Papéis acumulados

“Minha querida Teresa:

Nos últimos tempos, ando rasgando papéis acumulados muitos anos e que, de repente, nem sei por que guardei. Entretanto surge, vez em quando, belas compensações, e uma delas trouxe-me um verdadeiro alumbramento.

Encontrei – guardadas por Dulce – algumas mensagens que recebemos quando do nosso casamento em 1949 e lá se vão 67 anos decorridos. Entre elas, uma se destaca, além do carinho e atenção que a reveste.

A surpreendente verve poética de um querido amigo e médico dedicado chamado José Antônio Sales de Melo (Doutor Sales), expressa num singelo cartão que reproduzo para você e toda a família (claro que o original é muito importante e guardarei). Observe que, pelas circunstâncias, a sua inspiração foi lépida e pronta. Já se vê que suas competências iam muito além da medicina!

Beijão afetuoso para todos de Ivan Rodrigues.”

No verso do minúsculo cartão de visita do médico está escrito:

“Ivan:

Minha profissão é de escravo! Um chamado ingrato tirou-me o prazer de assistir ao seu casamento. Mas, enquanto trabalhava, meu pensamento estava com você e Dulce junto do altar, desejando-lhes as melhores felicidades. E nessas divagações surgiu esta quadrinha para vocês:

Que a vida seja de encanto / Pra Ivan e sua amada / E Deus lhes cubra com seu manto / Da ventura desejada.

Garanhuns, 7.7.49”

***

A comemoração (em memória) dos 100 anos de meu pai, pelos familiares e amigos, aconteceu, primeiro, no Mosteiro de São Bento de Garanhuns. Houve uma missa, celebrada por Dom Gerardo Wanderley, àquela altura, 2005, já velho e ainda mais afiado nas palavras. Contou algumas histórias do Dr. Sales, que era um grande contador de histórias. Da velhinha, paciente dele desde sempre, no leito de morte pedindo para o Doutor Sales chamar o Prior do Mosteiro para a extrema unção. Confessou-se, recebeu os últimos sacramentos e houve um diálogo com o velho monge.

– A senhora quer ir para o céu?

– Quero Dom Prior. Mas não tem avexame não.

Em Garanhuns há um hospital infantil de referência para a região do Agreste Meridional de Pernambuco. Chama-se Hospital Palmira Sales. Fez parte das comemorações uma visita a esse hospital, onde foi descerrada uma placa e duas pinturas à óleo, uma de minha avó Palmira, a outra de meu pai.

Aquele hospital nasceu de um Ambulatório mantido pela paróquia da Boa Vista de Garanhuns, um bairro alto da cidade. Nos anos quarenta e cinquenta do século passado, aquele bairro era de moradias modestas, carentes de serviços médicos. Antes de começar a atender no Consultório, às nove horas da manhã, o Doutor Sales, das sete às nove, dava consultas gratuitas naquele Ambulatório. O Padre Matias, um holandês que adorava cerveja, era o pároco da Boa Vista. Ambicioso, começou a elaborar um plano para transformar o ambulatório em um hospital infantil. O Doutor Sales comprou a ideia. Acrescentou a seus muitos expedientes de trabalho, os contatos com empresários que se dispusessem a contribuir para a construção do hospital.

E assim foi feito. Lembro que fomos todos de casa para o dia da inauguração. Era uma daquelas noites invernosas de Garanhuns. Eu e minha irmã mais nova vestíamos capa de frio branquinha de lã, feitas pelas mãos de artista de minha mãe. Ambas dormimos no colo dela, enquanto duraram os enfadonhos discursos. Voltamos para casa dormindo no mesmo colo, aquele sono bom de menino pequeno, que desejaria que a viagem de carro nunca acabasse, e pudesse ficar dormindo a noite inteira naquele colo quentinho e balouçante.

Ficaram as histórias de meu pai, patriarca, sentado à cabeceira da mesa às refeições de casa, deliciando-se em ter ouvintes para os causos que ele contava. O discurso do prefeito: Em nome do município, ele agradecia a colaboração do Senhor Vitta, ali representando também seu irmão que não pudera comparecer, o Senhor Fratelli.

***

A notícia da morte de Ivan Rodrigues levou-me a essas reminiscências. Fui cascavilhar um arquivo gordo ao qual havia nomeado “Vestígios”. Obrigada, Ivan, por me fazer revisitar esses vestígios.

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10 de abril de 2022. Minha mãe estaria completando hoje 107 anos.

Ontem seus quatro filhos ainda vivos – morreu Plínio – se reuniram na casa de Teresa. Estavam todos ansiosos por aquele almoço, marcado para uma hora da tarde. Denise ligou ao meio-dia, já pronta, quando Teresa ainda ia tomar banho. Chegou pouco depois. Totonho também chegou antes da hora. E Rosa, pela primeira vez desde o início da temporada recifense, tomou o café da manhã antes da hora costumeira (meio-dia), contentando-se só com as frutas.

Quando a anfitriã chegou à sala, já estavam todos muito bem acomodados: Rosa, no lugar que ela escolheu como seu, um certo recanto do sofá com vista para o mar; Totonho na rede; Denise entre os dois, no outro sofá. Teresa sentou-se na poltrona. Reinou o espírito da casa de Garanhuns, da casa dos avós em Bezerros. As histórias de família foram motivos de riso. Não houve cobranças porque ao passado nada se cobra. Vivemos uma epifania.

2 comentários em “Papéis acumulados

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