Somos todos animais

17 de outubro de 2024

A gente não costuma se lembrar disso. Que um dia já andamos de quatro patas. Antes de ontem essa lembrança foi decisiva, para a Mulher do Sétimo Andar não levar uma queda dentro do mar. Vinha ela de uma caminhada pela areia. Na volta, depois de andar cerca de meia légua (pouco menos de 3 km), parou em frente às jangadas para tomar a maçaranduba das águas. Sargaços no rasinho, antes de um suave quebra-mar. Condição ideal para um mergulho.

Foi até as jangadas. Já passara a hora de pescadores por ali, a quem confiar a guarda de shorts, tênis, chapéu e óculos escuros. Mas o mar chamava por ela. Subiu na jangada mais próxima. Olhou para os lados e para trás. Nenhuma pessoa nem bicicleta suspeita, que a visse se desvestindo. Guardou tudo numa maloca que existe, quase esconderijo, embaixo do banco da jangada. E foi ao mergulho.

Já sabia o caminho certo para seguir por terra, desviando das pedras. Ali no raso tubarão não chega. Atravessou a barreira de sargaços grudando pelo corpo, e chegou ao levinho quebra mar, desses que não atrapalham a gente ficar boiando. Dia nublado. Perfeito. Se você passar dois minutinhos com o corpo totalmente entregue ao peso das águas, como fosse uma cama de colchão macio, e tirar da cabeça todos os pensamentos, terá ganhado seu dia.

Na volta, se esqueceu que o movimento das águas a teria desviado do curso da ida. E se viu pisando em pedras – os arrecifes que nomeiam a cidade. Mesmo sutil, as pequenas ondas lhe tiravam o equilíbrio em pé. A adrenalina rapidamente foi mobilizada com o susto. E pensou na sua gatinha Milu. Com muito cuidado, foi se abaixando, e, até encontrar de novo terra firme, caminhou como nossos ancestrais.

A única sequela foi um talho próximo ao dedão do pé, enquanto andou feito gente. Mas nada que a Água Rabelo, uma mistura milagrosa de aroeira, hortelã e eucalipto, não curasse. (Marco Cézar guarda uma foto histórica para o Chorinho, tirada por Nuca Sarmento, dele, ainda com cabelos na cabeça, junto com Raphael Rabello, embarcando num fusca na Praça Maciel Pinheiro, no Recife, a caminho da Paraíba. Estavam indo visitar a produção da Água Rabelo, fabricada desde 1889.)

Voltando aos nossos ancestrais. Um cientista japonês, que estuda há mais de 40 anos os chipanzés, foi entrevistado por um jornalista americano com a seguinte questão: por que nos tornamos humanos e os chipanzés não? Por que não desenvolveram uma linguagem, como nós? Em qual momento aconteceu essa separação?

Ao que o cientista explicou. Alguns chipanzés eram mais fortes e continuaram morando na mata, em cima das árvores. Os mais fracos, que resultaram em nós, humanos, fomos expulsos da floresta, e descemos para o perigoso habitat no solo, submetidos à ameaça dos perigosos animais carnívoros.

Em suas pesquisas, o cientista japonês demonstrou a extraordinária memória dos chipanzés. Se pressentem algum perigo na mata, rapidamente contam os inimigos, antes de tomar uma decisão sobre permanecer no território ou fugir.

Na evolução da espécie, nós perdemos parcialmente essa capacidade, em troca de uma nova função: a linguagem. O cientista afirma que talvez memória e linguagem, na forma mais rudimentar, fossem localizadas em partes vizinhas do cérebro. Para expandir a área da linguagem (que usamos primitivamente, para colaborar uns com os outros, enquanto grupo, e assim nos protegermos do perigo), perdemos muito da memória em favor da linguagem.

Nessa troca, saíram favorecidos os humanos, claro. A imaginação substituiu o aqui e agora dos chipanzés. Conseguimos pensar no futuro de filhos, netos… Os chipanzés não têm essa capacidade, que permite o planejamento do futuro. Vivem apenas o momento presente; e são capazes de decisões muito rápidas, graças à sua memória privilegiada, comprovada pelo cientista em experimentos com humanos e chipanzés com jogos de memória.

A diferença entre nossos mundos é sobretudo a imaginação. A capacidade de criar imagens antecede inclusive a linguagem: os cheiros, os sabores, aparecem no bebê muito antes das palavras. O que acontece quando a gente sonha, fechando a porta da consciência? Libera o inconsciente, que produz imagens.

A Mulher do Sétimo Andar é assim, vocês já sabem. Entra por uma perna de pinto e sai por uma de pato. Saiu da imagem de sua gatinha, lembrada para evitar uma queda, passou pela Paraíba, na memória de Raphael Rabello, para, por fim, dissertar sobre a teoria de um cientista japonês, de quem sequer anotou o nome. Pensando bem, tudo faz jus ao título da crônica. Somos todos animais.

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