Diário do Pina, 14 de janeiro de 2020 – As papoulas

Querida amiga,

Finalmente, quase boa do dedão do pé, dei-me alta. Sabe quando chega uma hora em que a gente não aguenta mais o resguardo? Caminhei pouco na areia, há que retomar devagar. Mas um banho salgado me fez um bem danado.

Agora, deitada na rede, queria continuar a prosa que principiamos ontem ao telefone. Pudesse voar, pousaria na varanda sombreada de tua casa e tomaríamos café juntas. Como ainda não aprendi, contento-me com uma carta.

E aí? Vou ter que me levantar da rede? Dessa modorra boa? O caderno e a caneta estão bem aqui, ao alcance da mão, em cima do banco envelhecido, do tempo em que não se matava porcos em frigoríficos. Ele tem serventias várias. Em festas, como banco propriamente, para as pessoas altas. E no todo dia, é meu auxiliar de leitura, onde vou deixando os livros lidos e ainda não guardados, os que estou lendo… é só espichar o braço, os alcanço. Às vezes vira uma bagunça. Pois não é que o caderno e a caneta, em vez de estarem na escrivaninha, vieram parar em cima desse banco? Coisas de faxineira.

Por que não? Pego o caderno, escoro-o na coxa direita, por sobre a perna dobrada. A perna esquerda, estirada, impulsiona levemente a rede com a ponta do pé, para que não pare de balançar. E é daqui, amiga, dessa rede balouçante quase à beira do mar, que te escrevo. Inauguro assim uma nova serventia para ela, a rede.

Essa carta, como disse, tem a ver com o assunto de nossa conversa de ontem. Nunca canso de agradecer a Deus e Nossa Senhora eu ter na vida amigas assim, de alma. Com quem posso falar de peito aberto, sem carecer vestir nenhum ornamento de falsidade. A vida social, querida, você sabe disso tanto quanto eu, para qualquer seu humano nessa terra (a não ser os loucos e os artistas), a vida é um teatro. Desde a mais tenra idade, aprendemos o nosso lugar na sociedade; e esse aprendizado nos recria para os valores e as regras de nosso entorno social. Mesmo estando longe de casa, como os imigrantes brasileiros que entrevistei mundo afora, mesmo esses, carregam seu lugar aprendido, primeiro que tudo, em casa.

Tem pessoas que vivem a peça que lhes foi atribuída sem se questionar, às vezes até alegremente, a vida inteira. Talvez somente à hora da morte avaliarão a vida que não viveram, travestidos nos desejos e projetos de outros. Mas nós fazemos parte dos que são inquietos, quase rebeldes. Para estes, o teatro pode ser opressor. E os amigos? Ah, querida, os amigos são a ilha onde podemos ser nós mesmos, sem adornos, despidos dos papéis sociais. Por isso te digo, não é exagero, agradeço à vida que construí, ter amigas. Hoje são poucas. Posso contá-las nos dedos de uma mão.

As vezes uma delas se afasta. Fico triste. Mas, por serem todas velhas amigas, sei que vai voltar. E sempre haverá alguma outra com quem eu posso conversar sem reservas. Ontem calhou ser você, que me questionava por eu assumir aberta e cruamente (seria também cruelmente?) minha condição de velha. Sim, querida, sou velha. Não ainda na fila da TAP, que estipula oitenta anos. Mas velha.

Por que relutamos tanto em assumir a velhice? Talvez por ser ela a ante-sala da morte. E em ambas a gente nunca se vê. Mas os outros vêm. Outro dia mesmo, minha irmã, que é avó, esperava a neta na saída da escola. Chegou aquele magote de meninos, com bolas de borracha na mão, vindos de um aniversário em classe. Ao pipoco de um balão estourado, todos se assustaram, rindo. E uma delas comentou, Até a velhinha tomou um susto! E minha irmã ficou procurando onde estava a velhinha…

A gente fica se iludindo, olhando para trás e pensando: não, eu não sou igual a minha mãe quando tinha minha idade e se vestia assim e assado, e era dona de casa, submissa ao marido. Será? E as debilidades de nosso corpo, por mais que a medicina ajunte recursos? O horizonte pela frente, não será o mesmo? Talvez apenas com alguns anos a mais, como fez a companhia aérea portuguesa.

E ficamos a brigar com a senhora velha, em vez de acolhê-la no colo, como fizemos com nossos filhos pequenos. Somos mais frágeis, sim senhora. Não brigar com a velhice, querida, é cuidar do corpo. No decorrer de cada dia, dedicar a ele muito mais tempo do que no tempo em que ele era novo.

Estou aqui deitada na rede espiando bem de pertinho as minhas papoulas. Mesmo elas, vegetais, não as posso dizer minhas, pois são rebeldes, obedecem a seu ciclo e não à minha programação. E a gente faz isso até com gente, não é mesmo? Meu filho, meu marido … Na casa de meus pais, em Garanhuns, o muro baixinho que separava o jardim da calçada era encimado por uma cerca viva de papoulas de todas as cores. Quando passava em frente de casa enterros de anjo, vindos da rua do Sossego, o bairro dos pobres logo atrás da rua dos ricos, minha mãe costumava recomendar, Dê papoulas, flor que nasce muito e morre depressa. Não as minhas rosas.

Acompanho o nascimento diário de minhas papoulas na safra desse verão. Uma delas estava em êpa para desabrochar no sábado passado. Mas não. Somente no domingo se abriu em pétalas brancas e delicadas como seda da China. Do caule verde, saíam em vermelho sangue, para se abrirem leves e claras como plumas. No meio das pétalas, um grelinho saliente. Vejo-as agora, dançando ao ritmo da brisa suave que vem do mar. Essa que se abriu domingo, hoje, terça feira, já começou a murchar. Amanhã estará morta. Três dias de vida. Essa outra, que nasceu ontem, hoje está em plena beleza da maturidade do segundo dia. No outro vaso nasceu a primeira flor cor de laranja.

A vida, minha amiga, são esses três dias de uma papoula. E é preciso estar atento e forte, para quando a seiva da terra, a água e a luz do sol, já não mais sustentarem a vida de uma papoula.

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