Querida Sevy,
Por causa de um sonho, vim te escrever. Ao lado do computador, fiz como um altarzinho: três flores roxas num vaso improvisado; meu caneco de flandre com água fresca; e uma vela acesa em castiçal. Fecho as cortinas para propiciar o recolhimento das igrejas.
As flores, amiga, trouxe de minha caminhada de hoje. Essas florezinhas, de uma cor entre lilás e roxo, nascem numa plantação rasteira dos morrinhos de terra à beira mar aqui no Pina. Elas marcam no calendário praieiro o principiar do inverno, a nossa estação das chuvas, do plantio dos roçados no Agreste e no Sertão. Você sabe precisamente do que estou falando. Pois bem, ao passar pelas flores lilás, que deixei na intenção de colher na volta da caminhada, ainda não sabia que iria fazer o altarzinho. Talvez elas tenham me levado a isso. Ficaram tão mimosas na taça de vinho do Porto … Será que irão perdurar até eu terminar de te escrever? Pois, mais do que as papoulas, são frágeis, delicadas, e morrem ligeiro.
Você partiu e não alcançou esse tempo de trevas e luto. Estarás em lugares de luz, querida, pois foi assim que soube ontem de tua morte numa mensagem de whatsapp. “Sevy tornou-se uma luzinha que nos acompanhará estrada afora …”
Aproveito a missiva para te dar notícias da terra. Ontem chovia muito. Talvez tenhas ouvido o barulho da chuva. A sedação leva a alma do moribundo para tempos e lugares que a medicina até hoje não decifrou. Ouvias, quiçá, o barulho da chuva de quando eras menina, água molhando e fazendo cheirar a terra mãe. Para onde retornas agora.
Não sei se posso te nomear propriamente amiga. Na verdade, sabíamos uma da outra por amigas comuns nossas. Eu sempre te vi à distância, como num carnaval em que, de longe, me acenaste com um sorriso. Estavas com um vestido de melindrosa todo bordado de lantejoulas. Feito sob medida para teu corpo magrinho de pele morena cor de jambo do Pará, o rosto iluminado por olhos verdes que davam a tua marca brasileira. De você, ouvia histórias. Como da vez em que pediste Edinaldo emprestado a Lucila para chegar de braços dados com ele no bar O Bêbado e o Equilibrista. Você, para mim, era como a atriz criada pelo narrador de Proust no primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido. Uma figura legendária de nossa Província.
Até o dia em que fui à tua casa, na rua que faz oitão com a Igreja de Casa Forte. Nessa tarde, me passaste a chave para abrir a porta da África, através do país mais pobre daquele continente, a Guiné Bissau. E me deste o único escrito que tinhas de teu, que não os burocráticos relatórios da FAO. “Faça disso o que quiser, Teresa. Eu não tenho mais tempo de vida para escrever nada”. Você também já não teve tempo de ler o destino que dei àquelas nove folhinhas de papel ofício. Foram-me de muita serventia, Sevy. Cheguei até a província de Bula, na região de Cacheu, onde já não encontrei mais vivo Chefe Lucas, Régulo Central das comunidades locais, para quem tu me fazias portadora de um abraço. Mas ainda fotografei o mesmo Quimbo, com um novo Chefe e suas várias esposas; e, nessa família grande, a mesma descrição tua do local: a cozinha coletiva no centro do terreno, onde preparam a comida as mulheres, enquanto os filhos pequenos brincam soltos no terreiro.
Naquele dia de nosso encontro em Casa Forte conheci de perto outro lado teu: uma imensa generosidade. Para você, amiga de tuas amigas era amiga.
Saber ontem de tua morte me doeu muito. O mistério da morte, quando chega perto de nós, mexe em lugares desconhecidos de nossa alma. Pensei nas sábias palavras que ouvi um dia de meu marido, “na nossa idade, não podemos mais nos dar ao luxo de perder nenhum amigo em vida, porque a morte está próxima de nós”. É isso. Já contamos nos dedos de uma mão os parentes da geração dos pais e tios. Somos a bola da vez. E pensei também numa amiga querida, das mais queridas, que corro o risco de perder em vida, por causa de uma quase arenga de crianças, que mordem uma a outra e depois ficam se acusando mutuamente de quem mordeu primeiro, enquanto a ferida está ali, sangrando pela distância uma da outra. Não a distância física, que esta não separa amizade. Mas a de almas.
Finalmente, Sevy, chego ao sonho. Vou te contar a parte dele que, para mim, não é material de análise, mas me chegou como os sonhos aos povos primitivos: uma parábola, aportada ao mundo onírico com a beleza e a suavidade de um recado de quem já não está mais entre nós.
Haverá uma festa. Estamos numa sala grande, uma espécie de galpão, onde dormiremos todas. Esse galpão comporta uma cozinha e um quarto, sem separação dos ambientes. O clima é de alegria, até uma certa excitação nos preparativos da festa. Além das amigas, estão também nesse espaço duas empregadas domésticas vestidas com uniformes.
Sydia é quem primeiro chega aos preparativos da festa, cuidando de arrumar algumas peças que estavam espalhadas sem ordem, em cima do tampo de um guarda louça de antiquário. Faz um sorriso de quem está achando toda aquela invenção uma graça. Sei que Lucila está presente, mas ela não aparece. Quem aparece é Clara, vinda de um corredor que conecta aquele galpão com outras partes da casa. Chega também muito sorridente, trazendo nas duas mãos uma travessa grande, que parece pesada e contendo uma comida quente.
Há uma conversa constante entre as muitas pessoas que circulam naquele ambiente. Não vejo todas. As amigas passarão a noite comigo. Eu já estou acomodada na cama de casal e elas improvisam colchões pelo chão. Ao chegar do corredor, Clara anuncia, com um tom de organizadora, “Gente, é a festa do batizado de Teresa”. Deitada na cama, não faço nada, só observo a movimentação de todas, sentindo-me imensamente feliz em estar sendo festejada. E não falo nada, mas penso, “De agora em diante, farei uma festa de batizado todo ano”.
De repente, entro também naquela faina bem feminina de arrumar casa e fazer comida. Aí vejo uma criança de uns dois anos circulando no meio das cozinheiras, correndo o risco de ser atropelada por alguma pessoa grande. A menininha está de chupeta na boca e fraldinha pendurada no ombro. Pergunto a uma das empregadas, supostamente a que toma conta da menina, Por que está aí essa criança? Não deveria estar na cama dormindo? E ela me responde que sim, mas que ela não quer ir para a cama. Eu nada falo. Baixo-me na altura da menininha, tomo-a nos braços e levo na direção de uma porta fechada, uma porta sem pintura nem verniz, como estivesse inacabada. Quando abro a porta, lá está minha mãe, muito velhinha. Sei que é minha mãe, embora suas feições não sejam as dela. Vejo somente a cabeça. O resto do corpo está coberto com o lençol.
Ela se acorda. Não quando entro, mas quando coloco a criança junto. E diz, “Dormi muito. Só faço dormir. É um sono …”. E eu replico, “Durma, mãe. Dormir é a melhor coisa do mundo”. E ela acolhe a seu lado aquela menininha, já adormecida.
Freud ou Jung iriam pintar e bordar em cima desse sonho. Para mim, Sevy, foi apenas a despedida de tuas amigas, numa grande festa, como você merecia. E como em sonhos tudo é simbólico, é você quem está deitada na cama do galpão, observando as amigas, sem nada falar, apenas feliz pela festa; é você a menininha acolhida pela avó, representada ali como teus ancestrais.
Teresa, me emocionei muito com seu texto. Tocante. O brilho de Sevy nos faz muita falta.
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Amilcar? É mesmo impressionante como se espalham os escritos pelas ondas das redes sociais. Minha cabeça ainda é analógica e, no fundo, penso que só vão ler aqueles poucos a quem envio minhas crônicas aos domingos. Feliz em te reencontrar, agora sem mais a intermediação da “afilhada”.
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