A castanhola menina.

16 de setembro de 2025

Com a maré seca, vi que dava para caminhar na beira da praia. Teria que atravessar as obras do calçadão. Foi então que tomei o maior susto! Lá estava Emília, à beira de um precipício. Caminhei por dentro do alambrado, cheguei perto. Era um alicerce cavado fundo para uma futura construção. Seis horas da manhã, um operário se aproximou, e eu quis saber quem era o responsável pela obra. “Os engenheiro só chega às nove”.

Cheguei ao canteiro de obras às oito e meia. Visto da minha janela, não imaginava aquele espaço: uma cidadela, com escritórios, materiais de construção, um ônibus, carros e máquinas estacionados, gente de capacete andando de um lado para o outro. Era ver uma vila construída como cenário de filme. A jovem engenheira responsável pela obra acabara de estacionar o carro. Depois de me ouvir, gentilmente acompanhou-me ao local, não sem antes colocar máscara e capacete. Examinou a insegurança da tenra árvore de oito anos, tronco em formação, fininho, torto, e garantiu: “sua castanhola será sim preservada, dona Teresa”. Será?

Diferentemente de Copacabana, aqui o espaço entre o oceano e os prédios é mínimo. A cada ano eleitoral, areia, vegetação rasteira, coqueiros, castanholas, são sacrificados em prol do cimento. Talvez daqui trinta, cinquenta anos, quando o mar já tiver se aproximado ainda mais do continente, se tome consciência de que o benefício em circo para o povo não compensou o dano à natureza.

Mas naquele momento, não estava ali como militante de nenhuma causa ambiental. Queria apenas salvar Emília.

Em 2017, eu havia ido a uma cimenteira, onde comprei muda de um coqueiro e de uma castanhola. Contratei um jardineiro para me ajudar a plantá-las no terreno arenoso e com vegetação rasteira entre o calçadão e a praia. Já vira outras árvores irmãs com o nome de quem plantou escrito num pneu em volta.

Naquele ano, estava iniciando a escrita de um romance, e resolvi escrever nos pneus em volta das árvores bebês os nomes dos protagonistas: Emília (a castanhola) e Josué (o coqueiro). O coqueiro morreu. Plantei um segundo, que também morreu. Ficou Emília, viúva de dois maridos, sozinha.

Vi-a crescer à cada inverno. Quando novinha, em verões rigorosos, ia regá-la. Quando eu já for cinzas e estiver junto aos ossos de meus antepassados em Bezerros, minha bisavó Emília, meu pai, gosto de pensar que essa Amendoeira continuará viva, adulta, tronco forte, galhos espalhados com folhas gordas, colorindo o outono de amarelos e alaranjados, sombreando quem volta cansado do banho de mar, quem quer se escorar no seu tronco para calçar uma sandália, se organizar para ir pegar o ônibus e voltar para casa depois de um domingo de sol.

Perdê-la, em benefício de um platô de cimento, seria uma dor tanta como perder um animal de estimação atropelado na avenida.

Fiu fiu na rua dos Médicis

14 de setembro de 2025

Ela estava passando o verão na rua dos Médicis, não propriamente de férias, mas numa espécie de tratamento. Poderia até ter desentortado a escoliose com os exercícios do doutor Bosch, não fosse a burrice da Ortopedia naquele longínquo 1960.

Todos os dias, na companhia de dona Elvira, uma velha amiga de sua bisavó, que empobrecera e costumava frequentar a casa nas horas de almoço, todos os dias, de segunda a sexta, saíam de casa antes do café da manhã, para chegar às 6 horas na academia de um velho magro e caladão, que sua tia Mariana havia recomendado. A “academia” do doutor Bosch era uma parafernália de equipamentos, semelhante ao que é hoje uma sala de Pilates. Ali, ela passaria uma hora fazendo uma sequência de exercícios individuais sob a tutela do velho, que falava um português arrevesado com sotaque alemão. Se fecha os olhos hoje, ainda vislumbra o janelão de onde avistava, enquanto se alongava no espaldar, a fonte da praça.  

Da rua dos Médicis até a praça Maciel Pinheiro (onde um dia morou Clarice Lispector e onde ficava a academia do Dr. Bosch, no primeiro andar de um prédio velho de esquina com a rua da Conceição), caminhavam pela rua Manoel Borba. Para essa mocinha, o Recife tinha o encantamento das ruas arborizadas do bairro da Boa Vista, da brisa que se espalhava do mar e dos rios por ruas sombreadas e casarões antigos, com calçadas destruídas por raízes tortas de Mangueiras e Castanholas centenárias.

Janeiro corria ameno. Puro deleite no resto do dia, depois de cumprida a obrigação dos exercícios matinais. Na redondeza, a casa da tia Mariana, da tia Nininha, da tia Lenira. Lena, Dora, tanto primo… Até o dia em que o pai, numa de suas viagens de Garanhuns ao Recife, resolveu perguntar sobre o Dr. Bosch ao colega de profissão e dos tempos de faculdade. “É um charlatão, Zé, tira a menina de lá”. Indicou uma professora de ginástica que ensinaria exercícios para fazer em casa; e fabricou no corpo da mocinha o molde para uma forma de gesso, na qual ela passaria a dormir, obrigatoriamente de costas.

Um dia, a mãe viu que ela dormia à sono solto virada de lado dentro daquela estrovenga, que o irmão logo apelidou de cuia. “Amarra a menina”, foi a recomendação do ortopedista. “Mamãe, vem me amarrar!”. E a mãe, chegando apressada ao quarto da moça: “Psiu, menina, tem visita na sala, vão pensar que tem doida em casa.”

Fazer esse molde ao vivo no hospital Centenário de então, foi uma sessão de tortura. As lágrimas escorriam pela face da pobre, espichada por cordas e sem poder levantar os pés firmes no chão, enquanto dois enfermeiros moldavam com gesso a sua coluna vertebral mal coberta por uma camiseta fina, como fossem pedreiros cimentando uma parede de tijolos, sob o olhar severo do ortopedista.

As prescrições do Dr. Bruno Maia (outro dia a Mulher do Sétimo Andar teve ímpetos anarquistas de pichar a placa de rua com o nome dele), só serviram para piorar a escoliose da moça. Até ela descobrir a Fisioterapia, a Reeducação Postural Global, o Pilates. Dos quais, diga-se de passagem, aquele “charlatão” da Praça Maciel Pinheiro foi certamente um dos pioneiros no Recife. Teria sido ele discípulo do próprio Joseph Pilates, tendo emigrado ao Recife em fuga dos nazistas?

A rua dos Médicis não tem mais de duzentos metros. De um lado, termina na rua Dom Bosco. Do outro, na rua Manoel Borba. Do lado da Manuel Borba, a obrigação matutina da moça na academia do Dr. Bosch. Do lado da Dom Bosco, férias, sorvete na Frisabor, a festa dos primos. Foi quase dobrando da rua dos Médicis para a Dom Bosco, que aquela mocinha teve uma experiência oposta ao susto com o tarado do Colégio Salesiano dias antes. Dessa vez, uma experiência luminosa!

Estava ela distraidamente caminhando pela calçada da esquerda, quando ouviu uma discussão acalorada no terraço da penúltima casa do lado direito da rua. Diminuiu o passo e olhou na direção das vozes. Braços se levantavam junto aos argumentos, era ver um filme de Fellini. O que estariam discutindo? Eram uns moços bonitos! Quatro ou cinco… Como se tivessem captado o olhar da moça, pararam a discussão, olharam a calçada do outro lado da rua, e assobiaram um fiu fiu quase em uníssono. Talvez, junto ao sorriso acanhado, ela tenha corado, como ainda aconteceria tantas vezes na vida, até dirigindo assembleia estudantil. Mas logo seguiu em frente e dobrou à esquerda, na direção da casa de alguma das tias, sentindo-se bonita, sentindo-se mulher.

Décadas depois, chegou às suas mãos um artigo escrito por uma jovem militante feminista, uma verdadeira cruzada contra o fiu fiu. Como já vivera a experiência de morar em Boston, onde o simples olhar de um homem na direção de uma mulher já poderia ser caracterizado como sexual harassement, pensou com seus botões: Céus, será que aqui também, nesse fogo dos trópicos, sem a religião puritana, mas sim o ibérico catolicismo permissivo, será que também aqui vão conseguir castrar os homens, coitados?

O avesso da distopia

03 de setembro de 2025

Qual o avesso da distopia? No filme de Gabriel Mascaro, “O último Azul”, o avesso da distopia é menos a utopia, do que o real de uma vida que floresce com a velhice.

O filme passa rápido pela distopia, ambientada em uma cidade da Amazônia. Vemos detalhes de uma linha de produção num frigorífico de jacarés; vemos o avanço de um programa cata-velhos do governo. Esse programa aparece logo na primeira cena do filme: a título de um prêmio, a casa da protagonista é marcada, como casa de judeu em tempos sombrios.  

Mas, logo se inicia a saga da personagem principal em busca de sua liberdade, o filme vira pelo avesso. Essa personagem, Teresa, magnificamente interpretada pela atriz Denise Weinberg, consegue a façanha de nos levar com ela a uma aventura atrás da outra, em viagens de barco memoráveis. A primeira, com Rodrigo Santoro, vestido de Cadu, que, fosse apenas esse cenário (quando descobrimos o porquê do título em azul), já sairíamos satisfeitos do cinema. Mas tem mais, muito mais.

Como foi bem gasto aquele dinheirinho guardado numa caixa de sapato por Teresa, quando decidiu, a qualquer custo, andar de avião! Desejo guardado em outra caixinha secreta, invisível. Atrás desse sonho, ela inicia um périplo difícil e perigoso, tentando chegar aos céus através dos rios. Aos poucos, porém, ela vai se dando conta de que, os caminhos que percorre para chegar ao seu sonho, podem ser até melhores do que voar propriamente. O mais importante era não ficar parada, não se entregar. Ir em frente. Viver.

“O último azul” faz o estilo road movie, só que substituindo rodovias por rios. E, meu Deus, quanta beleza! A grandiosidade da floresta vista de fora, de dentro dos barcos que navegam pelo rio. A fotografia é deslumbrante!

E, nesse caminhar sobre as águas, Teresa vai descobrindo, aí sim, uma utopia: um mundo de animais encantados, a beleza, a leveza. Descobre-se aos setenta e sete anos. Uma vida que pulsa. Em algo tão real como a amizade que desabrocha na velhice entre as mulheres e seus sonhos. Não arquétipos de mãe, de avó… Não. Mulheres livres, até da tirania dos filhos.

O tarado da rua Dom Bosco

31 de agosto de 2025

A pedidos, a Mulher do Sétimo Andar está aqui de novo para uma visitinha domingueira. Antes tarde do que nunca, na despedida desse agosto que, aqui no Recife, em vez de ventos, espichou um inverno de chuvas. Seis da manhã, céu brumoso em azul quase lilás. A verdade é que essa mulher anda sem assunto. Por isso a ausência.

Não é que parou de escrever. Escreve todo santo dia. Como não dá crônica, manda para uma pasta nomeada: Romance – subsídios. (Acho mesmo que vai morrer nos subsídios).

(o que acho mesmo, é que ela escreve só para exercitar os dedos, e, quem sabe, um dia toca violão?)

Sem assunto, a Mulher do Sétimo Andar tirou do baú uma velha crônica inédita. A ideia de ressuscitá-la, surgiu a propósito de um projeto de construção de condomínio para velhinhos, justamente nos quintais do Colégio Salesiano na rua Dom Bosco.

Antes da crônica, o contexto. A Mulher do Sétimo Andar já morava no Recife há anos, mas continuava antenada com São Paulo. Foi assim que soube de um espaço que oferecia cursos de literatura. Isso foi antes da Pandemia, curso presencial. Comprou passagem, alugou flat por uma semana, e se inscreveu num intensivão de vinte horas com um conhecido escritor gaúcho. Tema: “Crônica Erótica”.

Primeiro dia de aula. Espia em volta. Os coleguinhas são todos mais jovens que ela. Até o professor. Todos poderiam ser seus alunos. Com o tempo,  acostumou-se, e, às vezes, até tira partido, dessa posição de ser a mais velha. Desde então, mudou seu lugar na sala de aula. Foi para o lugar de aprender, e não mais de ensinar. Como se estivesse desaprendendo algumas coisas em favor de outras.

O professor estava vestido com calças de tecido estampado, combinando com a camiseta e as unhas cor de rosa. Voz e jeitão perfeitamente masculinos. Seguro de si, principiou dizendo que não ia se apresentar, porque todos que se inscreveram no curso, certamente já teriam consultado seus dados biográficos. Pediu então que os alunos se apresentassem, dizendo qual a tara de cada um.

Houve um certo reboliço, mas enfim começaram as apresentações. Talvez pela primeira vez na vida, a Mulher do Sétimo Andar pensou nesse assunto. Seria vero a ideia que lhe ocorreu?

O professor: “como assim, exibicionista? Tipo, tira a roupa na Avenida Paulista?” A classe toda riu. Ela não se deu por vencida e disse: “olhe que não é uma má ideia”.

Mas isso foi apenas o início da aula, para quebrar o gelo. O passo seguinte foi uma tarefa: cada aluno deveria escrever uma crônica sobre sua tara. O tempo de escrita foi limitado (teria sido trinta, ou quarenta minutos?). Depois disso, quando todos voltaram de um curto intervalo de quinze minutos, aí a surpresa maior: os textos seriam lidos em voz alta. Tanto o professor, como qualquer dos colegas, deveria interromper a leitura, ao perceber que o texto não se sustentava como crônica literária. “Tipo buzina do Chacrinha, professor?”, ela provocou de novo. E assim foi. A bem da verdade, os colegas não se manifestaram, mas o professor… interrompeu a leitura na maioria dos textos. E aquilo virava mote para explicações preciosas sobre como escrever uma crônica.

A Mulher do Sétimo Andar ia dando algum retoque no seu texto, enquanto anotava as observações do professor. Que aula! Se ainda estivesse na ativa, copiaria muito da técnica de exposição desse professor gaúcho, que dos erros extraía os acertos.

Sentiu-se aluna do Colégio Santa Sofia de Garanhuns quando, terminada a sua leitura, sem ser interrompida pela buzina do Chacrinha, foi aplaudida. Continuava boa aluna. Senão a primeira, a segunda de classe. Dos trinta alunos, somente a crônica dela e a de um rapazinho de óculos, que poderia ser seu neto, receberam palmas.

Ufa, dirão os leitores, finalmente vai nos apresentar o tarado da rua Dom Bosco? Mais ou menos, meus queridos, porque o caderninho se perdeu. A crônica era mais ou menos o que segue:

Eu caminhava tranquilamente pela rua dos Médicis no bairro da Boa Vista, onde morava minha bisavó. Tinha quatorze anos e estava de férias no Recife. Naquela tarde, ia para a casa de tia Mariana, na Ilha do Leite. Lembro que, quando menininha, eu era muito ligada ao significado das palavras, e achava estranho que minha tia morasse numa ilha e não precisasse de barco para chegar à casa dela. Até que meu pai me explicou que vários bairros do Recife – Ilha do Leite, do Retiro, de Deus…, eram de fato ilhas, que haviam sido aterradas e incorporadas ao continente.

Pois bem, quando dobrei à esquerda saindo da rua dos Médicis e entrando na rua Dom Bosco, meu pensamento era chegar na primeira esquina, onde havia a sorveteria Frisabor. Pediria um sorvete de casquinha de coco e chocolate e, até chegar à casa da tia, onde encontraria primas e primos, que eram onze, teria terminado o sorvete.

Já avistava a sorveteria, quando algo me chamou a atenção no outro lado da rua, onde ficava o Colégio Salesiano. Quando olhei, vi na janela aberta a imagem de um homem, que certamente estaria em pé numa cadeira. Estava vestido, porém com a calça arriada e mostrando um sexo perfeitamente ereto. A princípio achei que era um boneco gigante, uma brincadeira. Mas logo ele segurou o membro com as duas mãos e me olhou com um riso sinistro.

Saí correndo, não parei na sorveteria, corri até a casa de minha tia e cheguei lá esbaforida. Ela estava regando o jardim, piano piano, e quis saber o que acontecera para eu estar naquele estado, com o coração saindo pela boca. Falei da cena na janela do colégio Salesiano.

E ela, sem largar a mangueira, “Ih, minha filha, é um tarado exibicionista. Aqui no Recife está cheio”. Pensei na hora, mas não disse: “O que eu queria mesmo, era ter a coragem desse tarado exibicionista”.

Diário de um infarto

Quarta feira, 09 de julho de 2025

3 horas – Acordo com dor na caixa dos peitos, que repercute no braço esquerdo. Não! Puta merda! Três da matina? Por que diabos tudo acontece comigo ao primeiro galo da madrugada? Nessa mesma hora, num distante 14 de julho, eu acordei para ir ao banheiro, e o líquido que escorria não era xixi. Corre, corre pro hospital, que foi o líquido amniótico.

Naquele frio inverno de 1976 em São Paulo, transportada numa maca para uma cesariana, perguntei à enfermeira: que dia é hoje? E a moça estranhou quando ouviu de minha boca: que maravilha! meu filho vai nascer no dia da Queda da Bastilha.

Às três da madrugada deste julho, aos oitenta fresquinhos, anunciava-se outro desfecho. Estou só em casa. A dor no peito se espraiando para o braço esquerdo, martelando no meu juízo: infarto do miocárdio. Poderia ser gazes… Tomei um copo d’água, fui até o armário pegar o tensiômetro: 21X11.

Há menos de um mês, eu havia tomado todas as informações sobre um tal  reloginho para velho que mora sozinho. Deixei o assunto para depois. Aí o depois chegou antes.

Na emergência do hospital Esperança da Rede D’Or, a cardiologista de plantão toma as providências de costume: o comprimidinho embaixo da língua, um Rivotril e, com pouco, um analgésico para a dorzinha de cabeça que, depois fiquei sabendo, era efeito colateral do milagroso cachete que dissolve na boca embaixo da língua. Juliane, a motorista de Uber que me socorreu, liga para meu cardiologista, para minha irmã, meu filho, minha sobrinha.

8:20 – Bom ver a cara de Denize chegando apressadinha. Peço para ela acertar com Juliane, que, só aceita receber, a conta do estacionamento. Não quis cobrar o tempo que ficou comigo nem o preço da corrida. Muito menos o que não tem preço: às três horas da manhã atendeu minha chamada de telefone ao terceiro toque, e, com menos de dez minutos, estava a postos na garagem do meu prédio.

Troco a roupa por uma bata e sou transferida para a uti humanizada. São 10 cubículos, cada cá com a cama do paciente e, ao lado, uma poltrona reclinável. Na parede de trás, a parafernália de equipamentos barulhentos, que aparafusa fios ao peito do paciente e mostra, num monitor, todos os sinais vitais. Esses cubículos não têm portas, mas cortinas, que sempre ficam semiabertas, para que os que circulam no centrão possam espiar de vez em quando os tais sinais vitais.

Deitada no novo leito, o braço esquerdo com o acesso trazido da emergência, o braço direito passa a ficar também ocupado pelo tensiômetro, que infla a cada hora para aferir a pressão arterial. Pelo menos só ouço, e não vejo, os gráficos coloridos do monitor, em constante dança com o que vai no trânsito do meu sangue, passando pelo velho e atrevido coração, que deu o primeiro sinal de cansaço.

Médicos. Fisioterapeutas. Uma técnica em enfermagem para cada dois pacientes… É muita gente proseando e dando risada. Minha TV está desligada, mas ouço a dos vizinhos. A aparadeira resolve o xixi. Para o número dois, carece ir ao banheiro. A enfermeira desabotoa os parafusos do meu peito, tira o medidor de pressão do braço direito, e sigo com os fios do acesso na veia do braço esquerdo pendurados. A enfermeira me conduz caminhando devagar e me espera à porta do banheiro.

À noitinha, Luciana chega para render minha irmã. Dormirá no sofá reclinável e será rendida por Denize no dia seguinte.

Quinta feira, 10 de julho

Entre Luciana sair e minha irmã chegar, houve um espaço de tempo em que fiquei sem acompanhante. A técnica em enfermagem que cuidava de mim, assegurou que ali eu teria sempre atendimento e poderia ficar sozinha sem problema. E ela estava certa.

Chega a hora do banho. Banheiro ocupado. É o único para todos os leitos. Alguns pacientes não se levantam da cama. Outros, como eu, têm condições de usá-lo. Estou em terceiro lugar na fila. Espero deitada (que em pé cansa). Enquanto espero, com a cortina aberta, impaciente com os barulhos, veem-me à lembrança as filas dos banheiros da rodovia Rio-Bahia, nas viagens pela Itapemirim. Espanto a lembrança e digo a mim mesma: paciência, dona moça, aqui o banheiro é limpo. Se eu pudesse ter dado uns três ou quatro tragos da boa erva, teria imaginado, em devaneios, que a conversa no centrão era a feira de Bezerros, e o barulho das máquinas eram passarinhos cantando nos pés de pau. Mas a seco?

Enquanto espero, a cortina aberta, vejo o movimento no centrão: a faxineira, num fazer de conta com um rodo, passando apenas pelo corredor onde circulam todos. Aí me dei conta de que estava naquele cubículo desde a véspera de manhã, e até aquele momento nenhuma faxineira passara por lá.

“Enfermeira, quem é a pessoa responsável por essa uti?” Chega uma médica. Faço minucioso relato de uma observação de campo e concluo: “Ou me transferem para um quarto, ou saio daqui”. “Sim, assino qualquer termo, me responsabilizo. Mas aqui não fico mais”.

Chega a turma do deixa disso. Que ainda preciso estar sob os cuidados de uma uti, mas que hoje mesmo vão me transferir para um único cubículo naquele andar que tem porta, com a parte de cima de vidro, e banheiro privativo. Foi lá que passei a segunda noite.

Sexta feira, 11 de julho de 2025.

Finalmente no quarto, depois de amargar dois dias de uti humanizada. Tomei um café da manhã reforçado, porque essa será minha única refeição até a hora do exame.

O maqueiro chega para me levar à sala de exame às cinco horas da tarde. Começo a ser acomodada na cadeira de rodas, recomendando a manta e o casaco porque aquelas salas são tão frias.

Logo adentra o quarto, inicia-se uma prosa entre o maqueiro e a enfermeira. Como se ali eles estivessem atuando em dois palcos ao mesmo tempo. Tenho ímpetos de dizer, com ar professoral, “aqui não é lugar de conversa, prestem atenção à paciente”. Lembro-me dos corredores do Hospital Dom Moura em Garanhuns, onde meu pai foi o diretor por uns anos, e íamos assistir lá, na capela do hospital, a missa aos domingos. Existia em todos os corredores a foto enquadrada de uma freira, com o dedo indicador sobre os lábios, em sinal de silêncio. Mas estou com a raiva da uti humanizada ainda presa na garganta, e não é justo que descarregue neles a minha raiva. São apenas atores de uma engrenagem poderosa que inclui hospitais, planos de saúde, grandes laboratórios… Melhor calar. Afinal, eles executam até com certa maestria os dois papéis ao mesmo tempo. 

No elevador estamos apenas eu, minha irmã, a enfermeira e o maqueiro. Nessa hora, no silêncio de um elevador, pude ouvir o restante da prosa dos dois: “Eu tou é morto. Desde cedo não tive um minuto de fuga. Num vejo a hora de chegar em casa, tomar um banho e cair na cama.” “Tu acredita que aquela uma veio de novo pedir emprestado o meu carregador do celular?” “Oxe! E por que tu num diz a ela que tu também esqueceu o teu em casa?” “Eu tive pena dela. A coitada precisava chamar um uber.”

Sábado, 12 de julho de 2025

Finalmente, o exame do túnel da assombração revelou o diagnóstico: Minoca – infarto do miocárdio com artérias coronárias não abstruídas. Margareth rendera Teresa ao meio da manhã. É quem está comigo na hora da alta, e me leva de volta pra casa. Já tínhamos almoçado no hospital. Em casa, antes de entrar no chuveiro, tiro do congelador o último pedaço do bolo de noiva da festa dos oitenta anos. Depois do banho, preparo um chá para nós duas.

Ela é rendida por Miguel no hall do elevador do sétimo andar. Meu filho se acomoda no quarto de hóspedes. Pedro, meu caçula, chegará de São Paulo na semana seguinte e teremos de volta, por alguns dias, a alegria da família reunida.

Deitada, de volta ao romance de Elena Ferrante que deixara pela metade, dei um longo cochilo na minha cama forrada com lençóis brancos e macios. Quando acordei, fui jantar com Miguel o que sobrara de uma bela moqueca de peixe, que eu mesma havia preparado para receber Guilherme e Beth, e que também fora minha homenagem prévia ao dia de Nossa Senhora do Carmo/Oxum, em 16 de julho.

Daquele jantar, sobrara o equivalente a duas taças de vinho branco. Brindamos à Vida! Afinal, danificou apenas 2% do velho coração cheio de segredos. A maioria está preservado, guardados, os segredos, a sete chaves. Vida que segue.

***

Aqui vai um agradecimento à turma que cuidou de mim no hospital, pela ordem de entrada em cena: Juliane, Denize, Luciana, Teresa, Margareth.

São João

24 de junho de 2025

Noite de festa. Desde pequena, aquela menina gostava de economizar. Guardou metade das estrelinhas para o dia seguinte, pois a mãe lhe assegurara, a ela e à irmã, sua melhor companheira de brincadeiras, que o dia mais importante ainda estava por vir. Era o dia seguinte, dia mesmo do santo, São João. Então as duas, sob a supervisão dela, rigorosa nas contas, guardaram parte daqueles fogos para o dia seguinte, como se estivessem amealhando moedas de ouro.

As estrelinhas eram os fogos preferidos pelas duas. Eram os mais lindos, os mais delicados. Palitos finos feitos de papel de seda de todas as cores do arco-íris, com pólvora dentro. Os papéis de seda que envolviam a pólvora eram encimados pelas tiras do papel abertas para cima, formando como folhas de uma plantinha colorida, onde a gente segurava para acender a parte de baixo. Aí, milagre, sem precisar mexer, rodar, nada, só segurando com firmeza, começavam a aparecer as estrelinhas de baixo para cima, sem barulhos, silenciosas como as estrelas do céu. Nossos braços ficavam esticados para frente, para que as estrelinhas que nasciam de nossos dedos não viessem a cair em nossos sapatos ou nosso vestido e nos queimassem.

Naquele junho de 1953, a festa foi na fazenda de um amigo do pai. Os convidados deveriam chegar para o almoço, pois também se comemorou  bodas do casal, com uma buchada e muitos outros pratos numa mesa farta: carne de sol, carne de porco, galinha, carne de bode, pirão, feijão verde, farofas…  Uns meninos mais afoitos acompanharam os pais num copinho miúdo de cachaça, antes de iniciar o banquete. Depois se bebia de tudo, ao gosto de cada um.

Ela observou que, à mesa maior da sala, sentaram-se os homens e alguns rapazes mais velhos. Em outras mesas – a sala era enorme –, as mães com os filhos, as moças, os rapazes mais novos. Ela quase não comeu no almoço, de olho nos doces de sobremesa, que já vira quando fora junto com a mãe e a irmã até a cozinha. Ah! Aquele doce de goiaba em calda com queijo de manteiga… O doce de leite…

Até a hora do almoço foi um tumulto danado, com meninos correndo dentro de casa. Continuava chovendo, chuva grossa, de relâmpagos e trovões. Falava-se de um raio que teria caído em uma Baraúna da fazenda vizinha. Já o carro do pai ficara atolado na lama, na subida da serra até o casarão do Seu Vitor. De galochas, capa de chuva e guarda-chuva, chegavam os convivas. Para nós duas, aquilo, que para nossos pais era um transtorno, para nós já era parte da animação da festa.

Depois do almoço estiou. Nas redes armadas nos alpendres que arrodeavam as salas e os quartos, nas camas postas, alguns homens fizeram a sesta, enquanto muitas mulheres cuidavam das vassouras, da louça, dos filhos, que corriam pelo terreiro, que não sujassem a roupa da festa mais tarde. As duas irmãs se juntaram com umas meninas que brincavam de roda, e depois de pega, também com os meninos.

Aos poucos, a festa ia se anunciando. O sol se punha quando acenderam a fogueira. Foi somente nessa hora que a meninada parou de correr. Uma fogueira enorme, que ainda teria brasas para assar milho verde e batata doce no dia seguinte. Acenderam-se os lampiões e candeeiros na casa toda. Com pouco, iam chegando os músicos. Era uma banda de pífanos, e mais uma de forró com sanfona, zabumba e triângulo, que se revezaram num canto da sala. A princípio nós ficamos olhando a música e a dança, cada uma segurando na mão do pai. A nossa irmã mais velha dançava com o filho de seu Vitor, e meu pai não tirava os olhos dela.

Mas logo nos cansamos de ficar ali paradas. Nossa mãe nos levou para nos servirmos das comidas da festa: pamonha, canjica (que os sulistas chamam de curau), munguzá (que os sulistas chamam de canjica), milho cozido, milho assado, bolo Pé de Moleque, bolo Souza Leão, bolo de macaxeira, cachorro-quente, amendoim cozido, amendoim torrado… Pegamos nossos traques de massa e estrelinhas e fomos ao terreiro, com nosso irmão mais velho, que lá segurou um tição em brasa para a gente ir acendendo as estrelinhas. Ouvindo a música ao fundo, as vozes, vendo outros fogos, ouvindo estrondo de bombas e rojões, balões subindo ao céu estrelado, nossa atenção se concentrava nas nossas estrelinhas, que nos faziam rir, comparar com as outras já queimadas para dizer: esta foi a mais bonita, não foi, Pingo? Era o clímax de nossa noite de São João.

No dia seguinte, excitadas por ser aquele o dia mesmo de São João, madrugaram. Todos na casa ainda dormiam. De chinelos e camisola, encolhidas de frio, foram para o terraço acender com fósforos o restante das estrelinhas. Escondidas de todos, pois sabiam muito bem que não podiam brincar com fogo sozinhas. E viram, desoladas, que, à luz do dia, as estrelinhas já não tinham o brilho da noite. Foram para a despensa, que não tinha janelas. Fecharam a porta, e o cheiro de pólvora aos poucos abafou o das barras de sabão. Lá foi melhor. Mas nada que chegasse nem perto do terreiro com bandeirolas, as nossas estrelinhas tão brilhantes quanto as do céu.

Hoje, tão distante no tempo e no espaço daquela noite de São João em Garanhuns, a Mulher do Sétimo Andar pensa numa velha lição: nunca deixe para amanhã o que pode fazer hoje.

Minha geração é a bola da vez

01 de Abril de 2025

Ê Galo Véio, chegou tua hora! Minha geração é a bola da vez. Uns vão apagando: continuam entre nós, disfarçam, os mais ladinos, mas o hard disc já era. Outros apagam de vez. Desses, felizes os que morrem junto aos entes queridos, longe dos tubos e encanações de uma UTI. Foi assim que morreu ontem Fernando Barbosa. Hoje, primeiro de abril, o corpo cansado desse torcedor do Santa Cruz, que acabou de completar 92 anos nesse mês de março, vira pó, para ser jogado nos mares da praia de Itamaracá.

Na praia de Itamaracá conheci Fernando e Socorro. Bartira e Betina, meninas. Dona Maria, a preta velha de óculos, igualzinha à Irene de Manuel Bandeira, na retaguarda preparando as mamadeiras, sob a rigorosa supervisão do pater família médico. Era o ano de 1969.

A praia do Forte de Orange em Itamaracá era uma imensidão de coqueiros, aqui e acolá escondendo casinhas de pescadores. Atolar o carro no areal era rotina aos que se aventuravam chegar à casa dos quatro casais que desbravaram aquele pedaço deserto de mar limpo e tranquilo. Mas bastava um grito ou um assobio, e lá vinha algum pescador com outros ajudantes para improvisar umas palhas de coqueiro e tirar o carro do atoleiro. O fusca era um bravo nessas situações.

Era muito raro irem os quatro casais e filhos aos finais de semana. 1969 foi o ano de meu namoro com Hamilton. Frequentávamos aquela casa sem água encanada nem luz elétrica, e aquele foi nosso paraíso, nossa lua-de-mel antecipada. À noite, no terraço escuro, ouvíamos fitas cassete, proseávamos, às vezes um violão principiante arranhava umas melodias para todos cantarem. Guardei por muito tempo a fita de chorinhos cantados por Nara Leão. Perdi minha virgindade na cama de Mário Borba.

Fernando era um homem que sabia cevar caranguejo. Como apreciava uma boa comida, uma boa bebida! E, como gostava de ensinar aos outros, não a história, que também sabia, pois estudou medicina e estudou história na universidade, mas ensinar trivialidades da vida. Ensinou-me a comer caranguejo comme il faut, assim como depois a meus filhos, e quem mais quisesse aprender. Que almoços domingueiros eram aqueles…

Depois do almoço, regado a caipirinhas, cervejas, o médico se deitava na rede do terraço para uma demorada sesta. No batente da calçada, ia-se formando uma fila dos pescadores da redondeza e familiares. Lembro Marcelino, o mais assíduo, o faz tudo que sabia os códigos praieiros. A consulta era feita ali mesmo, ele na rede, ouvindo as queixas, saindo da rede quando carecia examinar. Os remédios de amostra grátis resolviam quase tudo, e Socorro tinha-os à mão. Mas houve um paciente que pediu reserva na conversa com o doutor, queixando-se que estava nó-pró e que nem amendoim nem ovo de codorna haviam resolvido. Nunca soube que encaminhamento o dr. Fernando deu para esse caso.

Em 1987, fizemos uma viagem de férias à velha Espanha, para conhecer os parentes galegos de Hamilton de Vigo, Pontevedra, Gajate. Meu sogro, com o maior orgulho em apresentar o filho engenheiro aos do pequeno povoado de Gajate, onde uma velhinha, toda de negro, me abraçou dizendo, “casaste com gente de buena gente”. Dali fomos a Paris. Socorro e Fernando estavam nessa época em Bielefeld, ela fazendo doutorado em história, Fernando, um acompanhante que tirou tanto proveito em morar fora do país quanto a doutoranda:  estagiou em hospitais e se especializou em doenças tropicais.

Combinamos com antecedência nosso encontro em Paris. Eles escolheram para nós um hotel na Place d’Italie, e foram de carro da Alemanha para nos encontrar. Nas ruas de Paris, nós duas muito conversávamos nossos assuntos, enquanto os homens observavam os carros estacionados, as carrocerias Mercedes Benz fabricadas no Brasil. Haviam programado um encontro com exilados, entre eles Miguel Arraes, que veio de Argel, num almoço na casa de alguém. Socorro? Foi na casa de quem, mesmo? Terá sido Violeta? Dia seguinte, seguimos no carro deles para Bielefeld, por estradas magníficas, de alta velocidade, e pudemos assistir à mesma cena já vivida em tantas farras boas na noite recifense: “Fernando, não corra tanto!” E lá, ele tinha a seu favor um argumento irrefutável: “Coia, se eu baixar a velocidade, serei multado!”

Chez Socorro/Fernando, o casal dormiu no quarto das três meninas (Marina já existia) e nos cedeu a cama de casal. Dia seguinte, depois de uma volta pela cidade e uma visita à Universidade, Fernando fez questão de mostrar ao galego apreciador da boa comida, um mercado só de embutidos, as maravilhosas salsichas alemãs…

Ainda ouço ecos da fala do Galo Véio (Fernando é galo no horóscopo chinês), sempre com o humor em alta, com a risada irreverente. A cada amigo que se vai, a gente vai morrendo um pouco, até que chegue nosso dia. Mas vamos vivendo com alegria, que é a melhor homenagem que podemos prestar ao recifense mais recifense que conheci: Fernando Barbosa.

Dia Internacional da Mulher

09 de março de 2025

A Mulher do Sétimo Andar tem umas implicâncias sobre alguns dias comemorativos, que às vezes aborrecem os que curtem essas datas. É o caso do Dia das Mães. Oh coisinha piegas e cafona! Na sua família, filhos pequenos, decretou: nessa casa não se comemora Dia das Mães. Presentes, só os fabricados na escola. Tiveram que aceitar. Afinal, só quem saía perdendo era ela.

Até que um dia, lembra que os filhos já estavam na faixa dos dez e treze anos, ao raiar de um mês de maio, anunciou que revira sua posição e, dali em diante, queria sim, ser comemorada no Dia das Mães, com presente de loja. Guardou até hoje a caixa do presente do filho caçula, com o oferecimento em caneta piloto vermelha. (Pena não ter encontrado agora, numa busca rápida à prateleira dos vestígios e reminiscências). Já o primogênito, com seu humor inglês característico, com um sorriso irônico no rosto, disse: e como ficam os presentes que até hoje não ganhamos no Dia das Crianças?

Pois bem. Ontem, uma amiga próxima, do time dos defensores ferrenhos do dia das mães, mandou uma mensagem assim: Feliz dia das mulheres, embora saiba que você é avessa a essas datas fabricadas. Aqui vou espichar um pouco a minha resposta, que motivou esta crônica, que até hoje cedo não estava no programa desse domingo.

Depende, querida. Há datas que comemoram momentos importantes de luta por direitos. É o caso do Dia do Trabalhador, universalmente comemorado no Primeiro de Maio. O único país que não comemora nesse dia é EUA, justamente aquele que motivou a escolha da data, uma homenagem às manifestações de trabalhadores em Chicago em 1886. É também o caso do Dia da Consciência Negra, aqui no Brasil comemorado no dia da morte de Zumbi dos Palmares em 20 de novembro de 1695.

O Dia Internacional da Mulher está no mesmo patamar. Foram as lutas de mulheres por direitos em finais do século XIX e inícios do XX, que motivaram uma data comemorativa universal. As melhores mensagens são aquelas com frases de mulheres ícones na luta por direitos. Fica estranho “feliz dia das mulheres”. Mais estranho ainda quando vem com um buquê de rosas vermelhas. Pois esse dia está mais para a ferradura do que para o cravo.

Em tempo. Vocês repararam que nenhuma dessas datas que merece ser comemorada, comemora-se com presente?

Carnavais

27 de fevereiro de 2025

A professora de conversação em inglês enviou para a aula de hoje a crônica “Restos de Carnaval”, de Clarice Lispector. Eu fiquei sem entender por que um texto em português. Mas logo ficou claro: uma americana apaixonada pela folia, querendo se banhar nas nossas lembranças carnavalescas: os carnavais de cada uma.

Eu própria mergulhei nas memórias das duas recifenses de nosso grupo, pois as minhas estão carregadas de alguma coisa como se fosse saudade. Saudade do que não vivi. Tal a quarta-feira-de-cinzas de Clarice Lispector, sentada no pé da escada do sobrado onde morava, defronte à Praça Maciel Pinheiro. Minha quarta-feira-de-cinzas era a chegada de Lília, vizinha, amiga de brincadeiras. Ela fantasiada, cabelos lourinhos enrolados em cachos, linda! Porém… Porém sua casa não tinha o jardim de rosas do jardim de nossa casa. Sua mãe não tinha câmera. Ela chegava uma verdadeira princesa para ser fotografada em nosso jardim.

Eu e minha irmã pedíamos para ela nos ensinar a fazer o passo. Ela fazia só um pouquinho. Seu vestido era azul marinho, cheio de lantejoulas e pedras coloridas. Trazia um diadema de princesa na cabeça. Dizíamos, para não ficar por baixo: papai disse que carnaval é festa do diabo. E nossas palavras caíam no vazio, pois, sem jardim em casa, sem câmera, ela tinha o brilho da fantasia, o prêmio do desfile na matinê do clube.

Ah, como eu senti o drama de Clarice, menina de 8 anos… Vivendo a fantasia do carnaval na pele da menina vizinha: uma rosa em papel crepom.

A conversação da aula principiou com Sônia contando de seu carnaval na casa da avó nas imediações do Pátio de Santa Cruz (aí pelos anos 1960/65). Parecido com o carnaval da menina Carmita, mulher de meu tio Fernando (a única tia que, de tão alegre e cheia de vida, nunca foi chamada de tia como todas as outras), que, em menina, (aí pelos anos de 1940/45), morava no bairro de São José e, sem se afastar muito de casa, acompanhava cada orquestras de frevo que passava na sua rua nos dias de carnaval.

E assim chegamos aos “Restos de Carnaval” de Madame Lispector aos oito anos de idade:

Quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava? Como se enfim o mundo se abrisse de botão que era em grande rosa escarlate. Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu”

***

Que carnavais terá visto e vivido nas ruas do bairro de São José João Pernambuco, quando lá foi morar com a mãe viúva e os 7 irmãos em 1892, pobres de Jó, ele com 8 anos de idade? Chegavam do Sertão da Paraíba, numa das levas de flagelados da grande seca principiada em 1888. Naquele bairro de São José já havia o Clube das Pás, fundado em 1888 (nesse ano, quanto aconteceu no Brasil!) e o Clube dos Vassourinhas, fundado no ano seguinte. Ali João terá presenciado os carnavais de rua. Presenciou o grande carnaval que deve ter comemorado a passagem do século XIX para o século XX. Menino pobre, que era meio sinônimo de menino de rua (pequenos serviços para complementar a feira em casa), quantas bandas de música e troças de carnaval não terá acompanhado João, seguindo atrás dos clubes de pedestres?

A memória do carnaval de rua do Recife, com suas estreitas ruas apinhadas de foliões atrás das bandas de música, levou João Teixeira Guimarães na sua bagagem quando emigrou para o Rio de Janeiro aos 18 anos de idade, para lá renascer como o grande violonista e compositor João Pernambuco. A paixão pelo carnaval estava no sangue de quem morou no bairro de São José.

Mas levou também no matulão a música e a poesia de seus ídolos. Todos nós temos nossos ídolos de juventude. Os de João foram os violeiros com seus improvisos, suas emboladas, seus desafios. Com essa bagagem cultural, mudou a feição do carnaval carioca. E cria em 1909 o Grupo dos Maneles, responsável pela transição dos grupos de Zé Pereiras e suas zabumbas, para os grupos de choros, emboladas, cocos, para animar os foliões nas ruas do Rio de Janeiro. Esses carnavais no Rio de Janeiro marcaram o início da carreira de João Pernambuco: Grupo dos Maneles (Carnaval de 1909), Grupo do Cavaquinho de Ouro (Carnaval de 1913), Grupo do Caxangá (Carnavais de 1914, 1915, 1917), Troupe Sertaneja (Carnaval de 1918). E o mais interessante é que alguns desses grupos carnavalescos vestiam trajes cangaceiros, com o nome de alguns dos mais famosos escrito no chapéu.

Quem sabe, alguma das agremiações atuais de Escolas de Samba do Rio de Janeiro não pesquisa esses grupos carnavalescos, como tema do próximo Samba Enredo da Escola?

***

Faca amolada, voltemos o fio à meada. O carnaval proibido da infância dormiu no meu coração por muitos anos. Até que, após um Congresso na UFPE, morando então em São Paulo e já mãe de família, encompridei meu tempo no Recife e encantei-me por um bloco de carnaval de Olinda, “Eu acho é pouco”. Foi no ano de 1982. Fiz então uma jura: de agora em diante, vou tirar o atraso de muitos carnavais. Desses que gosto: De rua. Com orquestra de frevo ao vivo.

Morando no Recife hoje em dia, nem precisa mais a viagem de avião. Pena que não dá para azeitar as dobradiças do corpo e já não dou conta das ladeiras de Olinda. Mas nem carece. O Recife oferece extenso menu de blocos que desfilam por ruas antigas, de belo casario, como a rua da Aurora, e tantas outras, que nossos poetas eternizaram. Afora existirem blocos que homenageiam nossos poetas, como Clarice Lispector na Praça Maciel Pinheiro, Manuel Bandeira na rua da União (Bacanal) e na beira do rio Capibaribe (Cinza das Horas).

E viva o carnaval do Recife! E viva o Maestro Spok.

Há vinte anos

02 de fevereiro de 2025

Dezembro de 1995. Vejo na última página do meu livro Brasileiros longe de casa (Cortez Editora, 1999), a fotografia que fiz com minha kodak do casal Jô e Zé, na comemoração do Natal em Framingham, área metropolitana de Boston. Estávamos lá eu e meus dois filhos. Houve amigo secreto e sorteio de uma cesta de natal, e fui sorteada, e torcia para não ser eu a sorteada, porque imaginava o que de fato continha: produtos brasileiros, chocolate Sonho de Valsa, símbolos do que havia ficado para trás no Brasil.

A celebração foi na paróquia de São Tarcísio, principiando pela costumeira missa do Padre Roque (que nunca demorou menos que duas horas), gaúcho da ordem religiosa dos scalabrinianos. Naquele dia houve teatro, daquele tipo que se encena em colégios do interior. O script foi a saga de José e Maria procurando lugar para o nascimento de Jesus, tendo que atravessar o Muro de Tijuana, no México.

Nas minhas observações participantes da pesquisa de 1995, frequentei muitas missas aos domingos naquela igreja, seguida de um lanche, onde se contavam as novidades do Brasil, notícias da imprensa brazuca (o Brazilian Times continua firme e forte por lá), compartilhavam-se experiências de trabalho, da vizinhança… Naquele dia não era um lanchinho qualquer. Todos os ingredientes de uma ceia de Natal faziam parte da farta mesa.

Para fazer as entrevistas, ia sempre de trem, pois existia uma linha que conectava Newton, onde eu morava, com Framingham. Mas aquele inverno foi brabo, dos mais rigorosos, com tempestades de neve que fecharam escolas, e precisava alugar um carro para seguir adiante com as pesquisas. Dessa segunda vez que morei em Boston como Visiting Scholar do MIT, levei meu filho caçula (o mais velho me acompanhara em 1990/91). Em dezembro, porém, de férias da USP, Miguel foi ter conosco. Era minha esperança para poder alugar o carro, pois minha carteira de motorista estava vencida e eu só fui perceber lá.

Desde minha primeira vez em Boston, tive a sorte de conhecer um americano que havia sido do Peace Corps quando jovem, conhecera na Bahia, naquela ocasião, uma moça por quem se apaixonou, casaram-se, e moravam em Newton com três filhos na faixa de idade dos meus. Ele acompanhava passo a passo na imprensa americana tudo o que era publicado sobre o fluxo migratório de brasileiros, que engrossava a cada ano. Esse precioso arquivo de jornal foi de muita serventia para minha pesquisa.

Pois bem, quando soube do problema de minha carta de motorista vencida, esse amigo americano se prontificou a ir comigo e meu filho alugar o carro numa agência no centro comercial de Newton, e tentar conseguir para mim, já que para meu filho não poderia, porque ele ainda não completara 21 anos. E agora? “Deixe comigo”, recomendou. “E você fique calada lá, enquanto eu negocio o aluguel do carro. Faz de conta que ainda não fala nada em inglês”. Quando a moça mostrou para ele, escrito em vermelho, a data em que expirara a validade do meu documento, ele retrucou que “expira” em português nada tinha a ver com “expired” em inglês. “E qual a data de validade da carteira?”. Ao que ele respondeu, com a maior cara de pau, que “No Brasil a carteira de motorista não tem prazo de validade”. A moça, por tudo o que aprendera na vida, não poderia duvidar da palavra dele. E na saída, quando nos despedimos na calçada, ele ainda comentou, “Pensa que jeitinho só existe no Brasil?”

Miguel ao volante do Ford Escort branco, eu copiloto, Pedro no banco de trás, segurando a travessa com uma salada de bacalhau; lá íamos nós, naquele 24 de dezembro de 1995, a caminho de Framingham. A temperatura abaixo de zero. Ruas abertas com sal em cima da neve pesada. Aquela neve acumulada nas ruas e calçadas, feia, que já não tem o brilho e a alegria dos primeiros flocos, brancos, brancos, iluminados por um dia de sol de inverno, lindos!

Tudo isso me veio à lembrança quando fui procurada por Laura Greenhalgh no começo da semana para uma entrevista (que será publicada no Eu & Fim de Semana, do Valor Econômico) sobre os imigrantes brasileiros no contexto das novas medidas de Donald Trump. Comigo, ela queria saber mais que os fatos divulgados pela mídia e redes sociais. Seria como uma contextualização desse que foi um dos mais recentes fluxos de migrações internacionais para aquele país, iniciado em meados dos anos oitenta do século passado. Eu acompanhei essa migração em vários momentos de pesquisa, desde 1990 a 2000, com dezenas de artigos publicados, e o livro citado ao início dessa crônica, que pela primeira vez deu visibilidade ao fenômeno.

Para essa entrevista, mais importante do que continuar acompanhando as notícias, que muito se repetem, era ler o que escrevera no livro. Ah, meus amigos, minhas amigas, que experiência inusitada! Não é que a gente se esquece de muita coisa?

Rosa (nome fictício) desembarcou em 1987 no aeroporto de Miami, a caminho de Boston. Com visto de turista (que foi a porta de entrada de muitos que permaneceram indocumentados e aos quais, de diferentes maneiras, os patrões americanos faziam vista grossa, pois precisavam daquela mão de obra), em algum momento Rosa falou algo que despertou desconfiança dos agentes da imigração.

“Daí se seguiram muitas perguntas, que resultaram em 16 horas de espera e num tremendo estresse, que culminou na descoberta de que eu não estava apenas de férias, mas que havia me demitido do emprego na empresa de mineração onde trabalhava em Belo Horizonte. O passo seguinte foi a minha deportação. Fiquei quase todo tempo algemada na cadeira onde prestava depoimento. E fui levada sob escolta até dentro do avião, para volta ao Brasil. Foi terrível, senti na pele o sentimento de fracasso e de que tudo estava perdido. (…) Chegando em Belo Horizonte, tomei um ônibus e fui direto para a casa de minha mãe em Sete Lagoas. Não queria ver ninguém. Cheguei de olhos ainda inchados de tanto chorar, e dormi quase 24 horas seguidas, tão cansada estava. Lembro ainda que, no meio daquele desespero e daquela vergonha, eu ainda disse para a mulher que cancelou meu visto: você pode até cancelar, mas eu volto, eu volto de navio, eu volto a pé, mas eu volto.”

A saga de Rosa para conseguir entrar clandestina nos Estados Unidos à caminho de Boston, onde estavam amigos mineiros que lhe dariam apoio para encontrar trabalho, passou ainda por uma tentativa de viagem de navio, que não resultou, e outra, também de navio, escondida com mais dois rapazes, no porão do navio numa viagem partindo de Ilhéus e que durou 35 dias, à base de biscoito e água, sem poder fazer barulho algum, até chegar finalmente à Filadélfia, vestida de homem e, tão fraca que mal conseguia andar.

Nas entrevistas, que em grande parte foram em grupos, o tema da aventura de entrada nos Estados Unidos ocupou páginas de transcrição. O que era comum à maioria delas, foi o tempo de chegada desses pioneiros, em grande parte provenientes do entorno de Governador Valadares.

Quando escrevi o livro, baseada nos dados quantitativos dos imigrantes brasileiros por mim entrevistados em 1995, na pesquisa amostral realizada em Governador Valadares em 1997, e no Censo Americano de 1990, constatei que o período de pico dessas migrações foram os três últimos anos da década de 1980. A explicação corrente para essa emigração, foi a “Década Perdida” (os anos oitenta do século XX).

Complementando essa explicação, eu escrevi, em artigo publicado em 1995:

“A chamada década perdida foi na verdade muito mais que uma época de recessão econômica. Nela, a sociedade brasileira se mobilizou e criou esperanças. O país se redemocratizou. Segmentos da sociedade se organizaram politicamente, partidos e movimentos sociais foram criados, o povo foi às ruas para exigir eleições diretas para presidente, voltamos a exercer o direito do voto para eleger o presidente. A inflação, o desemprego e a recessão não vieram sozinhos, mas junto com muitas perspectivas promissoras, e até vislumbres de saída da crise com o Plano Cruzado, ou as promessas políticas que se renovavam a cada eleição e cada fator de mobilização popular. O fator político teve, portanto, um peso na balança dessas migrações internacionais brasileiras, se se consideram as esperanças e frustrações dos primeiros anos de nossa redemocratização.” Naqueles três anos do final da década, foram três os planos econômicos que criaram esperanças e desilusões na população brasileira.

Hamilton era um ótimo interlocutor dos meus escritos, quando o tema lhe interessava. Escutando quando li para ele a minha versão do livro sobre o pico das migrações de brasileiros aos Estados Unidos nos três últimos anos da década dos oitenta, ilustrado por um gráfico, foi ele quem batizou esse período como “Triênio da Desilusão”. Grande sacada, Zé Hamilton.

Nessa crônica, escrita porque Guilherme anda me cobrando as domingueiras, meus leitores terão, ao impacto de uma releitura, alguma coisa do livro, alguma coisa do making off do livro, enquanto espero a matéria que Laura Greenhalgh publicará no Valor Econômico.