mesinha do Central Park onde escrevo, de ferro pintado de preto, não se vêm as flores, mas uma variação de tons em verde. Na minha primeira primavera nos Estados Unidos, encantou-me o milagre das flores dos jardins públicos de Boston. Num dia, ainda cobertos de serragem (esse é o cheiro da primavera daqui), após meses de neve. No outro, a serragem recobre-se de flores, tulipas, rosas, flores miúdas, coloridas, tão mimosas. Surgiam todas de uma vez. Tão diferente de meus alunos de alfabetização do Instituto Capibaribe, onde ensinei meninos da classe média intelectual do Recife a ler e escrever. Dona Rachel, a sábia diretora, dizia-me: você carece apenas de ser paciente. Essas crianças têm tanto estímulo no lar e na escola que, até o final do ano, todos estarão lendo e escrevendo.
Um dia, mal acabada de chegar a São Paulo, num concurso para professora do Departamento de Ciência Politica da PUC/SP, o mestre da banca que me entrevistou (não passei nesse concurso) perguntou-me por que a professorinha entrava no curriculum vitae para uma cátedra universitária. Não me lembro o que respondi. Mas sei bem, até hoje, que esse é meu mais nobre legado profissional, que dali por diante manteria no curriculum vitae por puro orgulho. Essa foi a primeira memória quando vi nos jardins de Boston as flores surgindo da noite para o dia, todas ao mesmo tempo, como se programadas em computador. Bem diferente daquelas crianças, florescendo em letras cada uma a seu ritmo. Ali, meu primeiro aprender, aos dezoito anos.
Na véspera, chegara ao aeroporto JFK às 7:30 da manhã. Até pegar a mala, que já saíra da esteira e estava separada das outras, precisei responder ao senhor da alfândega que não, nada trazia de plantas ou alimentos dentro da mala. A uma segunda pergunta, insisti na negativa e segui adiante empurrando-a em suas quatro rodinhas, com meu passaporte de branca rosada e com essa cara de rica que Deus me deu. E hoje, comemoro meu aniversário momenteando no Central Park.
Parte do breakfast foi nessa mesma mesa onde escrevo, deliciando-me com um imenso copo de suco comprado num quiosque que vende qualquer suco com qualquer fruta, pois essa cidade abarca o mundo todo. O meu foi singelo: laranja, banana, morango. Abri a mochila e tirei o caderno com urgência de escrever. Nessa hora, vários casais e solteiros na minha faixa de idade ou pouco menos, com roupas coloridas, foram chegando com suas bikes sofisticadas. Nativos todos, à vontade no feriado nacional. Ah, esquecimento imperdoável: trouxe o caderno, mas não a caneta. O hotel está perto. Para lá chegar, atravesso o Columbus Circle. Tiro uma fotografia – uma self que tardiamente incorporei aos meus parcos dotes tecnológicos – junto à parte do Mapa Mundi que mostra a América do Sul. Entro num dos edifícios monumentais cortando caminhos pelas suas lojas coloridas em luzes, passo pelas imensas esculturas em bronze de um homem e uma mulher gordos, que me levaria à parte Oeste da Oitava rua.
O dia da chegada, ontem, foi uma prova de fogo que deixou minha coluna vertebral reclamando. Depois de horas numa van que vai despejando hóspedes pelos vários hotéis, um almoço com Tarcila do Amaral e Adrian Piper no MoMa, na companhia da amiga Estrella Alves, que viera de Boston para os últimos dias da conterrânea paulista dos anos 20 do século passado no museu. A escolha da Van, além de mais barata que um taxi, havia sido proposital: o primeiro contato com a imensa e poderosa cidade fundada por um punhado de judeus pernambucanos (ah, não poderia deixar passar essa: Pernambuco falando para o Mundo!).
A caminho do hotel para buscar a caneta … será que não encontro para comprar em alguma loja desse magnífico shopping, cujo sub-solo é um mercado de produtos “naturais”, alguma que venda uma simples caneta? Por outro lado, o suco já pedia o complemento de algo quente para encerrar o café da manhã. Eis que surge na minha frente uma mocinha em trajes de guarda e me indica a escada rolante que desembarca diretamente na Bouchon Bakery, onde comi um croissant com creme de morango acompanhado de hot chocolate. Ocupo uma cadeira alta num balcão de mármore. No outro lado das escadas, no mesmo andar, avisto as vitrines e o entra e sai de clientes da Amazon.com. Nice to meet you em carne e osso, senhora das vendas virtuais.
A meu lado direito, duas estudantes de antropologia, cada uma com um copo de suco e o respectivo laptop. Preparam um texto para apresentar depois do feriadão. Imagino uma delas aluna da cátedra Ruth Cardoso na Columbia University. Seu inglês é inconfundivelmente paulistano. A meu lado esquerdo, um negro retinto, bem vestido, nada consome e ri de vez em quando mirando solitário seu celular. E junto dele um brasileiro, com o fone do celular no ouvido, diz palavras soltas suficientes para reconstituir o diálogo com um conterrâneo no outro lado da linha. “Você é amigo do governo?” … “Só sei que não sei de nada.” … “Está tudo errado, Oswaldo. Quem tem mais renda deveria pagar mais impostos”. As estudantes de antropologia já fecharam seus computadores, chegam outras barulhentas e perco o fio da meada, ouvindo apenas palavras soltas do brasileiro: Cadeia, Governo, Parasitas, 4:95 é caro? O dólar subiu, a bolsa baixou.
O negro se levanta e se senta a meu lado esquerdo uma mocinha magricela, branquinha de dedos finos e delicados, cabelos castanhos claro presos num discreto coque, tênis, calças e camiseta justinhas de caminhar, casaquinho. Como pode essa moça assim tão delicadinha, chupar uma manga madura comprada no mercado do andar de baixo, com mãos e boca com tal sofreguidão de prazer?
Pois no mesmo shopping, voltando para tomar outra escada rolante, não é que encontro uma loja dos cadernos e agendas de meus sonhos? São caríssimos. Porém mais baratos do que os importados pelas boas casas do ramo do Brasil. Dou-me de presente, nada seria melhor. Suas folhas, papiros. E a caneta? Dessas nunca vi nas papelarias do Brasil. Seu deslizar nas folhas, uma pena da Idade Média dos monges escrevedores.
Volto ao Central Park. Passo em frente à bilheteria do Jazz Lincoln Center onde, em outra primavera, vi uma apresentação de Wilton Marsalis. O que me faz lembrar que aqui esteve, a convite deste, o nosso genial Maestro Spock e toda sua big band, tocando nosso frevo pernambucano mais sofisticado.
Uma beleza de leitura!
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Viajar é preciso…
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