A mulher do professor

Desenho de José Hamilton. Lápis de cor, 22 X 31 cm, 1993

A mulher do professor – 24 de janeiro de 2021

A noite daquele dezembro de 1959 foi de céu estrelado. Na rua por onde caminhavam Celso e Raimundo, quase todas as lâmpadas dos postes de luz elétrica se achavam queimadas. Iam a caminho de um endereço há muito cobiçado por Celso. Raimundo estava hospedado por uma semana na casa de veraneio dos pais do amigo. Os dois, de férias do colégio agrícola.

Já haviam se afastado das ruas de paralelepípedos da cidade.  Seguiam por calçadas inexistentes. Celso, tenso, calava-se. Raimundo, conhecendo bem o amigo, respeitava o silêncio dele. Ouviam-se os grilos da noite. As árvores dormiam. De repente, de uma das casinhas pobres do caminho, escutaram o som de um rádio dolente tocando “Sertaneja”, na voz de Orlando Dias.

Depois de um quarto de hora andando um ao lado do outro, vislumbraram ao longe a cobiçada casa de muro verde. Não demoraram mais que cinco minutos para chegar lá. Raimundo, à frente de Celso, abriu um portão de ferro rangente, e entraram por um cimentado estreito, ladeado por Palmas de São Jorge. No jardim esturricado, sobrevivera um resto de galhos com uma Dália púrpura. Ao subir o degrau do terraço, Celso tropeçou e quase caiu. Raimundo segurou-lhe o braço e os dois sorriram.

– Coragem, companheiro! – disse Raimundo – A primeira vez é a mais difícil. Porém inesquecível. Veja a vantagem que você leva: alto, cabelos castanhos lisos, bem penteados, esses olhos verdes de tristeza, esse ar tímido, que as mulheres adoram, porque provoca nelas o instinto maternal… Já eu, um baixinho mestiço, com esses cabelos desgrenhados e essa cara de pobre. O bonezinho de marinheiro é minha salvação.

Celso mirou o amigo com um riso agradecido. Raimundo deu uma pancadinha carinhosa no ombro dele e teve vontade de rir das roupas que usava. Talvez para compensar a insegurança do desconhecido tão desejado e esperado, vestia calça marrom escuro, camisa marrom claro puxando para o vermelho e um paletó amarelo. Para completar a aquarela, sapatos cor de laranja.

Do terracinho que antecedia a porta de entrada da casa, dava para ouvir um burburinho de vozes, abafadas pelo som alto de “Perfume de Gardênia”, cantada pelo próprio Bienvenido Granda. Não havia campainha nem no muro nem ali no terraço. Raimundo abriu a porta e entraram. A radiola de ficha piscou em cores vivas para Celso. Vários casais dançavam. Veio recebe-los uma mocinha usando um vestido “Tomara que Caia” lilás, sapatos de salto alto brancos, usando um batom encarnado que enfeitiçava um sorriso maroto de quase adolescente. Levou-os à única mesa que não estava ocupada com copos e garrafas. E sentou-se à mesma mesa.

As cervejas foram compartilhadas entre os três. Celso se conservava calado. A conversa rolou somente entre Raimundo e a moça, um sentado em frente ao outro. Raimundo contava das férias na casa do amigo, dos banhos de mar, trivialidades.

Sentado numa cadeira encostada na última parede, alheio à prosa de Raimundo, Celso observa tudo. Viu no salão uma moça caminhando sem pressa na direção do bar. Cabelos negros, curtinhos, contornando graciosamente um rosto redondo de olhos repuxados na horizontal. Lábios carnudos, sem pintura alguma. Um buço por sobre o lábio superior lhe dava um ar de mistério. Usava um vestido vermelho pelo meio das coxas, justinho ao corpo, com um generoso decote que deixava entrever seios fartos de mamilos escuros e salientes. A alça direita do vestido está caída por sobre o braço distraído. Como único adereço, um colarzinho colado ao pescoço. Uma loura acompanhava com olhar invejoso o caminhar macio dessa morena.

Celso olha fixamente para deusa de vermelho. Sem dar fé, de olhos baixos, ela segue com seu rebolativo caminhar ao balcão das bebidas. Lá está, entre outros, um senhor gordo, bem vestido, sorridente, que a espera com um copo de whisky na mão.

Nessa noite, Celso não dançou nem se levantou da cadeira. Afundava-se nela, sentindo-se invisível, só olhos e ouvidos. A morena de vestido vermelho ficaria por muitos meses nas fantasias solitárias dele.

Voltaram para casa depois que Raimundo, com um sorriso estampado na cara, saiu de um corredor por trás de uma cortina cor de vinho, por onde Celso não teve coragem de entrar. A volta dos dois para casa foi novamente silenciosa. E até Orlando Dias já dormia, no rádio do casebre.

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No colégio, um novo professor de matemática fora contratado para substituir o mais antigo, que se aposentara. A certa altura da aula, depois de escrever uma equação na lousa, percebeu que um aluno já pousara o lápis no caderno. Aquele olhar tranquilo do estudante perturbou um pouco o professor.

– Não vai resolver o problema? – olhou discretamente a lista de chamada – como é mesmo o seu nome? Celso? Sim, Celso. – E repetiu a pergunta – Não vai resolver a equação?

Celso enrubesceu, e, humildemente, mostrou a equação resolvida em seu caderno. Isso confundiu ainda mais o professor, seguro de seu domínio na matéria. Mas saiu-se bem.

– Você é mais rápido no gatilho do que eu. Então, venha a esse outro lado da lousa, e mostre para os colegas o caminho que você seguiu, diferente do meu, para chegar ao mesmo resultado. Aqui, vale o ditado popular, um pouco modificado para a circunstância: contando que chegue à venda, qualquer caminho vale.

Não era a primeira vez que Celso surpreendia aos professores e colegas. Sua inteligência acima da média desculpava o bom dia que esquecia de responder, as esquisitices. Era estimado.

Voltava para o seu lugar na segunda fileira de cadeiras, quando viu, na soleira da porta, ao fundo da sala, uma morena, que imediatamente lhe lembrou aquela da casa do muro verde. A roupa era recatada. Porém o corte do cabelo, os olhos puxados, os lábios grossos encimados por um buço visível… Diferente da moça daquela casa, esta olhou na direção de Celso e esboçou para ele um leve sorriso. Celso ouviu o professor pedir licença à turma, ir até a porta e trocar com ela duas palavrinhas em voz baixa. Depois ficaria sabendo: era a mulher do professor.

O adultério é insidioso. Como ela conseguia, naquele ambiente fechado, no qual as casas dos professores ficavam dentro do campus, trair o marido? Como todas, ora. Todos sabiam, menos o marido. Celso acreditou que foi o primeiro e seria o único. Por três longos meses, a mulher do professor ensinou-lhe, com carinhos de mãe, prazeres inimagináveis. Celso construiu castelos de adolescente. Num corcel negro, fugiriam para bem longe e viveriam numa cabana um grande amor. Pelo resto da vida.

Até que a bola da vez mudou para um colega de turma de cabelos cor de fogo, com quem a mulher do professor compartiu a mesma cama em diferentes momentos, até trocar de vez Celso pela nova aventura. Celso descobriu-se traído. É. Raimundo tinha razão. A primeira vez é a mais difícil, porém inesquecível. Só que ele se esqueceu de acrescentar que a primeira traição é também a mais difícil e inesquecível, porém com os sinais trocados. Em vez do prazer, a dor.
 

5 comentários em “A mulher do professor

  1. Já que não ligou farei um breve comentário… Tanto no primeiro conto como neste segundo, apesar de ter gostado da sua escrita, fico a lembrar da explicação que me deu sobre a diferença entre crônica e conto. E então achei que você está escrevendo muito bem mas seus contos estão mais pra crônicas ou entendi tudo errado!

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