Viva São Pedro!

Seis horas da manhã. O dia amanhece nublado e chuvoso. A Mulher do Sétimo Andar ouve o foguetório para as bandas de Brasília Teimosa, e se lembra que hoje é o dia de São Pedro. Recordou quando escreveu as primeiras crônicas, um Diário do Pina. Naquele tempo (disse Jesus a seus discípulos. Sim, e Pedro foi um dos primeiros, entre os pescadores. Largou tudo para seguir o Mestre, e depois se transformar na pedra sobre a qual se edificou, para o bem e para o mal, uma igreja).

Naquele tempo, dizia a mulher, o das primeiras crônicas, explorou cada pedaço desse Pina – que nasceu como morada de pescadores, até ser descoberto pelo judeu holandês, que atravessou de barco da Ilha do Recife para cá, e iniciou um comércio, fez crescer o lugar e deu origem ao nome que se mantém desde o tempo holandês no Brasil até hoje. Por isso, quando alguém lhe pergunta se mora em Boa Viagem, faz questão de logo corrigir o interlocutor: Não, moro no Pina, e não na Boa Viagem edificada para deleite de usineiros. A Mulher de Sétimo Andar não gosta muito dessa raça usineira, que carimbou tão forte a marca escravagista entre nós.

O Diário do Pina ficou para aquela mulher como um farol para suas caminhadas. Algumas pessoas, de quem nem sabe o nome, com as quais cruza por vezes no calçadão, são para ela velhos conhecidos, pois se transformaram em personagens de seus contos.

Quando principiou a explorar a praia de Brasília Teimosa, caminhando pela orla da avenida Brasília Formosa, gostava de sentir o contraste entre os prédios do calçadão do Pina-BoaViagem, com aquele outro calçadão, menos nobre, mais mal cuidado, porém com o brinde à vista e à audição. Lá o mar está bem pertinho, segurado por pedras para não invadir a calçada. Se as ondas estiverem raivosas, respingam nos poucos caminhantes. (São poucos porque os de lá preferem atravessar a barreira das classes sociais, e vir caminhar no calçadão Boa Viagem, cartão de visitas da cidade). As casinhas remediadas, dispostas em ruas irregulares daquele bairro, transportavam-na para uma infância na qual conviveu com paisagens semelhantes.

Foi na madrugada de um 29 de junho chuvoso como o de hoje, que ela descobriu de onde vinham os foguetes. Naquele dia, amparou-se da chuva num quiosque próximo à praça de São Pedro, vizinha à Colônia dos Pescadores. Viu chegar o arcebispo de Olinda e Recife para celebrar uma missa campal, à qual se seguiu uma procissão de jangadas em homenagem ao padroeiro dos pescadores. E nunca mais deixou de mandar nesse dia uma mensagem ao filho paulistano, parabenizando-o pelo dia do onomástico, tão comemorado entre os ibéricos quanto o aniversário de nascimento.

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A chuva não dá trégua. A sexta feira, despedindo-se do mês dos santos festeiros, amanhece de novo debaixo d’água. De onde escreve, a Mulher do Sétimo Andar vê o mundo de fora nublado pelos pingos da chuva nos vidros das janelas. O barulho das rodas dos automóveis na avenida molhada suplanta o que seria o dos motores. Menos mal. Porém ambos encobrem igualmente a suavidade das vagas do mar beijando a areia. Do mar, ela vislumbra apenas o véu branco das ondas de um oceano sem cor.

            O que é transtorno nessa cidade ao nível do mar, cortada por rios, temerosa de que chuvas torrenciais ocorram junto com a maré alta, é festa no Sertão. Ah, as festas juninas! Aqui sim, em nosso inverno chuvoso e úmido, pode-se acender fogueira sem perigo de incêndio. A fogueira com a qual Isabel anunciou à Maria o nascimento de João. A fogueira para entreter o diabo fora de casa, para Ele não invadir nossa festa. A festa mais menina de todo calendário cristão, a inocente festa de São João.

            Seu João era um morador vaqueiro da Fazenda Bálsamo, no Agreste pernambucano. Ao se aposentar, ainda com força de trabalho e filhos de ajutório, resolveu-se a ir trabalhar em terras de Goiás. Quando a Mulher do Sétimo Andar (nos idos em que saía por esses rincões entrevistando o povo) quis saber por que ele voltara, quando lá estava tão bem de vida, o motivo foi um só: Dona moça, a senhora já viu um povo que não acende uma fogueira na véspera de São João?  

            Ano após ano, a Mulher do Sétimo Andar vê as festas juninas se afastarem das fogueiras, dos balões, dos lindos fogos de artifício. O palco e as apresentações de shows invadiram o arraial. Procura-se, como agulha no palheiro, onde encontrar apenas uma zabumba, um triângulo, uma sanfona e o império do rei do baião. Ah, a Banda de Pífanos do negro Malaquias…

            Certa feita, um doutor, dono das terras onde morava Seu Malaquias, quis saber dele se conhecia o hino nacional. Sim, sinhô. E sabe tocar? Sei, sim sinhô. Foi num dia de festa. No alto da fazenda, ia ser erguida uma cruz. Antes, num altar improvisado, tal como a Mulher do Sétimo Andar veria muito tempo depois na praça de São Pedro de Brasília Teimosa, seria celebrada uma missa campal. O Padre Miguel era o celebrante. Tudo correu bem até o clímax da festa. Depois da missa, enquanto se erguia o cruzeiro para implantá-lo no morro, Seu Malaquias, com a sua banda de pífanos, deveria tocar o hino nacional brasileiro. E ele tocou. Tocou um frevo, o hino dos Vassourinhas.

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