“O Largo do Boticário é um famoso largo localizado no bairro do Cosme Velho da cidade do Rio de Janeiro. O acesso se dá por um estreito beco – o Beco do Boticário – que passa sobre uma pequena ponte sobre o rio Carioca. O espaço caracteriza-se por sua exuberante vegetação de Mata Atlântica e pelos casarões em estilo neocolonial”. É o que diz a Wikipedia.
Estou aqui no Rio de Janeiro para completar uma pesquisa sobre os chorões do Recife. Tenho por hábito fazer minhas entrevistas no local sugerido pelo entrevistado. Prefiro a casa. A casa espelha sem palavras muito da pessoa. Talvez seja o espelho mais fiel do pertencimento de classe social. Mas nessa pesquisa tenho tido experiências que, se não ajudaram muito na qualidade do som gravado, acrescentaram em curiosidades. No Recife, uma das entrevistas, com Amaro Filho, foi no Parque Treze de Maio, sentados num banco duro de madeira sob a luz de um lampião, quando começava a escurecer num final de tarde aprazível e fresquinho, como é o Recife. Na transcrição da entrevista, ouve-se ao fundo umas crianças brincando e a mãe ralhando com elas vez por outra. Quase um fundo musical para uma entrevista sobre música.
Ontem à tarde, quinta feira 23 de novembro de 2023, foi a vez de Maurício Carrilho na Adega Portugália, no Largo do Machado. Um legítimo boteco carioca. Cheguei pontualmente às 3 da tarde, hora sugerida por ele, quando já teria serenado o burburinho do almoço. Encontrei-o sentado numa das mesas da área coberta do terraço, ventilador ligado, poucos fregueses. Não foi difícil reconhecê-lo, quando correspondeu ao meu sorriso.
Na hora em que já ia abrir o gravador do celular, principiou uma música no restaurante. Maurício sugeriu que eu visse se na área de dentro estaria mais silencioso. Estava. Mas, ao retornar, ele já havia feito um acerto com o garçom para abaixar o som. Afinal, estamos no Brasil, não é?
Ele me esperava tomando uma água mineral com gás. Pedi uma sem gás. E a entrevista transcorreu bem, por duas horas. Instigado pelas minhas questões, Maurício foi desenrolando o novelo de sua vida artística, uma riqueza de memórias. E, já pelo meio da prosa, quando ele quis saber qual era a minha, vi-me explicando com tais detalhes, que é como se já estivesse principiando a escrever o livro. A longa jornada de cinquenta anos de pesquisadora me faz ver hoje, que a situação de entrevista é o grande “laboratório” do sociólogo. Numa boa entrevista a gente não apenas colhe informações, como sistematiza as próprias ideias.
Às tantas, o garçom sugere um chopp. Por uma coincidência, falávamos sobre o mestre Meira. Vamos de chopp bem gelado e brindamos ao mestre, com quem Maurício teve as melhores aulas, com 12, 13 anos de idade. Acabado o tempo regular de aula, uma hora, uma hora e pouco, o Meira dizia ao jovem aprendiz: acabou a aula, agora vamos tocar. E trazia cervejas, dois copos, sem hora para terminar. Seriam mais duas, até três horas de um longo recreio, em que continua-se aprendendo e, quiçá, o mais importante: a criatividade, o improviso, deixar afluir a potencialidade artística de cada um. E foi assim que Maurício Carrilho se iniciou no violão e muito mais, com o Mestre Meira, Jayme Tomás Florence, esse maravilhoso violonista, compositor e professor de música nascido em Paudalho em 1909, e que formou tantos grandes na cena do choro brasileiro.
Eu acabara de desligar o gravador, quando chega o filho de Maurício vestido com as cores do Flamengo. Iriam juntos assistir ao jogo daquela noite no Maracanã. Hora de pai e filho tomarem um rumo e eu também.
O tempo havia mudado. Ventanias balançando as frondosas árvores defronte da Adega Portugália anunciavam tempestade. O primeiro Uber previa dezenove minutos de espera. Cancelei e chamei outro. Vinte minutos. Melhor esperar. Naquele horário e com aquele tempo não seria fácil. Maurício e o filho sugerem enfaticamente o metrô, mais rápido, livrando-se do trânsito terrível de final de expediente. Mas é nos percursos de carro e não embaixo da terra, feito tatu, que eu posso apreciar a beleza dessa cidade maravilhosa. Prefiro pagar o preço.
O caminho pelo Cosme Velho, Laranjeiras, é lindo! O motorista é um senhor de quem vejo, pelo retrovisor, um rosto cheio e alegre. Cabelos grisalhos, dirigindo calmamente num engarrafamento que quase não anda. Ao final da viagem, quando ele se virar para trás para nos despedirmos com um forte aperto de mão, ficarei sabendo que seu nome é Carlos Viegas e tem 68 anos.
O homem é um carioca apaixonado pela cidade. Vai mostrando cada prédio antigo pelo caminho, casarões coloniais, o Instituto Nacional de Educação de Surdos, a Bica da Rainha… Pergunta se eu conheço o Largo do Boticário. Estamos nos aproximando de lá. Ele me olha pelo retrovisor: a senhora se importa de perder mais uns minutinhos nessa corrida (na verdade, corrida de tartaruga) para conhecer esse Largo?
A chuva começara a cair. Não trovoada, como anunciavam os ventos. Uma chuvinha leve, benfazeja, para aplacar o calor. Ele para o carro dentro do Largo, pega uma sombrinha velha e vem abrir a porta para eu descer. Do pátio dá para observar melhor os casarões. Vamos caminhando poucos metros até a pontezinha do Beco, por onde passa o pedaço descoberto do Rio Carioca, correndo por sobre pedras, lembrando para mim os fiozinhos de rios que correm em Gajate, o torrão de terra na Galícia de Espanha dos ancestrais de meus filhos. Ao fundo daquele pedaço de rio descoberto, ele me mostra uma escadaria por onde as lavadeiras de outrora vinham lavar roupas, quando esse rio era de águas límpidas e corria solto pela cidade. Hoje, coitado, tem o destino dos metrôs, andando, quase sem fôlego, nos subterrâneos da terra, até se soltar no mar da praia do Flamengo.
Melhor da crônica sobre a genuína rotina carioca. Adoro os seus textos, Teresa!
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Obrigada, Fred. Aguardo a sua volta à nossa revista. Grande abraço,
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