A vida estancou nesse paraíso – 07 de julho de 2020
Às 4:45 da madrugada, a Mulher do Sétimo Andar deitava-se na esteira para alongar o corpo, enquanto espera o dia clarear para sair de casa. Depois de dias de chuvas intermitentes, a Estrela da Manhã luzia forte num céu não totalmente negro, mas de um gris escuro. Brilha do lado esquerdo do quadro que forma a janela da varanda aberta, de dois metros e meio ao comprido por noventa e cinco centímetros de altura. Dessa esteira, seu ponto de vista para o horizonte, aprecia o céu mudando as cores lentamente. Os automóveis ainda não invadiram a avenida. Do mar, ouve o murmurar das ondas, e, sem vê-las, sabe que a maré está alta. Escuta o mar, sentindo no corpo o friozinho da madrugada invernosa. O sol ainda não nascera de nuvens escuras, quando a Mulher do Sétimo Andar teve uma ideia. Iria se retirar para um merecido descanso – trabalhara muito durante a Quarentena. Daria a palavra a outra personagem, que, tímida, andava escondida.
Emília vencera a morte pela segunda vez. Voltava para a sua terra. Quando desembarcou no aeroporto dos Guararapes, à claridade escandalosa de uma manhã ensolarada do Recife, apenas sorriu distante para Maria, e lhe fez com o dedo indicador um sinal de silêncio, o mesmo que se vê nos cartazes pendurados em corredores de hospitais.
Ao primeiro dia, com toda bagagem trazida de Boston, rumaram num jeep velho pela BR 232 em direção a Gravatá. Ela e o homem que ficara conhecendo na noite da aeronave. Outubro, fazia verão ameno de uma primavera que mantinha o verde de um bom inverno. Era o ano da graça de 1965. Foi só então que se falaram pela primeira vez. Como é teu nome? Pantélia. E o teu? Emília.
Pantélia era de pouco falar. Pela janela aberta do jeep, o vento assanhava os cabelos soltos de Emília, quando ela sentiu um perfume inebriante e pediu, “Pantélia, Pantélia, para no acostamento.” “Fazer xixi?” “Não, sentir o Cheiro de Velame.” “O que é Velame?” “Não conhece? É aquela plantinha besta.” Emília desceu às pressas do jeep, como uma menina que corresse atrás de uma boneca perdida. Baixou-se para atravessar uma cerca de arame e arrancou um galho novo de Velame. Voltou ao jeep com um sorriso estampado no rosto, enquanto cheirava a plantinha com volúpia. Ofertou ao nariz grosso de Pantélia: Sinta.
Em silêncio, Emília repassava passagens de sua vida e pensava, O cheiro é o sentido do desejo. Será para todos, como é para mim? Mais do que o tato. Mais do que o olhar. O olfato aflora de memórias antigas. E o desejo, que, diferente de nós, não tem idade, toma a frente da cena e empurra para trás o escrúpulo. Às vezes nem chega a ver esse estraga prazer.
Acabavam de atravessar a Serra das Russas. Principiava o Agreste.
Pelo outro lado da rodovia entraram na cidadezinha. Ela não conhecia. Defronte à igreja matriz, com sua torre se destacando dos prédios baixinhos de comércio, via-se a praça com bancos de madeira desbotada pela falta de árvores. Seguiram por uma rua de casas de uma época passada. Uma delas, paredes brancas, janelas cor de laranja, terraço da frente com cadeiras de balanço e rede, jardim de gérberas, cravos, rosas e gerânios. O terraço contornava o oitão livre, onde um pé de jasmim florido certamente perfumaria o ar da tardinha. Emília imaginou mangueiras, abacateiros, mamoeiros e bananeiras no quintal. Abaixo do telhado, numa parede encimando o terraço da frente, estava escrito Villa Octávia. Quem seria aquela Octávia que mereceu ter uma vila com seu nome?
Seguiram na direção do Cruzeiro, em rua sem calçamento. Ao primeiro cruzamento, o jeep desviou da subida do Cruzeiro e seguiu à esquerda, na direção de São Severino dos Macacos. Acabadas as ruas de casinhas pobres, entrou numa estrada de terra, mais própria para montarias. Nesta, não cruzaram com quaisquer outros veículos motorizados. Principiava um caminho ascendente, com curvas acentuadas. O jeep dava mostras de conhecer bem a estrada. “Conheço-a em cada palmo, tão devagar careço de andar nessa rodagem esburacada. Subo agora a Serra da Borborema, nesse pedaço que chamam Serra do Contente. Por enquanto, tudo são flores, que nascem bonitas nesse Brejo. A moça vai contente. Meu patrão mais ainda. Eu e ele somos unha e carne. A moça é bonita. Quem sabe agora meu patrão cria juízo?”
Por aquele caminho não passou boi nem boiada. Quanto mais subiam, mais apareciam florzinhas. Sim, aqui há primavera. No Brejo existe primavera. Flores junto às cercas de arame farpado, beirando a estrada. Primeiro foram as papoulas, que fizeram Emília se lembrar da casa do Velame, onde as papoulas floravam atrás do muro da frente. Coloridas em amarelos, rosas e vermelhos. Depois, as nuvens: delicadas, azuis. Bouganvilles, com todas as cores da primavera, esparramavam-se em cima dos muros. E, sem ordem, enxeridos em qualquer terreno, girassóis. Os daqui não têm a imponência dos que vanGogh pintou em monótonas plantações. Nascem junto ao mato e parecem não ter grande convicção em olhar o sol. Flor agrestina, herdou do sertanejo a desconfiança com sol quente. E, como as papoulas, esses girassóis são crianças pobres: nascem muito e morrem depressa.
O jeep reclamou da subida mais íngreme, desde a fonte de água mineral até uma encruzilhada marcada por uma venda. Tomou a direção de São Severino dos Macacos. No último quilômetro antes de chegar ao destino, a estrada mostrou o Brejo pleno de águas em sua feição própria. Mata dos dois lados, casinhas de sitiantes de vez em quando. Em alguns trechos, os pés de Sabiá fazem uma coberta por cima da estrada, deixando-a sombreada e misteriosa. Nesse trecho, o jeepinho sorriu e pediu a marcha de força, pois ali principiaria seu balé deslizando na lama.
Chegaram. A porteira estava aberta. Apiaram. E prepararam juntos a primeira refeição do dia, frutas, queijos e iogurtes, que comeram sentados nos bancos de uma pequena mesa de madeira roída pelas chuvas e pelo sol, e afixada numa pedra em frente à casa, embaixo de uma pitombeira. Depois foram caminhar no sítio.
No hall de entrada da Casa do Brejo havia um cabideiro com chapéus, agasalhos e guardas-chuvas. Embaixo, um banco velho. Abaixo deste, no chão, calçados apropriados para caminhadas. Pantélia mostrou a Emília um par de botas azul marinho e, com um sorriso maroto lhe disse, “Se couber nos teus pés, serás minha noiva”. Num canto entre as paredes, havia dois cajados. “Pega esse mais bonito”. Emília tomou-o à mão direita e saíram a percorrer os dois hectares e meio.
As tilápias de um barreiro com água escura se aproximaram quando Pantélia jogou ração. Dali, os dois foram por um caminho ladeado por Palmas de São Jorge, até uma pedra espraiada de onde se via o mundo. Foi ali que o Demônio tentou Jesus Cristo, oferecendo-lhe o paraíso terrestre em troca do reino celestial.
Para chegar ao lajedo da tentação de Cristo, caminharam por terra batida, por entre pedregulhos, jaboticabeiras, pitombeiras, mangueiras, jaqueiras, muitas folhas secas no chão. O cajado ali tinha serventia. Numa das pedras do caminho, depois do barreiro, sentaram e tiraram botas e meias. Dali até o lajedo, foram sentindo nos pés o roçar das folhas secas, dos grãos de areia da cor de um caneco de flandre. Havia que ter atenção às pontas afiadas dos gravatás. A pequena viagem a pé carecia de cuidado e explicações de Pantélia.
À chegada ao lajedo, com a visão magnífica da redondeza verde, casinhas espalhadas de longe em longe, parecendo uma natureza pintada, pararam. O danado do negro parecia um profeta, com o cajado na mão apontando ao redor, a cabeça raspada reluzindo ao sol das primeiras horas da manhã, uns olhos que quase faiscavam ao brilho do sol. Sentou numa pedra com formato de cadeira incômoda e cedeu a outra, mais confortável, para Emília. Ficaram ali quanto tempo? O tempo obedecia a outra contagem, porque haviam deixado os relógios dentro de um baú no hall de entrada da casa. Depois do silêncio, calçaram de volta as pesadas botas e iniciaram a descida da encosta do morro. Entraram na mata. Havia uma trilha, na qual cipós e galhos ameaçavam os olhos e os braços. Pantélia puxou de um facão grande embainhado ao cinto na parte de trás das calças, e foi na frente, cortando galhos e cipós, abrindo caminho. Às vezes se voltava e dava a outra mão para Emília atravessar uma passagem mais difícil.
De repente, na mata, uma clareira. No meio dela, o maior pé de pau que Emília já vira na vida. Um baobá. Pantélia lhe assegurou que fora trazido da África. Treparam. Em menina, essa era uma das melhores brincadeiras. No pé de manga do quintal de Silvana e Cristina, viviam comadres e construíam casinhas imaginárias em galhos separados uns dos outros. Ela pequena, aquela mangueira era uma árvore imensa!
– Quer ser meu compadre, Pantélia?
A vida estancou nesse paraíso. Emília não quis pensar no que a esperava e quando.
(Emília, contada ao modelo Folhetim do Século XIX com formato Século XXI, continua no próximo domingo)
Li o primeiro capítulo do folhetim. Muito bom. Vou ao próximo. Axé.
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publicar em folhetim tem isso de bom: o calor de algumas leituras.
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Esse é o primeiro capítulo?
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Sim, Ana Rosa. Daí você segue até chegar ao de hoje.
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