Emília

  1. A avó Emília

 

No dia cinco de julho de 1954, aos treze anos de idade, Emília conheceu a avó. Com a mãe e as duas irmãs, iriam passar as férias na casa das tias e da avó. Pela primeira vez, Solange e Rejane se esqueciam do complô entre elas para atormentar aquela irmã mais velha, que caíra do céu para dividir com elas o espaço do quarto e a atenção da mãe. Faziam isso com toda a crueldade de que são capazes as crianças. (Emília ainda se sentia uma estranha na casa de dois quartos, uma cozinha no mesmo espaço da mesa com quatro cadeiras e um tamborete, e um sofá onde as irmãs costumavam principiar umas brincadeiras de agarrado que terminavam sempre em briga.)

O percurso da praia do Pina à praia do Janga era uma epopeia. Caminharam até o ponto de ônibus do Pina, que as levaria ao centro da cidade. Ao chegar ao Recife Antigo, Emília olhava fascinada os prédios da praça Rio Branco. Ali tomaram o bonde de Olinda, o Zeppelin. E essa foi a primeira e a última vez que Emília andou de bonde. Eles seriam desativados naquele ano.

Ao terminal do bonde em Olinda, tomaram um ônibus muito velho, apelidado de sopa, que as levou até Rio Doce, a última praia daquela cidade. Para as meninas, o passeio era uma festa. Para Emília, uma grande novidade. Aliás, tudo na sua vida, desde que saíra da casa de seus pais adotivos no Velame para vir morar com a mãe, foi uma novidade que marcou o resto de sua existência. Deixara um palácio de rei, onde era a princesinha, para vir morar numa cabana de pescador. Agora, conheceria a pessoa que havia provocado essa reviravolta na sua vida: a avó, sua xará.

Do pai de Emília não se falava. Quando perguntou por ele à empregada que lhe contara da adoção, “teu pai não é o marido dela. Com esse ela teve mais duas filhas. Dizem que teu pai foi embora para São Paulo e nunca mais voltou nem deu notícia.” Mas o pai de criação, mesmo contrariado com a decisão de uma mocinha de 13 anos de sair de casa para morar com a mãe verdadeira, fez questão de manter a princesa no melhor colégio de freiras do Recife, da mesma ordem religiosa do colégio do Velame. Até Emília ter seu primeiro emprego, e depois, e sempre, até ele morrer, o Juiz de Direito do Velame, proprietário de terras e de gado, esteve presente na vida da filha. De longe. Com um amor incondicional.

Em Rio Doce, depois de atravessar a ponte, estavam no Janga. Porém ainda careciam caminhar cerca de um quilômetro até chegar à primeira casa, da tia Nenê.

Naquele tempo, o Janga era uma praia habitada por pescadores, em casas perdidas no meio de um imenso coqueiral. Pesca, venda de cocos, roçados e pequena criação no quintal, ocupavam os poucos moradores da praia deserta. Abasteciam-se do que plantavam e criavam atrás de casa; e nas “vendas”, que não passavam de um cômodo da casa destinado ao comércio – um terraço, um quarto com a janela aberta… Casas de taipa, cobertas com palhas secas de coqueiro, sem água encanada nem luz elétrica. O sanitário era improvisado numa cabana atrás da casa. A água vinha de um poço cavado no quintal, logo após a cozinha. Puxada à bomba manual, supria as necessidades da cozinha e do banheiro. Este, sem teto ou porta, cercado de palhas e vigiado por quem estivesse por perto enquanto se tomava banho de cuia. No outro lado da estrada de terra, havia extensas matas de caju. Era um lugar de passeio na época da safra, a partir do mês de outubro, para chupar a fruta embaixo dos cajueiros e trazer as castanhas para assar em fogareiros improvisados no fundo do quintal, com tijolos servindo de fogão e latas velhas fazendo as vezes de frigideira.

 

Era inverno. Chuvoso, como todo ano. Mas aquele havia sido um dia de sol. Passaram primeiro na casa da tia Nenê. Lá ficaram Solange e Rejane, que correram com as primas para o primeiro banho de mar. Seguiram as duas irmãs e Emília. Emília ia calada. A mãe e a tia conversavam animadamente e não prestaram atenção em Emíia, que caminhava em contrição, cabeça baixa, como quem se dirige ao altar para receber a comunhão. A sombra dos coqueiros, naquele momento, voltava-se para o mar, maior do que o tamanho real deles. A luminosidade do dia, nessa hora, é de uma beleza estonteante.

Emília viu à distância a avó na varanda da casa, deitada na rede. Ao ver Nenê abrindo a tramela do portãozinho do terraço, fez menção de se levantar. Sem conseguir, quase perdeu o fôlego num acesso de tosse, logo socorrida por um copo d’água trazido pela segunda tia que Emília conheceu nesse dia. A velha Emília pediu para Ceiça levantá-la da rede. Mal olhando para as filhas, dirigiu-se à neta, que entrou por último no terraço. Emília viu na sua frente uma mulher imponente, empertigada, cabelos grisalhos presos num cocó atrás da cabeça. Vestia uma saia comprida de madapolão, cor da areia da praia, e uma blusa solta por cima, de um tecido de cassa amarelo claro. A saia e a blusa folgadas encobriam uma magreza.

– Emília! Até que enfim você chegou.

Esse dia foi para Emília como o batismo da religião católica, onde o pai nomeia a criança na presença de Deus. As lágrimas quentes e salgadas da avó escorrendo pelo rosto da neta, o abraço forte, sem palavras.

– Ceiça, vai buscar o remédio de mãe.

– Deixa de besteira, Nenê. Quem já viu alegria subir pressão de ninguém? – A avó não parava de espiar a neta. Tocava no ombro dela, fazia um agrado, passava a mão nos cabelos, se admirava. E se ria, só pra dentro dela mesma. Assumiu o comando e determinou, Vocês vão lá pra dentro que eu quero ficar sozinha mais Emília. Ceiça, traga aquele envelope velho que está guardado na minha gaveta. Você sabe qual é. Esse dia demorou, mas chegou, graças a Deus.

Ceiça voltou de dentro da casa com um envelope que um dia terá sido branco. E retirou-se. A velha Emília entregou à neta e pediu para ela ler. Emília precisou juntar as quatro dobras de um papel que sofrera os estragos do tempo. Porém a tinta azul estava intacta, numa caligrafia redonda e feminina, quase desenhada.

 

Meu pai era dono de terras, escravos, e criava gado. Por ser a única filha de sete irmãos, sempre fui a preferida. Mesmo sendo desobediente. Junto com meus irmãos e os filhos de moradores da fazenda, saía de casa para armar arapucas de caçar passarinho, matar lagartixa com estilingue… E sabia que a mata era proibida para mim. Meu pai dizia que era lugar de homem. Quando desobedecia, e eu desobedecia muito, recebia como castigo não tomar banho de rio. Entre a floresta e o rio, cresci em prazeres proibidos e punições.

Vizinho de nossa fazenda, morava o fazendeiro mais rico da redondeza. Velho, cinquenta e sete anos, viúvo. Todo dia, depois do almoço, vinha tomar um cafezinho e ter um dedo de prosa com meu pai. Da última travessura, contada pela voz risonha do pai, sorriu e olhou para mim bem dentro de meus olhos. E disse, como a completar o castigo do pai, “Da próxima vez que desobedecer, venho te buscar para casar comigo.”

Eu tinha acabado de completar doze anos. Meus peitos despontavam como umbu maduro, e apareciam os primeiros pelos pubianos. Ainda não menstruara. Casei como uma princesa.

Foi no ano da graça de 1869. Meu marido mandava buscar no Rio de Janeiro as bonecas mais bonitas. Criei caprichos: costureira para mim e para as bonecas. O véu e a grinalda do meu vestido de noiva faziam parte de meu tardio brincar de menina.

A minha mucama recebeu ordens para não me deixar ir à mata. Mas eu desobedecia. Sem castigo, tomava banho de rio todo dia, num sítio com cachoeira.

Um dia o marido soube. À noite, à hora da ceia, olhou para mim com o mesmo olho comprido de quando me ameaçou de casamento na casa de meu pai. Eu usava as mesmas tranças amarradas com laço de fita, e um vestidinho de algodão enfeitado de rendas. Sentou-me no colo. Beijou meu rosto assustado. Senti embaixo da coxa algo se avolumando. Assentei-me mais à vontade e olhei para ele, com um meio sorriso desconfiado; o velho a me dar na boca doce de goiaba em calda feito pela negra cozinheira, com queijo de manteiga mandado da casa de meu pai. Senti um calor que subia pelo corpo como o vento da mata e descia como a cachoeira.

Enquanto meu marido me implorava, como a uma rainha, um bom comportamento, eu, sem mirá-lo, mexia de leve a bundinha nas coxas dele.

Nessa noite, a mucama foi dispensada dos serviços de quarto. Deixei-me despir de costas, olhando para a janela de onde ouvia, no escuro de uma noite sem lua, o farfalhar das folhas do pé de Juá. Levantei os braços, como fazia para a mucama, para deixar deslizar a camisolinha branca pelo meu corpo.

Ele vigiou meu sono nessa noite. Deve ter imaginado o sonho em que abri ligeiramente os lábios, num sorriso e num murmúrio que ele não conseguiu ouvir.

Passaram-se três noites de vigília. Ele cumpria preceito de caboclo para o desabrochar da menina. Ao amanhecer do último dia, me contaria ainda a mucama, saiu para uma faina que não carecia dele. Para isso tinha vaqueiros e escravos. Voltou mais cedo para casa, sol a pino, a tempo apenas de fechar os olhos para sempre.

Vestida de negro, ao pé do caixão, eu estava assustada com a morte. Senti uma dorzinha no baixo ventre e depois um líquido que humedecia minha calcinha. Fiquei moça no dia do funeral de meu marido.

Meu pai quis me levar de volta para casa. Mas agora minha rebeldia dispunha de sustento, pela posse de terras, gado e escravaria. Viúva, guardava uma virgindade que atiçava os homens. Passei a me vestir de calças compridas, que mulheres não usavam naquele tempo, cabelos presos, chapéu, botas. Contratei professor. Aprendi a ler, escrever, fazer contas e alguma coisa do mundo em histórias e geografias. Josué, filho da mucama, foi meu único colega de classe.

Não houve adolescência para mim. Da noite para o dia, eu era uma moça forte, corada de sol, de vontade própria. Alforriei minha mucama, Mãe Dallá, e o filho dela, Josué. Fiz prosperar as terras do meu finado marido, agora minhas. Aprendi por conta própria artes de mandar e ser servida, o que me acompanhou vida afora. Mesmo depois de me casar, aos vinte anos, com Antônio, quatro anos mais velho que eu.

Antônio era um homem alto, cabelos louros e ondulados, barba e bigode levemente ruivos de um antepassado holandês. Tinha astúcia e fineza ancestral nobre, sem terras nem heranças. Eu concedia-lhe todas as poses de mando. Da casa para fora. Da soleira para dentro, continuei no comando do lar e dos negócios. Josué cuidando da contabilidade das fazendas.

Sete meses depois de casada, dei à luz uma menina que recebeu o nome de Maria Emília. Tinha os olhos azuis em pele escura, quase negra.

 

A avó escutou a leitura deitada na rede; Emília, sentada no batente do terraço. Antes de principiar a falar, a avó chamou novamente Ceiça e pediu para ela armar a outra rede para Emília.

– Emília, essa carta foi escrita pela minha avó, tua tataravó. Ela também se chamava Emília. Era uma mulher com pele cor de leite, olhos azuis de um céu de verão, e os cabelos louros em grandes caracóis. Minha mãe, não conheci. Morreu de parto quando nasci. Como ela, fui criada pela Mãe Dallá, mãe de meu avô Josué.

– Quando minha bisavó Dallá morreu, eu já era moça feita. Foi nesse dia que decidi abandonar de vez aquelas terras. Um presságio me dizia que meu destino estava longe dali. Meu avô compreendeu que aquele destino devia de ter sido traçado pela mãe dele, Dallá. Antes de ganhar o mundo, ele quis que eu fosse tomar a bênção a minha avó branca.

– Nesse dia, deixei para trás aquele mundão de terras. Dessa avó, de quem não quis herança, trouxe comigo somente essa carta, que ela me entregou depois de me abençoar. Agora lhe pertence.

– Fui morar na rua, trabalhando nas casas de família, até encontrar meu lugar no mundo, num terreiro de Xangô. Nunca mais soube de nada desse passado. Para mim, a vida principiou no dia em que fui sagrada Mãe de Santo.

A avó estava visivelmente cansada, depois de relatar muitos detalhes de tudo o que se lembrava de sua vida, saindo do Agreste, seguindo caminhos traçados por Oxum até chegar às margens do rio Doce, onde morava aquela Orixá. Com a mesma determinação com que antes se dirigira às filhas, disse para Emília,

– Você hoje descansa, minha neta. Vá ficar mais sua mãe, suas tias, seus primos. Amanhã bem cedo Nenê te mostra o terreiro e nossos espaços sagrados. Lá, vou jogar os búzios, agora na tua presença, para confirmar os recados de Orunmilá. E de noite será a festa de Oxum.

(continua no próximo domingo)

2 comentários em “Emília

  1. Querida Teresa, vim agradecer pela leitura tão agradável. Faço verdadeiras viagens no tempo, percorrendo os ambientes rurais e urbanos que você descreve tão bem, sentindo os cheiros, ouvindo o barulho da rede, lembrando de hábitos e costumes do nosso povo. Minhas memórias nas fazendas dos avós na Paraíba e Serra Talhada vêm logo à tona. Este episódio, em especial, é um verdadeiro documento histórico e sociológico, magistralmente construído com sua competência acadêmica e talento literário. Se for publicado em livro este conto, serei o primeiro da fila na noite de autógrafos. Grande abraço!

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