Edifício Santo Albino

22 de dezembro de 2024

Foi no último dia de novembro passado. Verão chegando com todas as cores vibrantes do amarelo e do alaranjado. Dos azuis. Verdes das águas dos rios, das águas do oceano salpicadas de pedaços dourados de sol. De Uber, ela percorre beiras de cais. José Estelita. Santa Rita. Quando o automóvel adentra as ruas centrais da cidade, no bairro de Santo Antônio, a Mulher do Sétimo Andar principia uma viagem no tempo por aquelas ruas velhas. Já ao início da caminhada, após a visita à Capela Dourada, a assombração do Recife de outrora continuou perseguindo a Mulher do Sétimo Andar, como se fosse uma sombra maior que ela.  

Naquele dia, a caminhada domingueira de Francisco Cunha ia visitar o Recife Barroco das igrejas. Para atender aos horários da Capela Dourada, aquele domingo seria no sábado. Sábado. Dia de comércio. Não mais o comércio da Rua Nova e da Rua da Imperatriz dos anos dourados, os anos 50 e os anos 60 do século XX. Da avenida Guararapes dos Correios… da agência da Varig… dos bancos… do bar Savoy. Mas o comércio do camelódromo. Dos produtos baratos da China nas estreitas ruas do bairro de São José.

Ao saírem da Capela Dourada para percorrer os cinco quilômetros da caminhada, ao sol ardente das nove horas da manhã, andavam qual uma manada, olhando para baixo, atentos às calçadas e aos calçamentos esburacados. Quando chegaram à esquina da Avenida Dantas Barreto com a Avenida Guararapes, a Mulher do Sétimo Andar passou a fazer uma outra via sacra, que foi aflorando do íntimo de sua alma, e trazia junto imagens pretéritas de uma Avenida Guararapes pujante de vida e de beleza.

Ali o cortejo parou para o segundo passo da via sacra. Não haveria templo barroco para visitar, mas sim a memória de duas igrejas. Uma construída em 1686 e demolida em 1912. No seu lugar, outra igreja em estilo Manuelino, inaugurada em 1914. Esta, destruída em 1944, na grande reforma do bairro de Santo Antônio, durante a gestão do prefeito Novaes Filho e do governador Agamenon Magalhães.

Estamos, pois, na esquina da Avenida Guararapes com a Avenida Dantas Barreto, bem defronte ao Edifício Santo Albino, construído em cima dos ossos de duas igrejas. Um belo prédio em estilo Art-Déco. Tão maltrapilho hoje, coitadinho, você, que já foi referência de consultórios médicos de renome. A Mulher do Sétimo Andar sai imaginariamente da via sacra pelas igrejas barrocas, e adentra o Edifício Santo Albino.

Imagina aquele hall de entrada, mármore, o elevador com ascensorista sentado num banquinho alto, ela pedindo o último andar: o sétimo. Em 1963, havia ali uma academia de ginástica feminina com a professora Vera. Enquanto espichava a coluna vertebral num espaldar de madeira, ela avistava, pela janela, o prédio do Diário de Pernambuco, na Pracinha do Diário. Depois, tomava um banho, um lanche, descia pelo mesmo elevador, e caminhava alguns metros, para tomar o ônibus de Dois Irmãos e voltar para casa, no bairro de Casa Forte.

Estamos já em 1968. Ela, estudante universitária, carregando uma bolsa a tiracolo. Como ela, outros estudantes, rapazes e moças, num desfile mudo pelas ruas centrais da cidade, em pequenos grupos de dois, três no máximo, todos fingindo que não se conhecem. Não demonstram nenhum cansaço, mesmo tendo passado a noite acampados no saguão da Universidade Católica, em assembleias intermináveis, dormindo de qualquer jeito pelo chão. Até que se espalha entre eles a palavra de ordem: em frente ao Santo Albino. Surge do nada um caixote de madeira dos vendedores ambulantes, Bidu faz o discurso, e, rápido como quem rouba, os estudantes distribuem os panfletos, outros ainda ocupariam a tribuna, até a chegada da tropa de choque da cavalaria.

Ela volta ao presente. Com o barulho do trânsito e dos pedestres, não consegue escutar a explicação sobre aquelas finadas igrejas. E pensa: o caixote e o megafone usados naquele comício relâmpago, seriam de novo da maior serventia nesta caminhada de 2024.

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Dedico esta crônica a Bidu e Xanha, companheiros de lutas estudantis, que nos deixaram por morte morrida neste ano que vai se findando.

2 comentários em “Edifício Santo Albino

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