Brasileirinho

No bairro de Areias, no Recife, nascia Adalberto Cavalcanti da Silva Filho, a meia noite e quinze minutos do dia 16 de janeiro de 1961. Filho de pai alfaiate e mãe dona de casa. As primeiras letras ele aprendeu com uma professora pobre de Jó que morava na Vila das Lavadeiras. Enquanto dava aula particular ao menino, essa velha professora cozinhava feijão em fogareiro de lenha. Beto chegava de volta em casa cheirando a fumaça. Sabendo o beabá, foi estudar em uma escola na Vila dos Contínuos, no mesmo bairro de Areias.

Ao estilo das Vilas Populares de Santo Amaro, o governador Agamenon Magalhães havia construído naquele bairro várias vilas populares, das quais se notabilizou a Vila das Lavadeiras. Lá surgiu a “Troça Carnavalesca Mista Lavadeiras de Areias”. No Recife, para os que não sabem, é preciso fundar um bloco de carnaval para ter alguma credibilidade. Pode ser um escritório de advocacia famoso, que criou o “Paraquedista Real”… Ou as lavadeiras de Areias.

Aliás, foi por isso que em vez de blog, optei por nomear essa minha prosa com os amigos de bloco. Bloco Momentear. Por que momentear? Aí é outra história, que prometo contar um dia. Porque agora a história é outra. Hoje estou iniciando uma nova série de crônicas, as quais resolvi nomear “Conversa de Cordas”. Com esse título, estou plagiando descaradamente o primeiro personagem das histórias e causos que farão parte dessas crônicas. Betto do Bandolim.

Foi morando em Areias que Betto descobriu-se músico.

Diferente de tantos outros intérpretes e compositores brasileiros, ele não tinha ninguém de sua família que tocasse instrumento algum. Em casa, a única música que se ouvia era pelo rádio. A mãe gostava de um programa de seresta às três horas da tarde chamado “Caixinha de Pedidos”. Betto não se lembra em qual emissora, mas lembra perfeitamente do prefixo musical: Brasileirinho. O menino dormia e acordava com esse chorinho no juízo. Por vezes passavam-se dois, três dias, sem tocar. Ele sentia falta. E no dia em que tocava de novo, o menino abandonava qualquer brincadeira de carrinhos de lata, de manguitos enfiados por quatro palitos fazendo de bois, e vinha ao pé do rádio prestar atenção. Às vezes era outro pequeno trecho da mesma música. Depois ficou sabendo que o instrumento era um cavaquinho. Apaixonou-se pelo cavaquinho sem nunca ter visto seu objeto de amor.

Talvez mais importante do que as músicas que Beto ouvia naquele programa de rádio – Orlando Silva, Sílvio Caldas, Dalva de Oliveira, Carmem Miranda, Carlos Galhardo, Isaurinha Garcia, Alcides Gerardi, Roberto Silva, Carmem Costa, a divina Elizeth Cardoso, os Trios Irakitan, Los Panchos, Núbia Lafayete (ah, adoro!), Orlando Dias, Francisco Alves, Araci de Almeida, Ivan Cury… (a lista é grande). Mais até do que o rádio, o que terá marcado decisivamente os ouvidos de menino ávido por música, foram as cantigas da mãe. Ah, as mães donas de casa… ao fazer as comezinhas tarefas domésticas, cantam. E as cantigas que ninaram o sono do menino Beto? Para além do Xô xô pavão, Sertaneja, Lábios que beijei, Índia, Tudo acabado, A deusa da minha rua, Boemia, Normalista, Chiquita bacana, Velho realejo…

Assim cresceu o menino Beto.

Havia na sua vizinhança umas festinhas na casa de uns e de outros, para dançar e paquerar as meninas. Eram chamadas “Assustado”. Nesse tempo, ele era gozado como “moço velho”, porque preferia juntar-se aos mais velhos, que ficavam afastados dos moços ouvindo e cantando canções de Carlos Galhardo, Orlando Silva…

Um dia, numa dessas festinhas, viu pela primeira vez o cavaquinho. O homem que tocava o instrumento percebeu o interesse daquele menino, que trocava a companhia dos amigos pela dos homens que tinham idade de ser seu pai. Perguntou, Quer comprar? Beto ficou desconfiado, tímido como sempre foi, e respondeu que não tinha dinheiro. Nesse dia, usava no pulso um relógio vistoso, azul, da marca “Megalo”, que ganhara do pai. Tinha então de 11 para 12 anos. O homem fez uma proposta. Quer trocar esse relógio no cavaquinho? Volta o garoto para casa radiante de felicidade, ansioso para experimentar nas cordas do cavaquinho as notas do Brasileirinho. A bronca do pai foi plenamente compensada com o prazer de desfrutar da companhia do novo amigo. De ouvido, tentava tirar as músicas do rádio, as valsinhas de ninar, tudo que a memória infantil costuma guardar em lugar sagrado.

Já estava com 16 anos quando conheceu Dilson Reis, vizinho no bairro de Areias. Através dele, chegou a Marco César, Canhoto da Paraíba, o Conjunto Pernambucano de Choro. Chegou a Eliane Caldas, que lhe conseguiu uma bolsa no Conservatório Pernambucano de Música. Lá concluiu os seis anos de formação. E nunca mais se afastou da música. Marco César, que o apresentara a Eliane Caldas dizendo, “Esse menino não pode ser desperdiçado”, também foi decisivo para a troca do cavaquinho pelo bandolim, com um argumento irrefutável: “Se você gosta mais e toca mais Jacó do Bandolim do que Waldir Azevedo, seu instrumento é o bandolim e não o cavaquinho”.

Quando vou ao Poço das Artes, gosto de ficar numa mesinha solo, para que ninguém puxe conversa comigo enquanto me entrego à música instrumental. Mas o melhor mesmo é uma Roda de Choro, com os improvisos entre os instrumentistas, uma verdadeira jam session, inventada pelos negros americanos e aqui pelos nossos chorões, salve mestre Pixinguinha! Roda de choro como tive o privilégio de assistir na casa de Betto, anos atrás, num almoço domingueiro em que estava no Recife, para se juntar aos chorões de cá, o paulista Luiz Nassif.

As histórias e os causos são muitos e apenas comecei a contar. O título “Conversa de Cordas”, como já disse, plagiei de Betto do Bandolim, que ele usou para nomear a série de apresentações com outros instrumentos de corda naquele bistrô. Assisti à primeira, na boquinha da noite do domingo 17 de outubro passado. A conversa de cordas daquela noite foi entre Betto do Bandolim e Bozó Sete Cordas. Voltando para casa, percorrendo as tranquilas ruas arborizadas do meu amado Recife, foi nesse dia que pensei em espichar o prazer dos ouvidos com o prazer da escrita.

Além das trajetórias de vida, as histórias que são contadas nos intervalos das músicas. Se eu fosse americana, por exemplo, registraria uma que ouvi entre Wilton Marsallis e Eric Clapton no Lincoln Center de Nova York. No mesmo tom, nessa noite do dia dezessete de outubro, soube como Betto do Bandolim conheceu Bozó Sete Cordas. Foi através de José Maciel Pinheiro, tesoureiro do Banco do Brasil, também criador de gado de corte, homem de dinheiro, pandeirista não profissional, conhecido como Maciel do Pandeiro. Esse Maciel do Pandeiro morava naquela ocasião em Tijipió, onde também morava Bozó. Tão logo ouviu Betto tocar, resolveu que aquele bandolim e aquele violão tinham que se conhecer. E assim foi. E assim continua sendo.  

Antes de assistir a essa apresentação entre Bozó e Betto, eu já presenciara uma outra conversa de cordas que me levou, inclusive, a escrever uma crônica (“Viva o Chorinho”), publicada na “Revista Será?” de 16 de dezembro de 2012. Lá se vão 9 anos…  

Naquele então eu assistia às noites de Choro comandadas pelo mestre Bozó Sete Cordas no Bar Retalhos, à brisa do rio Capibaribe, na rua da Aurora. Numa dessas noites, aconteceu um improviso entre Betto do Bandolim e Vinícius Sarmento ao violão, Vinícius mal saído dos cueiros e já músico grande. Mal ouvi os primeiros acordes, abandonei a mesa da calçada onde estava com a turma de Sílvio, e entrei na sala onde os músicos tocavam. As mesas de dentro, não mais que dez ou doze, ficavam apertadas nas duas pequenas salas da casa e estavam todas ocupadas. Mas aquele era um dia de confraternização e uma cadeira vazia me acolheu com simpatia. Como costumava fazer quando ia aos sábados para assistir ao “Choro Miúdo” de Bozó, tentei abstrair o barulho das conversas para me concentrar só na música.

Num certo momento, comecei a perceber uma corrente de energia, que fosse fluindo da música, da conversa daqueles dois instrumentos, para os animados e distraídos conversadores das mesas. E aí aconteceu o milagre, nessa nossa cultura brasileira barulhenta: o reconhecimento do quão pouco podemos dizer que possa ser melhor do que a música. Com pouco, como acontece nos instantes mágicos, todas as mesas estavam em completo silêncio. Palmas aos improvisos. Momentos de êxtase.

É isso aí, queridos leitores. Até a próxima Conversa de Cordas.

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