Fragmentos de duas cidades

Ela chegou às 12:30 no hotel, nem tirou as roupas da mala. Esquina da rua da Consolação com a avenida Paulista. Bancas de revista com mil bugigangas, mas também com o Estadão, a Folha de S. Paulo e o Valor Econômico. Senta-se num café, pede uma porção de pão de queijo e um chocolate quente. Vai sentindo um prazer antigo, do tempo em que lia jornais em papel, em que o jornal trazia as programações da cidade. O cardápio é em QRcode, mas ela não precisa consultar, sabia muito bem o que queria.

            Como o Estadão diminuiu de tamanho… Somente uma página de “Cultura e Comportamento”. Soube então que aquela sexta-feira 5 de maio era o Dia Internacional da Língua Portuguesa. Chico César no Museu do mesmo nome.

            A Mulher do Sétimo Andar pensa: até agora não precisei usar nem aplicativo, nem login, senha, queerrecoude, nada disso. Que maravilha! Sentiu um conforto… Como se estivesse, naquela tarde friazinha e ensolarada do outono paulistano, visitando o tempo da pré-informática. Para completar o sabor de velho, chamou um taxi na rua estendendo o braço.

            Ao chegar no Museu da Língua Portuguesa, já não havia ingressos. Queria o que, mulher? Estamos em São Paulo. Há que marcar quase tudo com antecedência.

            Já anoitecera. Ir a pé até o metrô seria uma temeridade naquele centro de cidade antigo. Aí o acaso veio a favor. Um taxi para, e ela aguarda que a passageira pague a corrida. Espia a mulher que desce do taxi. “Mas você não é a Vilma Motta?” O dia de encontro com o passado prosseguia. Um abraço de reconhecimento. Cada uma catando na lembrança fragmentos. “Vai ver Chico César? Os ingressos estão esgotados.” “Sim, mas eu sou convidada, minha filha é diretora do Museu.” Ficaram uma fração de minuto ali paradas na calçada, meio sem jeito. Esses encontros trinta anos depois nos levam a ver no corpo da outra pessoa o estrago que o tempo faz no corpo d’agente. “Se eu vou de mãe, você vai de tia.” Segurou o braço da outra, e com pouco estavam sentadas nas primeiras fileiras do auditório.

            A Mulher do Sétimo Andar pensou: São Paulo ainda é minha casa.

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Quando caminha pela avenida Paulista, a Mulher do Sétimo Andar às vezes sente que está em outro país, porém onde todos falam português.

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Terça feira é dia de casa cheia no MASP: entrada gratuita. Jovens, colegiais, gente humilde, uma paisagem humana mais diversa do que o verniz costumeiro. A exposição de Gauguin, nomeada pelos curadores “o outro e eu”, retrata paisagens e personagens do Taiti. E os curadores pedem desculpas pelo artista. “É evidente que suas pinturas erotizam o corpo da mulher indígena, enfatizando uma suposta disponibilidade sexual aos olhos e às tintas do homem branco europeu.” Essa onda identitária, meus queridos leitores, costuma passar ao largo da história. Afinal, com que outros olhos Gauguin pintaria aquelas lindas mulheres senão com os dele? E no que a sensualidade jamais brigou com a arte, senão que se somou ao belo? Ora, senhores curadores, menos.

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“Marc Chagall, Um sonho de Amor”, no CCBB. Como se voássemos pelos andares daquele prédio antigo, acompanhando os animais e as figuras oníricas e surrealistas de uma pintura que é pura poesia, e na qual essas duas formas de expressão artística se fundem.
Houve um tempo em que eu tinha duas cabeças
Tempo em que esses dois rostos
Se cobriam de um orvalho amoroso,
Entrelaçados como o perfume e a rosa
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No primeiro domingo paulistano, a Mulher do Sétimo Andar passou a manhã no Museu do Futebol, que até hoje não conhecia. Demorou-se em cada uma das salas, repassou a própria vida em cada uma das Copas, viu os gols de Garrincha e Pelé. Mas sabem o que ela mais gostou de apreciar? Os papais de todas as idades mostrando o museu aos filhos ou netos. O Dia dos Pais devia de ser comemorado no Museu do Futebol.
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São Paulo é melhor para passear do que para morar. Bom para tomar um banho de cultura, rever o filho, a nora, os amigos, gastar dinheiro nos restaurantes italianos. Esse podendo ser a Trattoria do Sargento, o nordestino mais italiano de São Paulo. Severino Barbosa da Silva, aos 17 anos, já casado com Damiana, era mais um migrante nordestino que saía de Timbaúba, no interior de Pernambuco, para tentar a sorte no Sul maravilha. Consertou cascos de navios em estaleiro do Rio de Janeiro, fritou bolinhos de bacalhau no bairro de Santa Teresa, e desde o começo acalentou a ideia de ter um negócio próprio. Já com quatro filhos, morando em São Paulo, e depois de um longo périplo como cozinheiro por vários restaurantes, finalmente está hoje nos jardins paulistanos, onde se come, para além das fartas massas caseiras, a melhor salada da cidade.    
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Mas bom mesmo é olhar pela janela do avião quando o piloto avisa o pouso iminente no aeroporto dos Guararapes. De volta pra casa. Desde o dia em que a Mulher do Sétimo Andar pisou no solo deste mesmo aeroporto em 2006, de mala e cuia, nunca ninguém mais lhe perguntou, “mas de onde mesmo você é, com esse sotaque?”A identidade não é somente de idioma. É também de sotaque.

             No poema de João Cabral “De um Avião”, ele traça em círculos os momentos de decolagem. “Está o Ibura onde coqueiros, / onde cajueiros, Guararapes./ Contudo já parece / em vitrine a paisagem./ O aeroporto onde o mar e mangues,/ onde o mareiro e a maresia. / Mas ar condicionado, / mas enlatada brisa. (…) No segundo círculo, o avião / vai de gavião por sobre o campo. / A vista tenta dar / um último balanço. (…) eis os arrabaldes, dispostos / numa constelação casual; / eis o mar debruado / pela renda de sal; / e eis o Recife, sol de todo / o sistema solar da planície / daqui é uma estrela / ou uma aranha, o Recife, / se estrela, que estende seus dedos, / se aranha, que estende sua teia: / que estende sua cidade / por entre a lama negra.

            Josué de Castro, em um ensaio de índole sentimental, também se debruçou poeticamente sobre a cidade vista do alto. “Na contemplação de cada coisa – seja um quadro, um rosto, ou uma cidade – há sempre uma perspectiva ideal, através da qual o objeto contemplado exibe a sua mais rica aparência. (…) Descobre-se a perspectiva ideal, acolhendo com amor todas as inúmeras imagens que atravessam indecisas a porta de nossa pupila ávida e sentindo com emoção e fremente borbulhar do universo de formas que se vão ordenando, em consequência, na nossa consciência.”

            Compara o olhar para outras cidades, como Nova York, Rio de Janeiro e Salvador, que são mais bem contempladas de baixo para cima. Outras, das profundidades dos vales, como Tasco ou Granada. Outras ainda em seu próprio nível, como Paris e Chicago. “O caso do Recife é diferente. A cidade só se deixa captar na unidade de sua expressão urbana, quando vista do alto dos aviões em sua perspectiva vertical. É das alturas das nuvens que se recebem todos os eflúvios de sua poesia urbana, subindo violentamente através da atmosfera varada em todos os sentidos pelos reflexos da luz sobre as águas. Cidade construída numa planície encharcada, formada de ilhas, penínsulas, alagados, mangues e paúis, envolvidos e salpicados por manchas d’água por todos os lados, é impossível captar-se a expressão de seu rosto, do nível do solo ou do mar.”

            Já no taxi, a Mulher do Sétimo Andar pede ao motorista que tome o caminho da Orla. Ao avistar o verde esmeralda, pede ainda, por favor, nada de ar condicionado, vamos de mareiro e maresia. Ah, o cheiro da maresia…

           
 
 

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