A Mulher do Sétimo Andar saiu a caminhar como faz todas as madrugadas, sem lenço e sem documento, mas o sol não é o de quase dezembro. É o sol ameno dos dias outonais do Recife. A pele branca agradece os dias nublados. Já retornava para casa em passo rápido, quando vê o sorriso nos olhos do Pintor das Madrugadas na direção contrária. Conversam rapidamente, amenidades, pois cada um tem sua meta a cumprir na caminhada. A próxima exposição dele, as programações musicais dela… Nada mais que dois minutos. O desabafo saiu sem ela querer. Essa Mulher do Sétimo Andar é chegada a impulsos inesperados.
– Tira essa estrovenga da cara, meu.
– Qual estrovenga? Os óculos? – e tirou os óculos escuros.
– Não, homem, a máscara. A brisa do mar é suficiente para matar o vírus.
– Ah, é o hábito.
Será? Pensava a Mulher do Sétimo Andar quando retornou à caminhada. Entre vários amigos, ela percebe como um medo social, que na verdade precedeu à Pandemia, como esse medo se aprofundou em quase pânico. No calçadão, as pessoas perderam o saudável hábito do bom dia amigável. Encolhem-se ante a aproximação de seus semelhantes, como fossem estes uma ameaça. Restam os animais domésticos, únicos seres confiáveis. Doença mais difícil de curar do que o vírus.
Mas continuemos a caminhada. O fato mais recente é que uma mulher maltrapilha, originária de algum de nossos vizinhos países sul-americanos, voltou a se instalar no cagódromo de cães, a área divisória entre o calçadão e a areia da praia. Armou uma precária barraca de acampamento, junto com sua carroça de recolher lixo reciclável. Lá fez sua morada com nove cães. Na véspera, a Mulher do Sétimo Andar passara por lá muito cedo, mal o dia claro, e estavam todos a dormir, ela e os cachorros. (Ou deveria dizer, para seguir a norma do politicamente correto, cachorros e cadelas?) Logo a seguir, viu também a dormir, encostados numa barraca de coco, um homem, uma mulher, e suas tralhas. Vez em quando alguns conseguem furar o bloqueio do policiamento, montado para que a periferia não invada aquele espaço público – talvez um dos poucos na cidade inteira – destinado ao usufruto exclusivo dos ricos.
Ela sabe, a mulher dos nove cachorros, que seu tempo ali será curto, como foi em outra temporada. De algumas mocinhas caridosas e amantes dos animais, já teve até prato de comida para os cães. Mas o esquema é pesado, dona, não estrague a visão dos ricos. Eles suportam apenas a merda de seus próprios cães, não de uma cucaracha qualquer.
Porque a Recife de hoje é uma mulher maltrapilha enfeitada de joias preciosas antigas, as que conseguem se manter em pé; e os Shoppings e Empresariais, que vão convivendo como podem com a mulher maltrapilha. Basta andar com olhos para ver. Siga pela avenida Antônio de Goes, por exemplo. Nessa avenida os edifícios empresariais nascem em profusão ano após ano, seguindo o exemplo do que foi tão ousado a ponto de adentrar a corajosa Brasília Teimosa. É suficiente olhar para cima e ver todas as gambiarras da fiação da rua. Recife feia. Ou, por outra, precisar fazer uma conversão à esquerda nessa avenida. Aí vai entrar pelas ruas de trás, o antigo Pina, com seus casebres, grades enferrujadas nas portas, vendinhas, precárias oficinas de consertos de tudo e de mais alguma coisa. A borracharia na qual o marido gordo, com uma barriga de muitos anos de cerveja, sem camisa, está sentado numa cadeira de balanço, esperando pneu furado, enquanto a mulher dele varre a calçada.
E os urbanistas, coitadinhos, vão tentando como podem abrir espaços de beleza numa cidade, malgrado tudo, bela, cortada por um rio cantado por João Cabral de Melo Neto. Em vão. Se o espaço for público, a mulher maltrapilha dele se apropria, com sua feiura, sujeira, mal cheiro, cães sarnentos, cola e outras drogas de pobre. Cerca o espaço, ora, ou põe policiais a vigiar. Difícil conseguir tão grande frota de segurança. E assim caminha Recife.
Que delícia de crônica. Saudade!
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muito bom te saber leitora, aí na bela Boston. Beijo
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