Diário do Pina

Noite de São João – 24 de junho de 2020

 

Ontem, véspera de São João, foi o dia mais difícil da quarentena para a Mulher do Sétimo Andar. Até então ela vinha conformada. O confinamento mudara pouco a sua rotina de anos: viver sozinha, com o mínimo de necessidade alheia. Uma espécie de monastério, com suas próprias crenças apanhadas aqui e ali em retalhos da vida.

Pediu para sua arquiteta botar em desenho um recanto de seu apartamento a que chamou de Peji, justamente por ter ícones de crenças muito variadas, de Iemanjá e Oxum, suas duas orixás de cabeça, a Buda, Nossa Senhora do Carmo, irmã gêmea de Oxum, Nossa Senhora da Conceição, irmã gêmea de Iemanjá; fotos de seus ancestrais, representados pelo pai e pela mãe; uma quartinha de água fresca… Há também nesse Peji umas flores do campo de Minas Gerais, que foram ressecadas em um lindo colorido em amarelos e alaranjados, como se ali estivesse sempre a luz do sol. E um castiçal de sete velas, feito de bambu pelo artesão Sebastião de Almeida Faria. Ficou sendo seu lugar de recolhimento e meditação. Fez ainda uma reforma na cozinha. As prateleiras dos armários, bem como o forno, ficaram à altura de seus braços, para não precisar se abaixar nem subir escadas.

Ah, que paraíso! A semana toda sozinha. Fazendo sua comidinha, lavando a louça, ouvindo música, lendo… Escrevendo. Passeando na areia da praia, no calçadão, nas ruas estreitas de casas de arquitetura popular de Brasília Teimosa… Com setenta e cinco anos, ela pensava assim: quanto me sobrará de vida daqui pra frente, até esbarrar no muro da vida? Nesse assunto, a gente costuma não pensar (a não ser quando vai a enterro de gente de nossa geração), ou pensar pelo melhor: a demografia mostra que, a cada nova geração, está aumentando a esperança de vida. Aí jogamos esse muro lá pra frente, para um infinito fora de nossa vista. E lemos com satisfação as mensagens de whatsapp de bonitas palavras, que romantizam a nossa geração como melhor do que a de nossos pais.

Foi então que a Mulher do Sétimo Andar ponderou: pelo sim, pelo não, o certo é que já vivi três quartos de século. De meus parentes, os que estão acima de mim já se foram todos. Ganharei talvez alguns mirrados anos a mais. Mas o tempo urge, ou ruge, como dizem numa brincadeira, que, nesse caso, senta bem.

O que mais desejava nessa vida aquela mulher? Ela lembrava o tempo de estudante/ativista/professora em escolas primárias. Sempre tanto trabalho, tanto compromisso de leitura chata. Depois, professora universitária. Sempre tanto trabalho, tanto compromisso de leitura chata; quarenta provas, todas sobre o mesmo assunto; todos os anos, os professores amadurecendo nos galhos da academia, os alunos sempre verdes. É certo que havia oásis: os orientandos, as boas leituras dos cursos da pós-graduação. Quando estudante universitária, chegou a devanear: se fosse presa e se na cadeia pudesse ler… Ler sem compromisso, os romancistas russos e franceses… Ler Machado de Assis…

A aposentadoria fora uma bênção de suas orixás. Mandou o marceneiro fazer uma estante no quarto de empregada, compartilhando o espaço daquele quarto com material de limpeza, vassouras, caixa de ferramentas – um almoxarifado. Lá arrumou todos os livros que não vai ler mais nessa vida, inclusive o que ela mesma escreveu em tantas revistas acadêmicas, meu Deus do céu! Não, não renegava nada daquilo. Dormiriam ali em berço esplêndido. Mas agora o tempo e o lugar eram outros. E as estantes do escritório, espaço nobre da casa, foram povoadas somente pelos escritores desejados. Uns foram chegando. Outros já estavam lá, lidos. Outros ainda, esperando a hora. Há quanto tempo? Esperando, esperando. Quem sabe um dia?

Dentre estes, Proust, No Caminho de Swann. Quando pegou o livro na estante, não se lembrava de quase nada do que lá estava escrito. Que raio de leitura fez na época? Sabia que tinha lido, pelo menos até a metade: em certas passagens, haviam frases grifadas. As pessoas podem nunca chegar a firmar uma característica pessoal de escrever. (Privilégio, aliás, dos grandes escritores de ficção). Mas todos os costumazes leitores desenvolvem seu jeito próprio de sublinhar os livros. Foi folheando as páginas, como quem encontra na rua um velho amigo a quem não vê faz tempo; se abraçam, sabe quem é, mas não lembra o nome. E então Proust, com a capa de trás já sem a musculatura forte de livro novo, abriu-se e mostrou as duas últimas páginas. Uma em branco. A outra, imaginem, um Cartão Resposta Comercial, escrito: “Inteiramente Grátis para Você! Receba as próximas edições da Revista Literária Globo, com todo o conforto em seu endereço e sem gastar absolutamente nada!” Ah, eram assim as propagandas daquele tempo.

A surpresa não foi, contudo, o Cartão Resposta Comercial, mas a página em branco. Pois lá, com o mesmo lápis com o qual a leitora sublinhava passagens de Proust, uma criança, com não mais que quatro ou cinco anos, desenhou um foguete.

Ao mirar de perto o foguete, a Mulher do Sétimo Andar viajou no tempo e no espaço. Viu uma jovem mãe sentada num sofá com um livro e um lápis na mão, enquanto os dois filhos, sentados no chão da sala, de onde fora arrastada para um canto a mesa de centro, montam construções com peças de Lego. Lembrou da frase pronunciada pelo filho mais velho, no finalzinho da meninice, Mãe, eu às vezes fico triste quando penso que um dia vou crescer e não vou mais gostar de brincar de Lego.

E ficou pensando na cena. As crianças gostam de brincar sozinhas, mas gostam mais ainda de ter a mãe por perto, à mão. De preferência, prestando atenção ao que fazem. Mostrar um automóvel maluco que acabou de construir. Ou a fábrica onde colocar mais carros. A mãe tenta ler um pouco enquanto eles brincam, aqueles parágrafos infindáveis de Proust, aquelas viagens intermináveis pela sensibilidade e a percepção, quase sem enredo. Quando o pequeno tirano percebe que a atenção da mãe se voltou para algo que não ele, corre aos seus braços. Às vezes o malandrinho (o caçula, certamente) ainda faz uma graça, pede um beijo. Pronto, lá se foi o longo parágrafo, terá que voltar ao princípio. Não, não tem Proust que resista à tirania infantil. Melhor entregar os pontos. Vocês venceram.

A mãe mostra o livro, o filho descobre a penúltima página em branco, Posso desenhar aqui, mãe? E lá ficou o foguete apontado para cima, possivelmente em guerra com outro, incompleto, por falta de espaço, apontado para baixo. Por mais de trinta anos esteve Proust pacientemente esperando na prateleira, junto com outros escritores mais satisfeitos, como Saramago, que dizia, eu, pelo menos, fui lido em quase tudo o que escrevi. Você não saiu do primeiro volume. E não chegou nem à metade.

Então a Mulher do Sétimo Andar foi ler o começo da crônica e ficou espantada com ela mesma, pois, quando principiou a escrita, deu o título de Noite de São João, e dizia, então, que aquele havia sido o dia mais difícil do confinamento. Aí entrou por uma perna de pinto, saiu por uma de pato, sem dizer afinal onde entrava São João nessa história toda. Nunca é tarde, mulher, diga agora. Pois bem, foi duro uma noite de São João sem fogueira. Já nem digo a música, que ela recebeu de montão pelo whatsapp, e ainda botou pra tocar Luiz Gonzaga dos primeiros tempos, de quando ele se apresentava nas Rádios Difusoras desse interiorzão nordestino. As de suas melhores parcerias, com Humberto Teixeira e Zé Dantas. Meu Pé de Serra, Asa Branca, juazeiro, Légua Tirana, Assum Preto, Estrada de Canindé…, Vem Morena, Cintura Fina, Forró de Mané Vito, A volta da Asa Branca… Ou até a comida. Contentou-se com uma pamonha. Nem mesmo a dança. Com um cabo de vassoura, dançou xote e baião. Mas proibiram as fogueiras. Era a primeira vez na história do Nordeste em que se proibiam as fogueiras de São João. Que tempos estamos vivendo, meu Deus do céu, de tanta desgraça! De chegar a esse ponto? De não se ter nem uma fogueira na noite de São João?

Seu João era morador da Fazenda Bálsamo, em Bezerros. Um dia, arresolveu-se a se mudar para Goiás. Entregou a casa ao dotô, acertaram as contas do Inss, e lá se foi mais a família. Eram bonitas as histórias de seu João, com o modo agrestino dele falar, antigo, de um português castiço, misturado ao espanhol. Era escutar Miguel de Cervantes, Guimarães Rosa. Na sua linguagem, a natureza e os bichos tinham sinônimos que se perderam com a televisão: o jumento também é poté, também é polodoro.

Foi embora seu João, com a mulher, os meninos, o matulão. Ia ganhar salário mais gordo nos Goiás. Era o mês de setembro. Em outros setembros, já tivera a experiência de migrar para o que esses agrestinos chamam de Sul. Mas essa era uma viagem curta, dava para deixar a família, se arrumar de qualquer jeito nos galpões da Zona da Mata nomeados de Senzalas; ficar por uma, duas semanas; e voltar com a feira para a família, arrancada com o suor do corte da cana. Foi lá que perdeu os dentes da frente, chupando a cana proibida no meio do canavial. No final do dia, junto com o de comer, uma cachacinha mais os camaradas. Disse que houve um engenho onde mordiscavam as folhinhas de um pé de pau que dava uma alegria besta… danavam-se a dar risada. E lá ficava, por aquele mundo de cana, o verão todo, pagando os pecados. Até ouvir no céu o ronco das trovoadas de janeiro, a esperança de bom inverno.

Dessa vez, ia para o desconhecido. Menos de um ano adispois, regressa seu João. No alpendre da Fazenda Bálsamo, proseava. A senhora quer saber por que voltei? Pois foi por mode uma fogueira. Aquele povo de lá não tem religião não senhora. Só pensa no trabalho. A senhora acredita que ignoraram minha fogueira? Adonde já se viu um cristão não acender uma fogueira na véspera de São João?

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