Emília

  1. Aquele girassol brejeiro

 

No terceiro dia, ao café da manhã na mesinha embaixo do pé de pitomba, Emília e Pantélia principiaram a leitura de Fausto, de Goethe. A versão dela em português; a de Pantélia em alemão. Pantélia sabia alemão. E inglês, e francês, e espanhol. O danado do negro parecia um príncipe africano.

Era custoso tirar palavras de Pantélia. Dele, Emília recebia os abraços cheios de sorrisos, quando chegava na cozinha já tomada banho, cheirosa a perfume francês, vestida com roupa de sair, e ele parava o que estava fazendo, desligava o fogo e vinha ao seu encontro. Com braços fortes, erguia Emília do chão para que ela enlaçasse as pernas na cintura dele, e assim se beijavam muito, como fosse aquele o primeiro beijo do dia.

Alguns monastérios guardam silêncio às refeições. No Brejo, adotaram o costume de outros – a leitura. Ele acompanhava e, vez por outra, traduzia um trecho que em alemão era mais bonito ou mais preciso.

Emília pensava, “A literatura foi sempre meu cajado. Com ela, sobrevivi a um internato em colégio de freiras, tirando dela o prazer escondido nos livros encadernados em papel madeira. Com ela sobrevivi a um casamento sem amor. Com Pantélia, aqui, nesse pequeno paraíso, vivo a literatura, lendo junto, sorvendo o prazer de cada verso.”

Logo, o encantamento da leitura compartilhada invadiu outros espaços da casa. Ao final do dia, num banho em água tépida numa banheira tão grande que cabia os dois, Fausto de Goethe teve seu primeiro encontro com o evocado espírito. Agora, o leitor era Pantélia, sentado em um banquinho, enquanto Emília se envolvia em espumas cheirosas, ouvindo a voz grave, muito grave e suave de Pantélia.

A noite desse terceiro dia, depois de uma chuva passageira, mostrava um céu limpo. “Gostas mais de lua ou de estrelas?”, perguntou Pantélia. “Estrelas, respondeu Emília”. “Então as terás”. Abriu a porta lateral da casa e foram para um deck de madeira escura, nu de móveis. Pantélia trouxe de um mezanino cobertores, almofadas e travesseiros. Cheiravam um pouco a mofo. Porém, com o aroma das Angélicas plantadas do lado de fora, Emília só sentia o cheiro dessa flor, e o friozinho da noite brejeira.

Fazer amor sem teto, sem paredes… Mais de dez anos depois, Josué sentiria um ciúme póstumo de um negro muito mais negro que ele não chegou a conhecer, a não ser nas marcas de prazer deixadas como uma tatuagem de girassol no corpo de Emília.

 

O quarto dia amanheceu chovendo. Tomaram o café da manhã à mesa da cozinha. A casa do Brejo tinha confortos de banheiro e de cozinha. Mas Emília sentiu falta de uma rede. “Não é costume na África, Pantélia?” “Essa herança, Emília, é dos índios de vocês.” Ele pegou o jeep velho e rumaram para Gravatá. Até então, não haviam arredado o pé do sítio.

Em Gravatá, o dono do armazém deu todas as instruções para Pantélia instalar os armadores. Depois, andando pelas lojas da cidade, compraram a rede mais bonita. Eram onze horas da manhã e estavam prontos para retornar. Foi então que Emília ficou conhecendo outro lado de Pantélia.

Entraram em uma mercearia, que também fazia as vezes de bar. Lá, Pantélia conhecia o dono e tinha um copo só para ele, de vidro bom, e uma garrafa de whisky escocês com seu nome. Era a única garrafa de whisky daquela mercearia. Nos dias seguintes, Emília saberia que onze horas era o “início dos trabalhos”, como ele gostava de dizer, enquanto, juntos, preparavam o almoço.

Desse dia em diante, instalou-se uma luta em surdina entre Eros e Baco. Baco trouxe com ele a música, até então só dos passarinhos, das cigarras, dos sapos a festejar as chuvas. Apareceram discos. E Pantélia soltou a língua. Os feitos da sua juventude. O hotel dos oficiais militares portugueses, onde era proibida a entrada de negro, mesmo um oficial negro; até o dia em que esse hotel foi alvo de um ataque de forças aliadas portuguesas à luta de libertação dos africanos. Emília, aninhada em seus braços depois do amor, gostava de ouvir as histórias de Pantélia.

E gostava quando ele botava para tocar umas músicas, que não se sabia se orientais, ibéricas ou africanas.

Estão na cozinha. Acabaram de comer castanhas, queijo de cabra, patês e pães, acompanhados de vinho tinto da região de La Rioja na Espanha. Pantélia está sentado de costas para a mesa, de frente para o espaldar da cadeira, escanchado, e espia Emília dançando a música que ele escolheu. Ela escolheu a roupa, que vai tirando aos poucos. Pelos olhos de Pantélia, Emília vê também os de Júlio menino e os de Josué rapazinho. Dançava como se estivesse no terreiro de Xangô da avó, no Janga.

Pantélia, com o copo na mão, saiu ao relento e colheu um girassol. Entrou em casa cambaleante. Um sorriso bobo. Emília ainda dançava. Enfeitou os cabelos da mulher com aquele girassol brejeiro de talinho mirrado, e abraçou seu corpo. Suas mãos percorriam trôpegas os seios descobertos de Emília, o púbis. A boca, procurando a boca da dançarina, era ver um náufrago pedindo ar. Emília levou-o para a cama, como quem leva um filho para dormir. Ao terminar de tirar o segundo sapato, Pantélia roncava.

Emília não conseguiu conciliar o sono nessa noite. Pela madrugada, Pantélia levantou-se para ir ao banheiro. Na volta, ela deixou-o dormindo na rede. Mesmo com a porta do quarto fechada, Emília ouvia o ronco, mais alto que os grilos da noite. Quando conseguiu dormir, o dia amanhecia.

 

Ao quinto dia, ao acordar, Emília teve um pressentimento de que sua vida estava indo para algum lugar, que ela ainda não sabia qual. Mas sabia que sua Orixá lhe visitara durante a noite, em sonhos, e que iria direcionar seus próximos passos; assim como tinha sido ela, Oxum, quem a trouxera aos braços desse homem. Adiou os pensamentos que haviam atormentado sua madrugada insone, “O que estou fazendo aqui? Por que não enfrento de uma vez a vida que ficou no Pina, nos três anos incompletos de meu filho? Quem sabe, Josué já retornou de São Paulo?”

O sol já aquecera a manhã e os passarinhos haviam se recolhido ao silêncio. Pantélia chegou ao quarto com um copo de suco de laranja e um girassol, que pôs nos cabelos desalinhados de Emília. Como cachorro vira-lata desconfiado, abraçou-a, e depois foi buscar a quartinha d’água. Ao final, Emília recebeu agrados de mãe no corpo satisfeito.

Não fizeram juras de amor depois do amor na cama. Mas o whisky voltou para o fundo do baú.

Os mantimentos para preparar as comidas rareavam. A geladeira, quase vazia. A casa pedia para ser varrida, arrumada, limpa. Fizeram então a divisão ancestral do trabalho: o homem foi para a rua; a mulher ficou em casa.

Já era noite quando Pantélia retornou. Trazia parte das compras e um girassol para Emília. Começou a contar como tivera uma discussão com o dono da venda, que teria roubado na medição de seu litro de whisky. Faria um discurso sobre seus feitos de guerra, histórias do tempo em que fez História. Mas olhou para a mulher a seu lado e sentiu a tristeza dela. A voz dele caiu um tom. E os olhos fitam a mulher, onde lê a tristeza do Noturno de Schubert.  Baco havia mais uma vez vencido a batalha.

Enquanto Pantélia dormia na rede, Emília catou tudo que era dela e estava espalhado pela casa. As roupas do streeptease. As langeries compradas com Maria em uma loja chic de Boston, para estrear a volta à vida no Brasil. Havia sido uma bela estreia!

 

Na manhã do sexto dia, as malas de Emília estavam prontas. Pantélia caminhava pela casa mirando a bagagem. Convidou-a para dar uma volta.

Caminharam de mãos dadas por caminhos empoeirados e lamacentos da estrada. Já não com a alegria ensolarada com que desceram do avião no Aeroporto dos Guararapes, mas com a tristeza de um dia de chuva. Quando o sol anunciou que já seriam onze horas, Pantélia falou. Da angústia do bêbado, angústia que só passa à primeira dose do dia seguinte. Do tremor que já sentia em suas mãos, à aproximação das onze horas da manhã. E pedia, “Fica, Emília. Pelo menos até amanhã, dia de meu aniversário. Vamos continuar Goethe. Vamos ver as estrelas à noite, deitados no deck.”

 

Ao sétimo dia Pantélia deixou Emília de volta ao aeroporto, de onde ela tomou um taxi rumo ao Pina.

 

(continua no próximo domingo)

 

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