Diário do Pina

A quarta lua – 03 de julho de 2020

 

E estamos chegando à lua cheia nesse domingo, depois de amanhã. A quarta lua da quarentena. Deve ser por isso que a Mulher do Sétimo Andar anda tão agitada. As marés, nesses tempos aluados, ou estão muito altas ou muito baixas. Hoje, dia claro, cinco horas da tarde, a safadinha já aparecia risonha a muitos palmos da barra do Oceano Atlântico. Brinca de esconde-esconde com uma nuvem cinzenta, que lhe diz assim: daqui a pouco você vai realçar no céu escuro da noite. E mais se amostraria a lua, não fossem os postes a lhe tirar a noite, altos que nem perna de pau que anuncia circo chegando na cidade, Hoje… tem… espetáculo? Tem, sim senhor. Oito… horas… da noite? Tem, sim senhor. Arrocha negada! ÊÊÊÊÊ!

Pois como é que uma pessoa que já trabalhou tanto nessa vida; nem votar carece mais, para todo quarto dia útil do mês receber os proventos da aposentadoria, como é que essa pessoa não vai simplesmente descansar em berço esplêndido, tal qual os livros aposentados de sua estante do almoxarifado? Não. Essa pessoa parece até que tem um resto de menina atiçando seu olho comprido para brinquedo novo.

Desde que começou a escrever para não mais do que meia dúzia de leitores, a Mulher do Sétimo Andar passou a fazer disso uma obrigação, como se estivesse comprometida com uma coluna semanal de jornal. Será que a compulsão para trabalhar faz parte da natureza humana, desde que a serpente seduziu Eva, que seduziu Adão para morder a maçã, que depois virou símbolo de uma importante fábrica de máquinas de escrever?

A lua, agora, já não está esmaecida pelos retalhos do sol poente. Brilha altaneira no céu, malgrado o perna de pau bem defronte à janela onde escreve a mulher. Se Deus der bom tempo, essa lua nascerá na hora aprazada, cada dia mais tarde, até seu esplendor no domingo; e o sol, mais preguiçoso no inverno, não deixará de alumiar e aquecer a terra todo santo dia. Tudo isso seguirá seu curso, escreva ou não escreva o Diário do Pina a Mulher do Sétimo Andar. Contudo, mal divulga a crônica no domingo para sua meia dúzia de leitores, ela já se põe a pensar na próxima.

Gostava quando a ideia para a crônica seguinte já aparecia no começo da semana. Assim, teria tempo de ir costurando sem pressa. Foi o caso dessa semana. Na terça feira concluíra a leitura de um romance de Dostoiévski. Copiou um longo parágrafo do epílogo, batizou a crônica de Pandemia, e já estava pelo meio do escrito, quando viu a lua às cinco horas da tarde. Vocês ainda não conhecem bem essa mulher. Em tempos de lua cheia, ela muda de ideia com muita facilidade. Releu o que estava escrito. Era ver o roteiro de uma palestra. Não, não. Deus me defenda. Palestra, nunca mais, foi o que ela pensou. E mudou a prosa, pois, afinal, a praia estava livre dos cocôs de cavalo e havia sido tomada por uma horda de meninos doidos para brincar no marzinho raso e na areia fofinha. Deixou o crime e o castigo de lado, e tomou o caminho da rua. O que é de um cronista sem “A alma encantadora das ruas” (belo título do livro de crônicas de João do Rio)?

Então a Mulher do Sétimo Andar caminhava no primeiro de julho pela areia da praia do Pina. O dia estava invernoso e sombrio. Ao sair de casa, às 5:10 da madrugada, as luzes dos altos postes ainda não haviam se apagado de todo. Caminhou na direção do mar, atravessando a área de mato crescido pelas chuvas. Passou pelo seu coqueiro, que finalmente brotara em folhas novas. Talvez tomasse impulso de crescimento nesse inverno. Arrancou os matos de dentro da pequena área redonda demarcada pelo pneu pintado de branco, onde está escrito em letras pretas Josué 2017. A castanhola Emília, plantada no mesmo dia, com franzino tronco e folhas grandes e espalmadas, já pode dar sombra a três ou quatro pessoas. Que essas pessoas sejam meninos, estarão na idade dela.

Chegando à areia, viu uma jangada entrando no mar. Lembrou que há dois dias nenhuma delas saiu para pescar. Era o 29 de junho. Feriado para os pescadores em homenagem a seu padroeiro. Nesse ano de quarentena, não houve missa campal, celebrada pelo Arcebispo de Olinda e Recife em palco improvisado de Brasília Teimosa. Mas haveria sim a procissão das jangadas de lá. As daqui do Pina, em um rito que deve ter origem nos costumes de nossos pais indígenas para suas entidades sagradas, hastearam as velas desde a véspera à noite. Pela madrugada, o velame tremulava aos ventos sul. Os pescadores iam chegando, retornando as velas brancas a seus mastros. Nesse dia, diferentemente de todos os outros do ano, elas não descansarão deitadas ao comprido da embarcação. Ficarão em posição de sentido, apontadas para o alto, a implorar a São Pedro um bom ano de pescaria. Já em casa, a mulher ouviu os rojões. Imaginou a procissão de jangadas de Brasília Teimosa saindo ao mar.

Porém, o primeiro sol depois da abertura das praias na Quarentena foi antes, no feriado mais festejado pelos pernambucanos, o de São João. Nesse dia, a Mulher do Sétimo Andar não saiu de casa para caminhar, como faz costumeiramente. De pés descalços, perambula pelas prainhas onde brincam meninos pequenos. Escorada nos arrecifes que formam um banco a separar o mar e as piscininhas, espia.

– “Maria Flora!” É a mãe chamando a menina que se aventura a ir mais para o fundo. Toda menina que tem nome composto com Maria, treme quando é chamada pelos dois nomes. É sinal de que vem bronca. Se arrumam para ir embora. A mãe pede ajuda a Gabriel. Ele deixa a tampa do isopor cair do outro lado da barreira de arrecifes, dentro de uma das prainhas. Desce de um pulo para apanhar a tampa, com a maior má vontade. Estava tão bom os dois brincando no mar… A mãe insiste, já brava: vamos embora. Gabriel pega a alça do isopor e pendura ao ombro magrinho. A irmã leva na mão uma das sacolas de plástico com as roupas. Nisso, os meninos avistam lá longe, vindo de Brasília Teimosa,

– “É ele, mãe, não está vendo?” O pai traz mais duas sacolas de plástico nas mãos. Os olhinhos dos meninos brilham! Já a mulher, recebe-o com palavras ásperas, “Por que tanta demora?” “Estava no delivery, mulher, queria o que? Como vou botar comida na mesa em casa? Hoje é feriado, tive que trabalhar em dobro. Desmancha essa tromba. Trouxe aqui o lanche. Ainda tem cerveja?”

Flora e Gabriel esquecem por enquanto o mar. Sentam-se todos na areia da praia, que as sombrinhas e cadeiras ainda não estão permitidas. Coitados dos vendedores ambulantes! A Mulher do Sétimo Andar mudara seu habitat para o outro lado do muro de arrecifes. Deita-se numa das piscininhas, tão rasa que não lhe cobre o corpo. De uma pedra faz travesseiro. E agora espia a família comendo e bebendo em silêncio. O herói, um moreno bonito, entrega um sanduíche a cada filho. À mulher, ele ainda passa a mão no ombro e recebe um sorriso. Estabeleceu-se a paz. Gabriel e Flora sabem que terão mais mar, “com seu cheiro bom, os seus ventos, suas chuvas, seus peixes, seu barulho, sua grande e espantosa beleza”.

Já pensava em retornar de seu devaneio preguiçoso, a Mulher do Sétimo Andar, quando, mais adiante, olhou outra cena que lhe deixou mais tempo deitada em seu travesseiro de pedra. A princípio viu apenas os três rapazes, cavando com as mãos a terra fofa e úmida e cobrindo dois corpos. Lembrou-se dessa brincadeira de seus tempos de veraneio, de enterrar vivos, deixando só a cabeça de fora. Espiava como se na última fila do último camarote de um teatro, apurando a vista para não perder nada pelos olhos, já que os ouvidos ouviam apenas a risadaria gostosa da moçada. Viu quando as duas moças se levantaram, espanando a areia do corpo. Cabelos longos, biquínis fio dental, lindos corpos morenos, com essas bundas redondas e arrebitadas das mulheres brasileiras que carregam sangue negro nas veias. Um cão vira-lata late desesperado, como se quisesse entrar na algazarra dos adolescentes. Invertem-se os papéis e as moças agora é que enterram os rapazes. Pano rápido. Eles são menos pacientes. Os cinco correm de um lado para o outro, elas sacodem os longos cabelos. Uma delas, com o corpo abaixado por mãos e pés apoiados no chão, forma um obstáculo, que os três disputam quem dará o melhor salto ao outro lado.

Na volta pra casa, ainda vê a trupe entrando no mar para tirar a areia do corpo, e depois sair caminhando na direção de Boa Viagem. Não fossem os sacos plásticos e o som, que alguns insistem em ouvir pelo celular, seria um paraíso.

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