Feliz Natal

Meus queridos amigos,

Eu e a Mulher do Sétimo Andar viemos hoje aqui desejar a vocês um Natal colorido e cheio de luz. As luzes e as cores do Natal cristão e do Natal pagão.

            Ontem a Mulher do Sétimo Andar saiu a passear na boquinha da noite, para apreciar os enfeites de natal na rua, nos três jardins e nos prédios da avenida Boa Viagem, onde mora. O público que frequenta o calçadão a noite, os caminhantes noturnos, é diverso do público das madrugadas. Há uma certa mistura dos que se exercitam com os que passeiam, como passeavam antigamente os casais nas calçadas das casas. As do Recife. As de Garanhuns.

            Ontem predominavam os passeantes, por causa das luzes de Natal. Lá vão eles atravessando a avenida na altura do Segundo Jardim. Devem ter acabado de cear em casa, aquele sossego de meninos de barriga cheia. Além dos dois meninos e da menina menorzinha, um deles ainda puxava o cachorro pela coleira. E vão direto para o mesmo destino da Mulher do Sétimo Andar: o presépio lindo, dos mais bonitos que já viu. Ergueu-se uma espécie de pequena capela dourada, posto que a cobertura é toda de luzinhas, e dentro dela a lapinha. Figuras esculpidas em barro natural, ao estilo Tracunhaém (talvez sejam de lá mesmo), representam o menino Jesus na manjedoura, Maria, José, os reis magos, um pastor carregando uma ovelhinha no colo, e os animais que estavam presente no nascimento do menino, a vaca, o burro, as ovelhas.

            As renas voadoras, a neve, o papai Noel, e as macaquices importadas dos americanos, esses ficaram confinados aos Shopping Centers, que afinal não são assim nomeados em vez de Centros de Compras à toa. Nessa praça do Segundo Jardim de Boa Viagem, o destaque é para a tradição do presépio. Essa é mesmo uma função importante do poder público: preservar o patrimônio cultural, a cultura popular. Talvez Ariano Suassuna tenha deixado seu carimbo muito bem azeitado, do tempo em que foi Secretário de Cultura dessa cidade e desde antes, desde sempre.

            E a boniteza da iluminação da avenida Agamenon Magalhães, do novo parque das Graças, à beira do rio Capibaribe, do Recife Velho, com a iluminação das antigas ruas do tempo dos holandeses que convergem para o Marco Zero da cidade? O moço prefeito é sabido: em ano eleitoral, luzes e cores no Natal e no carnaval, eleição garantida.

            Ih, dona moça, não vá estragar essa crônica com política.

            A Mulher do Sétimo Andar adora essas festas de Natal de rua. Claro, é como reviver simbolicamente o que foi o Natal de sua infância, quando a família saia de Garanhuns para Bezerros, passar as festas na casa dos avós paternos. Era um Natal católico. Quase rural. Não havia árvore de Natal no casarão de perto da estação de trem. Antes de sair de casa, com roupa nova para o grande evento natalino, a Missa do Galo, ceava-se. Queijo do reino, pastéis de festa e filhoses feitos pela avó, que herdara a tradição da bisavó casada com português, que soube fazer dinheiro no Recife e casou bem a filha com herdeiro de terras pecuárias.

            Para os pequenos, o prazer supremo era ganhar o dinheirinho para andar de carrossel, de onda, de roda gigante, e o mais rústico e melhor de todos os brinquedos de rua, para o qual havia muitas recomendações dos pais: tomar cuidado com a barca. Comer goloseimas, tomar guaraná. E ver o presépio de tia Lilía, irmã mais velha do avô. Isso não era privilégio da imensa família, que talvez fosse metade dos habitantes daquela pequena cidade encravada no Agreste pernambucano. A porta da sala de dona Lilía, que dava para a rua da Matriz, ficava aberta em todo ciclo natalino para ser visitada por todos. Não carecia nem pedir licença para entrar na sala. E seria um brinde se dona Lilía, que só morreu aos 106 anos com quase todo tino, viesse até o visitante para receber os cumprimentos e o elogio pelo presépio, que esse ano tinha ainda mais bichos – era quase um zoológico – do que no ano passado. O presépio ficaria ali exposto até o dia 6 de janeiro, dia de Reis, quando ocorre a cerimônia da queima da Lapinha (ou guardar tudo para o próximo ano).

            No Recife há ainda uma comemoração simbólica, uma caminhada pelas ruas centrais da cidade para a queima da lapinha no seis de janeiro, acompanhada de bandas de música que, como tudo nessa terra, acaba em frevo.

            Igual ao sábado passado. A Mulher do Sétimo Andar havia recebido um convite para uma Cantata de Natal em frente ao Paço do Frevo. Quando chegou lá, não havia mais lugares nas cadeiras, dispostas em frente a um palco montado defronte do antigo sobrado que abriga aquele museu, na Praça do Arsenal da Marinha. Viu que na segunda fileira havia uma cadeira guardada por uma bolsa. Cara de pau, perguntou se a pessoa ainda viria. A senhora desocupou gentilmente a cadeira e ela se sentou em posição estratégica para assistir. O público predominante era de famílias, crianças de colo ou buliçosas, de todas as classes sociais. A cultura popular tem esse dom: junta as classes no mesmo contentamento. E, de quebra, espanta a violência urbana.

            Filmou precariamente, com os recursos que domina no celular, um pouquinho de cada uma das apresentações. Estava em estado de graça. Ao relento, com a brisa do Recife refrescando o ambiente sem precisar dos malditos ar condicionados. O maestro Marco César, tal como nas óperas, não foi destaque para se ver, mas para se ouvir, tocando dentro da sala. Apareceu apenas junto com todos os componentes da orquestra, ao final, para os agradecimentos. As mulheres do coral Edgar Morais ficaram postadas, vestidas de branco, nas janelas do prédio, entoando as músicas. Vieram ao palco algumas vezes. Da larga porta de entrada iam saindo os performáticos de cada um dos atos. Destaque para músicas de nosso Capiba. Uma delas, em performance do Recife de outrora, do tempo dos lampiões. Também músicas de pastoril, que se apresentou apenas com as principais figuras: a mestra do cordão azul, a contra mestra do cordão encarnado, a diana, a borboleta, o anjo, e o velho.

(Dos pastoris da igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, aquela festa de largo que antecedia o Natal pelas cidades do Nordeste, e era fonte de um dinheirinho para a paróquia, ficou-me uma frustração: meu pai nunca deixou que eu dançasse no pastoril, onde estavam várias de minhas colegas de escola. Mesmo sendo uma festa católica, as meninas mostravam as pernas ao dançarem. Já nem digo mestra do cordão azul, que sempre torci pelo cordão azul, mas que eu fosse ao menos a última pastorinha das seis ou sete que dançavam atrás da mestra…)  

A Mulher do Sétimo Andar selecionou três fragmentos do que viu e ouviu, para compartilhar com alguns amigos de São Paulo. Não podia guardar só para si e para os que já conhecem, essas festas tão lindas. Selecionou o pastoril, o rei e a rainha do Maracatu cantando a música de Natal brasileira mais bonita, de Assis Valente; e um Frevo de Bloco para encerrar, que aqui tudo acaba em frevo, muito antes de tudo acabar em pizza.

E uma amiga querida, legítima paulistana que curte a cultura popular nossa e adora o Maracatu no carnaval, comenta: “É uma Cantata de Natal, mas o figurino é todo pagão. O rei e a rainha do Maracatu cantam a música do Papai Noel. Eis uma boa amostra do sincretismo da cultura popular. Saudade de Recife! Que inveja dessas coisas que acontecem por aí!”

2 comentários em “Feliz Natal

  1. Essa não é apenas uma crônica. É uma viagem que eu faço ao meu passado de criança, em Garanhuns ou Arcoverde, pegando carona nas palavras da mulher do sétimo andar. As palavras dela dançam, cantam e encantam. Palavras que têm sabor, às vezes levemente picantes, o suficiente para despertar meus neurônios de sua letargia. As palavras dela deixam sempre um gostinho de quero mais. Fica aqui o meu agradecimento à mulher do sétimo andar, enquanto aguardo a sua próxima crônica, desejando-lhe um Feliz Natal. Tão feliz quanto o que ela descreve na crônica de hoje!

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