Diário do Pina

Conceição – 28 de setembro de 2021

Nasci branca, branquinha da silva. Um belo dia ela resolveu que não: Eu era mulatinha da silva. Gostei mais do que ser branca. Mas demorou a cair a ficha. A dona Isabel, dona da primeira escola onde estudei, lembro daquele dia. Meu pai conversando com ela no pátio da frente da escola, que se parecia com o quintal de minha casa. Mangueiras. Lá havia também um balanço pendurado num dos pés de manga onde meu pai ficou me balançando enquanto conversava com a dona Isabel. Depois ela nos levou a uma sala de visitas da casa onde morava, que ficava junto ao prédio das salas de aula. Lá nos serviu um suco de caju, tão docinho! E cantou para mim Bonequita linda dos cabelos louros. Meus cabelos eram louros? Preto era louro?

            “Meu cabelo é bom, Carmem?” Carmem só dizia a verdade. E ela disse: “Mais ou menos. É cacheado. Mas não é pixaim que nem o meu.”

            Hoje espio aquela menina do longe de meus sessenta anos. Aquela escritora me criou com uma felicidade que é uma espécie de milagre que só acontece aos meninos pequenos. Só fui me dar conta da menina triste pelos retratos no álbum de fotografias.

            Foi por essa época, aos treze anos, quando descobri a menina triste que morava dentro de mim. Tomei-me de uma revolta!

Milagre – 29 de setembro de 2021

A Mulher do Sétimo Andar despertou com a Aurora. Havia caído uma chuvinha de madrugada, mas não impediu o sol de aparecer na sua hora costumeira de verão. Desligou o ar refrigerado, abriu as cortinas do quarto, e a vontade era sair voando em direção à praia, feito os pombos vagabundos. Vai com calma, dona moça.

            Para ela, essa quarta feira passou a ser o Sete de Setembro, inauguração oficial das praias do Recife. Antes tarde do que nunca! Quantos empecilhos vinham adiando esse dia… Imaginem, até uma Corona. Mas tudo passa nessa vida. Hoje ela estava livre, de alta.

            Atravessa a avenida e dá-se o milagre. Vocês que pensem que milagre é coisa rara, que ocorre em grandes acontecimentos. Alguns, espetaculares, como aqueles narrados pelos evangelistas, da multiplicação dos pães, da transformação da água em vinho… Milagre é coisinha à toa, que pode acontecer na sua cara e você nem percebe por que não presta atenção. Parar de ouvir o barulho insuportável dos motores dos automóveis, em troca da cantiga do vento e do mar é um desses milagres. E é tão fácil… Basta atravessar a avenida, a passarela que separa o calçadão da areia da praia, e pronto. Lá está o deleite supremo para os ouvidos. E para os olhos. Com alguma sorte, também para o olfato: o cheiro inebriante dos sargaços. E, como se não bastasse, a sola dos pés ainda pode sentir o roçar daquele tapete verde escuro das algas marinhas; as pequenas correntezas das piscininhas que Iemanjá, mãe, avó, oferece aos meninos pequenos. Sim, porque Iemanjá, que há muito emigrou da África para o Brasil, tem seu trono de rainha no Alto Mar defronte às jangadas dos pescadores. Aqui mesmo, no Pina. De onde saem as oferendas à Conceição todo dia oito de dezembro.

Pintor das madrugadas – 30 de setembro de 2021

Ela havia voltado à rotina das madrugadas. Nesse último dia do mês de setembro, fez o mesmo percurso do dia anterior. Porém os dias nunca são iguais uns aos outros. Estava em pé no quebrar das ondas espiando a aurora. Os pés iam se afundando na areia, a ver até quando o corpo se equilibrava, numa brincadeira que aprendera em menina e depois ensinara a seus filhos meninos. Quando se volta para principiar a caminhada até o Buraco da Velha (quem sabe hoje um banho de mar?), vê um homem vestido com bermudas e camiseta, fotografando o nascer do sol. Ao se aproximar, reconhece o pintor de antes da longa quarentena de 2020/2021. Ele se aproxima e lhe chama por outro nome de mulher.

            – Ah, desculpe, acho que fiz confusão.

            – Você não é aquele pintor que gostava de fotografar a aurora, as jangadas saindo ao mar?

            – Ah, sim. Isso mesmo. Agora me lembro. Você escreve, não é isso?

            O mesmo rosto redondo, o mesmo tipo de vestimenta com cores claras e combinantes. Talvez, mais fios brancos de barba. Os cabelos (seria careca?) encobertos pelo boné.

            – Veja, hoje você ficou compondo a paisagem.

            – Que cores fantásticas deste alvorecer, não? Ah, por favor, me manda! Prometo, em torna, te enviar a crônica de hoje. O número do telefone dela foi registrado no celular dele. Ao longe, em cima de um dos arrecifes, viram uma figura magra, enigmática, em posição de ioga, mãos postas, mirando o sol e o infinito.

            – Vamos deixar ele em paz, não é?

E continuaram seus caminhos, uma em direção ao norte, o outro ao sul. Ele caçando imagens. Ela caçando histórias.

2 comentários em “Diário do Pina

  1. Olá Teresa! Gosto muito de Conceição! Obrigada por esse presente! Estando aí, também posso pedir ao Paulo, meu irmão, quando for oportuno, ele faz um confinamento rígido, vou enviar-lhe os dois exemplares que organizei, com gentes ótimas, das críticas de teatro de meu marido. Realizei o projeto que ele deixou, com pouco mais de 300 críticas, fotos, nesse número também. A obra completa irá para o site que crio, Casa da Escrita, sua poesia, a última incompleta, são sonetos, e planos anuais de cursos meus para o fundamental 2.

    Obrigada! Abraço e beijo.

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  2. Querida Maria Luiza. Fiquei curiosa. Como você teve acesso ao meu blog? Sei que é só colocar o endereço e lá encontra as crônicas de hoje e de ontem. Mas, como sou jurássica em matéria de informática, acho que as pessoas só irão ler se eu encaminhar uma chamadinha por uma mensagem de zap ou e-mail, o que faço em geral aos domingos. Fiquei muito contente com seu comentário. Terei muito gosto em receber as críticas de teu marido. De minha parte, também publiquei um livro com o acervo de pinturas e desenhos de meu marido, aos 12 anos da morte dele, em 2013. Terei gosto em te presentear com um exemplar. Beijo e abraço carinhosos.

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