27 de fevereiro de 2025
A professora de conversação em inglês enviou para a aula de hoje a crônica “Restos de Carnaval”, de Clarice Lispector. Eu fiquei sem entender por que um texto em português. Mas logo ficou claro: uma americana apaixonada pela folia, querendo se banhar nas nossas lembranças carnavalescas: os carnavais de cada uma.
Eu própria mergulhei nas memórias das duas recifenses de nosso grupo, pois as minhas estão carregadas de alguma coisa como se fosse saudade. Saudade do que não vivi. Tal a quarta-feira-de-cinzas de Clarice Lispector, sentada no pé da escada do sobrado onde morava, defronte à Praça Maciel Pinheiro. Minha quarta-feira-de-cinzas era a chegada de Lília, vizinha, amiga de brincadeiras. Ela fantasiada, cabelos lourinhos enrolados em cachos, linda! Porém… Porém sua casa não tinha o jardim de rosas do jardim de nossa casa. Sua mãe não tinha câmera. Ela chegava uma verdadeira princesa para ser fotografada em nosso jardim.
Eu e minha irmã pedíamos para ela nos ensinar a fazer o passo. Ela fazia só um pouquinho. Seu vestido era azul marinho, cheio de lantejoulas e pedras coloridas. Trazia um diadema de princesa na cabeça. Dizíamos, para não ficar por baixo: papai disse que carnaval é festa do diabo. E nossas palavras caíam no vazio, pois, sem jardim em casa, sem câmera, ela tinha o brilho da fantasia, o prêmio do desfile na matinê do clube.
Ah, como eu senti o drama de Clarice, menina de 8 anos… Vivendo a fantasia do carnaval na pele da menina vizinha: uma rosa em papel crepom.
A conversação da aula principiou com Sônia contando de seu carnaval na casa da avó nas imediações do Pátio de Santa Cruz (aí pelos anos 1960/65). Parecido com o carnaval da menina Carmita, mulher de meu tio Fernando (a única tia que, de tão alegre e cheia de vida, nunca foi chamada de tia como todas as outras), que, em menina, (aí pelos anos de 1940/45), morava no bairro de São José e, sem se afastar muito de casa, acompanhava cada orquestras de frevo que passava na sua rua nos dias de carnaval.
E assim chegamos aos “Restos de Carnaval” de Madame Lispector aos oito anos de idade:
Quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu”
***
Que carnavais terá visto e vivido nas ruas do bairro de São José João Pernambuco, quando lá foi morar com a mãe viúva e os 7 irmãos em 1892, pobres de Jó, ele com 8 anos de idade? Chegavam do Sertão da Paraíba, numa das levas de flagelados da grande seca principiada em 1888. Naquele bairro de São José já havia o Clube das Pás, fundado em 1888 (nesse ano, quanto aconteceu no Brasil!) e o Clube dos Vassourinhas, fundado no ano seguinte. Ali João terá presenciado os carnavais de rua. Presenciou o grande carnaval que deve ter comemorado a passagem do século XIX para o século XX. Menino pobre, que era meio sinônimo de menino de rua (pequenos serviços para complementar a feira em casa), quantas bandas de música e troças de carnaval não terá acompanhado João, seguindo atrás dos clubes de pedestres?
A memória do carnaval de rua do Recife, com suas estreitas ruas apinhadas de foliões atrás das bandas de música, levou João Teixeira Guimarães na sua bagagem quando emigrou para o Rio de Janeiro aos 18 anos de idade, para lá renascer como o grande violonista e compositor João Pernambuco. A paixão pelo carnaval estava no sangue de quem morou no bairro de São José.
Mas levou também no matulão a música e a poesia de seus ídolos. Todos nós temos nossos ídolos de juventude. Os de João foram os violeiros com seus improvisos, suas emboladas, seus desafios. Com essa bagagem cultural, mudou a feição do carnaval carioca. E cria em 1909 o Grupo dos Maneles, responsável pela transição dos grupos de Zé Pereiras e suas zabumbas, para os grupos de choros, emboladas, cocos, para animar os foliões nas ruas do Rio de Janeiro. Esses carnavais no Rio de Janeiro marcaram o início da carreira de João Pernambuco: Grupo dos Maneles (Carnaval de 1909), Grupo do Cavaquinho de Ouro (Carnaval de 1913), Grupo do Caxangá (Carnavais de 1914, 1915, 1917), Troupe Sertaneja (Carnaval de 1918). E o mais interessante é que alguns desses grupos carnavalescos vestiam trajes cangaceiros, com o nome de alguns dos mais famosos escrito no chapéu.
Quem sabe, alguma das agremiações atuais de Escolas de Samba do Rio de Janeiro não pesquisa esses grupos carnavalescos, como tema do próximo Samba Enredo da Escola?
***
Faca amolada, voltemos o fio à meada. O carnaval proibido da infância dormiu no meu coração por muitos anos. Até que, após um Congresso na UFPE, morando então em São Paulo e já mãe de família, encompridei meu tempo no Recife e encantei-me por um bloco de carnaval de Olinda, “Eu acho é pouco”. Foi no ano de 1982. Fiz então uma jura: de agora em diante, vou tirar o atraso de muitos carnavais. Desses que gosto: De rua. Com orquestra de frevo ao vivo.
Morando no Recife hoje em dia, nem precisa mais a viagem de avião. Pena que não dá para azeitar as dobradiças do corpo e já não dou conta das ladeiras de Olinda. Mas nem carece. O Recife oferece extenso menu de blocos que desfilam por ruas antigas, de belo casario, como a rua da Aurora, e tantas outras, que nossos poetas eternizaram. Afora existirem blocos que homenageiam nossos poetas, como Clarice Lispector na Praça Maciel Pinheiro, Manuel Bandeira na rua da União (Bacanal) e na beira do rio Capibaribe (Cinza das Horas).
E viva o carnaval do Recife! E viva o Maestro Spok.