Vai passando o ferro velho – 20 de junho de 2020
A Mulher do Sétimo Andar pegou o hábito de saber as horas do dia pelo movimento da rua. Alguns foram suspensos com a quarentena, como o tenor evangélico da moto, a caminho do trabalho. Todos os dias da semana, às cinco e meia da madrugada, exceto aos domingos.
“Almoço! Almoço é a cinco, almoço é a dez, olh’aí”. Al-moooooo-çô (lá-si bemol-lá). Al-mo-çéacincal-mo-céadezolhaí (lá-dó-lá-dó-lá). Já esse pregão principiou com a quarentena, entre às onze e meia e onze e quarenta da manhã, também com exceção dos domingos. Para a Mulher do Sétimo Andar, era um aviso para suspender a leitura ou a escrita e começar a preparar o almoço.
Na esquina da rua Ondina com a rua Capitão Ribelinho há um restaurante popular antigo, embaixo de um prédio velho, desses que antecederam a incorporação da orla do Pina ao way of life de Boa Viagem. Esse restaurante, antes da quarentena, era muito frequentado por parte dos serviçais da redondeza: operários de construção, faxineiras, porteiros de prédios. Fornecia também quentinhas. Não seria o pregoeiro do almoço um simulacro dos aplicativos de celular, por parte daquele restaurante da rua Ondina?
Ruas cheias de prédios, há que ter um vozeirão forte para alcançar os andares mais altos. A Mulher do Sétimo Andar, confinada, não vira ainda o homem da quentinha do almoço. Mas ouviu dele a mesma voz do pregoeiro da macaxeira. Este, também, foi outro que sumiu com a quarentena. Eram duas notas musicais somente: ma-ca-xêêêêêêra (dó-lá-dó).
Um dia distante, quando as pessoas ainda saiam às ruas sem máscaras, a Mulher do Sétimo Andar encontrara por acaso o vendedor de macaxeira na calçada. Um homem chegado nos cinquenta anos, magro, (a magreza pobre de antigamente, que a indústria alimentícia e a propaganda de televisão trocaram pelos pobres gordos), sandálias havaianas, bermudas, camiseta de velha campanha eleitoral desbotada, e um chapéu de palha tipo cantor Mariachi do México. Trazia a macaxeira dentro de um carrinho de mão meio enferrujado, onde também uma balança. Naquele dia, viu ali um homem saído da imensa Cidade da Periferia do século XXI, sucedânea da Cidade dos Mocambos do século XX. Um neto, quem sabe, daquela Cidade dos Mocambos. E viu, quando foi descrevê-lo, a figura de seu avô: um pau no ombro, envergado pelo peso de dois balaios pendurados, um em cada lado,
Na manhãzinha fria de junho, quase noite, vêm chegando os balaieiros carregados de frutas e verduras, pela estrada de Afogados. Saiam dos seus mocambos alta madrugada, com os grilos cantando, os sapos respondendo lá fora, de dentro da noite escura. A estrada arrasada, pelas chuvas de maio, está lama só. Os pés chatos dos balaieiros se enterram na terra mole, espirrando barro por entre os dedos. Nesta hora incerta, ainda com a cor da noite, mas já soprando um arzinho da manhã, a estrada do Motocolombó se perde invisível no meio dos mangues, com seus mocambos ainda apagados, dormindo na placidez do charco. (Josué de Castro) Lembrava do tempo de estudante, quando morava no bairro do Poço da Panela, no Recife. Ali passavam muitos. Nesse tempo, o serviço dos pregoeiros era de mais serventia, porque os compradores ainda não viviam trepados e confinados. Alguns, em vez da voz, usavam instrumentos musicais. O apito do amolador de facas e tesouras. O triângulo do vendedor de cavaquinho. O sininho do sorveteiro.
Morando em Boston, economizando tostões, para o mês caber na bolsa de estudos da Capes, resolveu reciclar latas e garrafas no supermercado, que lhe pagaria uma ninharia. E saiu, acompanhada do filho (naquela idade adolescente em que morrem de vergonha dos pais), um frio danado, por ruas de paralelepípedos, o carrinho de compras cheio até a borda, telecoteco, telecoteco. Foi lhe dando uma tristeza de se sentir pobre, e, para espanto do filho (Tá doida, mãe?), gritou a todo pulmão, “Garrafa, meia garrafa, litro. Vai passando o ferro velho!” Com a mesma entonação lenta e compassada do canto de uma nota só, ouvido, há tanto tempo, na rua Professor Edgar Altino. Deu meia volta. E despejou todo o conteúdo no lixão reciclado do prédio onde viveu por um ano.
Que delícia, ler logo cedo seu escrito. Parabéns. Abraço
CurtirCurtir