A Primavera chegou

22 de setembro de 2024

Mal chegou, alegrando um sábado de sol, já ameaçou recolher-se e esperar o verão. Agosto anda brabo. Hoje, enquanto o sol nascia entre nuvens, numa Aurora acanhada, agosto insuflou os deuses da mitologia grega e da mitologia yorubá, para mandar todos os ventos anunciando chuva. E aí está o resultado: são 6:15 da manhã, e nem sombra de corredores e caminhantes do calçadão. A chuva ainda não chegou. Espera-se a qualquer momento, depois do aviso prévio. Ou não. Pode ser só para assustar.

A Mulher do Sétimo Andar gosta de caminhar no calçadão, ou na areia da praia, aos domingos. Bem cedo. Aos preparativos para as partidas de futebol, ou para os grupos de corredores.

Bom mesmo, quando pode dormir mais cedo no sábado, para poder acordar às 4:30 da madrugada, dia ainda escuro. Como hoje. Foi tomar um copo d’água no filtro, estendeu o tapete de Yoga no quarto, e deixou a cortina aberta, para ficar atenta à Aurora. O dia verdadeiramente só principia com o nascer do sol. O momento mais sagrado do dia. Mais do que o anoitecer do Ângelus e da Ave Maria.

Enquanto o sol não clareia o dia, ela faz alongamentos, para preparar as cansadas pernas e pés para carregar com ela o corpo de 79 anos. É o preço pago para permanecer vivendo. Se o corpo parar, desce a ladeira. Aposenta-se da vida. Fica inerte vendo televisão. Com o tempo, o corpo já não anda, e pede uma cadeira de rodas.

Credo!!! Sai pra lá, capiroto! “Eu quero mais é viver!”, pensa alto a Mulher do Sétimo Andar. E espia pela janela do escritório. Espia o movimento no calçadão e na praia. Praia deserta. No calçadão, uma única mulher caminhando com sacola, bolsa e uma sombrinha amarela armada à espera da chuva. Certamente a caminho do trabalho em algum domicílio.

Maré alta. O barulho raivoso do vento é maior do que o suave murmurar das ondas, desmanchando-se em leite na areia.

Domingo passado, ela lembra agora, vésperas de lua cheia, a maré amanheceu muito baixa. “Maré seca”. Essa expressão tão controversa aos ouvidos alheios às praias nordestinas. Como maré seca, se o mar continua cheio de água? Naquele domingo, a Mulher do Sétimo Andar fez uma caminhada memorável, pelas areias úmidas da beira mar. Caminhando no plano. A planura do fundo das águas sem as águas. Ah, pudesse caminhar assim todos os dias… Ela pensa: “eu não queria ser prefeito e nem presidente da república. Eu queria mesmo era ser dona do tempo. Aí decretava que as marés não obedeceriam mais aos ciclos da lua, mas sim ao prazer dos habitantes da terra: maré baixa pela manhã, maré alta à tarde. A noite, dona maré, fica a seu gosto”.

Pois bem, no domingo passado, no caminho de ida, a praia parecia um deserto. Na volta, porém, quando foi se aproximando do Pina, onde é grande o espaço de areia firme entre o mar e a areia fofa, começava-se a armar as barras para as partidas de futebol na areia. Ficou espantada com a quantidade. Nunca, antes, vira tantas barras de gol. Contou sete (eita, conta de mentiroso! Mas, se contar com os três campos de futebol próximos ao calçadão, são sete mesmo). Nenhum dos jogadores da praia estava ainda jogando. Eles dividiam tarefas de armar as barras na areia, e delimitar com os pés o espaço do campo.

No decorrer da semana, a Mulher do Sétimo Andar observou que havia caminhões da prefeitura remendando os alambrados do campo de futebol que fica em frente à sua janela. E ela ficou matutando: é isso mesmo. Esse é o tempo de aproveitar, que o dinheiro dos políticos em campanha anda frouxo. Aproveitar para melhorar os equipamentos de lazer. O pão nosso de cada dia, esse, Deus dará. Porém, e o circo? Esse a gente pede aos políticos, enquanto dura a campanha eleitoral.

Mas, para não encerrar assim, com pensamentos tão sombrios, uma crônica domingueira, a Mulher do Sétimo Andar volta ao título: a primavera chegou. E chega-lhe uma lembrança boa… de um pintor que gostava de pintar mulheres. Era uma vez, estavam sentados os dois na areia da praia do Guarujá, e ela ouviu da boca dele, enquanto espiava as moças caminhando à beira mar: “como eu gosto dos dias de sol e calor, quando as mulheres mostram mais o corpo!”

Diário do Pina

08 de setembro de 2024

Agosto tomou-se de gosto pelo poder e não está querendo passar o tempo para a primavera de setembro. No Recife, sabe-se, de longa data, que agosto é o mês dos ventos, a despedida do inverno. Mas esse ano de 2024 está marcando uma inflexão nos tempos do mundo. É surpresa para todo lado. E não têm sido alvissareiras, as surpresas. Aqui no Recife, ventos e chuvas não deixam o verão chegar.

Ontem, o tempo ainda deu uma colher de chá para o feriado, que aqui é tradicionalmente o dia da abertura oficial das praias. No Recife, nos tempos em que ainda se ia às ruas para assistir aos desfiles, as pessoas se dividiam entre os que iam às ruas e os que iam às praias. Hoje em dia, que os desfiles perderam prestígio, sobrou a praia.

E a Mulher do Sétimo Andar espiava ontem, de sua janela, a praia do Pina em dia de festa. Olhando para o lado esquerdo, lá está o “Buraco da Velha”: um piscinão de águas quentinhas, protegido pelos arrecifes, e longe da sanha dos tubarões. Uma vista linda! Com o colorido das barracas pintando o areal mais extenso dessa orla.  

Mas alegria de pobre dura pouco. Ela acordou hoje pela madrugada com ventos e chuvas fortes. Voltou a dormir. De manhã, o sol não apareceu. Com nuvens escuras no céu, a chuva, contudo, deu uma trégua. Estiou. Alguns ainda armaram barracas na praia.

De sua janela, a Mulher do Sétimo Andar tomou a maçaranduba do tempo, e viu que dava para ir até o mar. A quanto tempo não toma um banho de mar com gosto? Esperando setembro, que não chega. Maré cheia, nem pensar em entrar num mar revolto e cor de caldo de cana. Mas pelo menos chegar perto, ouvir o quebrar das ondas, molhar os pés. E foi. No caminho, viu que os jogadores de futebol de um dos campos já haviam terminado a partida e estavam onde sempre ficam todos os domingos: à sombra de uma Castanhola, com cadeiras de praia e isopor com cervejas. Jogadores no outro campo, apito do juiz. Tirou a sandália para sentir a areia. O prazer do tato na sola dos pés: grama, areia dura, areia mole, molhada pela chuva da madrugada, morrinhos para os pés, massagem.

O mar sem vivalma. Mar de agosto, em dia de chuvas e ventos, amedronta. Mais que tubarão. Molhou os pés. Pediu a bênção a Yemanjá para uma decisão importante que precisava tomar naquele dia. Vontade de ficar mais tempo espiando o infinito do mar, mas o corpo pedia para voltar. Ficar em pé cansa.

Quando se virou de costas para o mar, ouvindo ainda sua sinfonia em harmonia com os ventos de agosto, teve uma surpresa inusitada. Algo que não tinha notado na chegada. Pedaço de um tronco de árvore, na horizontal, bem fincado na areia, no final do quebra mar. Parecia um presente dos anjos do céu. Sentou-se. Um banquinho só para ela. Agora podia apreciar o mar e os corajosos caminhantes em terreno inclinado. Metade deles com cachorros que corriam soltos atrás, à frente, sorrindo, como sorriem os cães.

De um deles, ouviu uma ordem: corre Nina, corre. Enquanto ele, satisfeito, caminhava a passo rápido com a coleira na mão. Quanto tempo ficou ali sentada a Mulher do Sétimo Andar? Ficaria mais, não fosse um novo vento que chegava raivoso, anunciando chuva. Foi só o tempo de pegar o par de sandálias que pousava junto a ela no banquinho, e voltar sem pressa. Já no calçadão, calçou as sandálias e viu um quase redemoinho fazendo uma dança das folhas marrons caídas das castanholas.

Não chegou a se molhar. Foi até o chuveiro da garagem para lavar os pés de areia, e então caiu um pé d’água de respeito, para agosto nenhum botar defeito. Mas pelo menos voltou para casa com a decisão tomada. No dia seguinte, encomendaria as telas para as janelas. Só faltou escolher o nome. Porém, para isso, precisaria conhecer pessoalmente a felina tricolor e vira-lata.

Diário do Pina

31 de agosto de 2024

A Mulher do Sétimo Andar voltou a caminhar com regularidade no calçadão da Avenida Boa Viagem. Foi uma grata surpresa reencontrar alguns personagens, que já foram protagonistas de suas crônicas. Um deles, desses que limpam a vista da gente, é um jovem negro atlético, que corre descalço, só de calção de banho, segurando uma coleira em cada mão, e sem dar a mínima para os dois cachorrinhos que exploram soltos as delícias do calçadão e entorno. Reparou que ele criou gordurinhas na barriga. Ah, meu jovem, a idade chega para todos!

Como não lembrar o filme que ela viu recentemente, Testamento? O filme se passa em um residencial de idosos do Canadá. O diretor tem um belo curriculum na carreira artística. Entre as cenas no espaço interno da bela casa e a área externa, vários enredos se sucedem. O protagonista/narrador é um velho, com o qual ficamos simpatizando desde a primeira cena. Logo ao início, ele aparece  caminhando tranquilamente em um parque. Ao voltar, encontra outro morador, acabado de chegar de extenuante exercício de bicicleta, sendo recebido no meio fio da calçada pela dedicada esposa, ansiosa para saber qual o recorde atingido por ele naquele dia. Vemos ele tirar o capacete, os óculos, começar a entortar a boca e cair mortinho da silva. O desespero da dedicada esposa, gritando para todos ouvirem a vida de exercícios e alimentação saudável do marido, um hércules, que ainda trepava com apenas meio viagra! Como morto? Era um equívoco de Deus.

Talvez o que faça a diferença seja fazer exercícios e caminhadas por prazer, ou fazer como lição de casa prescrita pelo médico.

Em sua longa trajetória de caminhante, desde que veio morar no Recife em 2007, a Mulher do Sétimo Andar já presenciou muitas mudanças. A começar pelo próprio calçadão, que trocou as pedras ditas portuguesas, pelos tijolinhos ecológicos com belas cores neutras. Na época, ela lembra que foi uma querela danada na imprensa: os defensores da tradição ardentemente contrários aos tijolinhos ecológicos. E o resultado calou a boca deles: ficou tão bom, que ninguém nem se lembra mais daqueles tijolinhos ditos portugueses, irregulares, com um cimentado ao meio, horrível e estreito para os caminhantes.

Parecia até que, com a mesma área de antes, aquele calçadão crescia. E cresceu. A estreita faixa de cimentado era agora o calçadão inteiro. E hoje, aos finais de semana, os velhinhos madrugadores precisam firmar bem sua caminhada mais lenta e seu privilégio de velhos, para disputar com os inúmeros grupos de jovens fardados com camisetas iguais, olhando para os relógios que marcam o tempo, pegando água e banana junto aos apoios, e depois lotando todos os cafés da manhã dos restaurantes de Boa Viagem, que descobriram esse filão domingueiro.

A atual, é a terceira versão das antigas barracas de coco, que eram cobertas com palhas secas dos coqueiros. Há muito essas barracas vendem muito mais que a saudável água do coco verde, com direito à laminha raspada da volumosa casca, com uma lasca do próprio coco servindo de colher. Uma dessas barracas, recentissimamente, sofisticou ainda mais a oferta, com um dia na semana com ostras ao som de jazz.

O horário da caminhada madrugadora, à luz da Aurora, sempre foi o preferido pelos mais velhos. À tardinha/noite chegam os skates, os caminhantes mais jovens, ciclistas que aproveitam o escuro para invadir o calçadão, em vez de usar a pista de bicicleta cheia de curvas. A paisagem humana é variada no calçadão. Um dos poucos espaços democráticos onde cabe ricos e pobres, jovens e velhos, pagãos e cristãos, bonitos e feios, alegres e tristes. E os cães sem dono. E os pets de coleira. No decorrer desses 17 anos de caminhada, alguns velhos sumiram do calçadão. A taxa de mortalidade dos velhos homens é cruel, em comparação com as mulheres, que continuam firmes: algumas debulhando um terço, outras de cabelos longos, saia e tênis: as evangélicas.  O calçadão aceita todas as religiões.

A Mulher do Sétimo Andar sempre se distraiu, enquanto caminha, escutando flashs de conversas. Construiu muitas histórias com esses retalhos de prosa. Hoje ela observa como é visível o avanço das igrejas evangélicas. O motoqueiro evangélico, que vai ao trabalho diariamente às 6 da manhã (antes era às 5:30 – deve ter melhorado de posto no trabalho), foi quem inaugurou espalhar a palavra de Deus aos brados, cumprimentando os caminhantes enquanto entoa cantos de louvor. Depois surgiu um ciclista. Hoje, ela cruzou com uma mulher de saia, conduzindo um carrinho de mão cheio de cocos verdes, e pregando, profetizando: o mar invadindo a praia, as queimadas tomando conta do mundo, os ventos uivando: recados de Deus aos homens infiéis. Ao passar pela portaria do prédio, o zelador explicava para o porteiro da noite, que naquele tempo os anjos desciam à terra.

E a Mulher do Sétimo Andar segue seu caminhar, pensando: são dois empregos bons, bem remunerados: pastor de igreja evangélica e político. Estes, que só aparecem nos períodos pré-eleitorais, sempre sorrindo, barriga cheia, nas bandeiras de coloridos diversos a tremular à brisa do Recife. Para não pensar no assunto (deixa esse pensar para os jovens militantes), espia apenas as bandeiras coloridas plantadas no calçadão, como se elas não tivessem conteúdo algum, apenas tremulassem em cores.

Emília

Vestidos de noiva de Emília Guilhermina de Azevedo

15 de agosto de 2024

Frei José Milton de Azevedo Coelho, OFM, publicou em 2011 o livro Em busca das raízes – Genealogias de Famílias Bezerrenses. O lançamento foi eu uma pousada de Serra Negra, distrito de Bezerros, com grande comparecimento de vários dos familiares citados na genealogia. Miltinho, como era chamado em família, era primo de meu pai. Adriano, meu primo, um dos 11 filhos de tia Mariana, irreverente, lá estava no dia do lançamento, curioso para conhecer “a primeira foda”.

Emília Guilhermina de Azevedo era chamada “Mãe de Casa”. Nasceu em 15 de agosto (dia em que escrevo esta crônica) de 1836, e morreu em 1929, com 93 anos de idade. Viúva do segundo casamento, continuou morando na mesma casa onde nasceram seus filhos, com a família do caçula, Yoyô Guilherme, meu avô. Ajudou minha avó Palmira a criar os filhos.

Foi casada em primeiras núpcias com o viúvo septuagenário Luiz José de Vasconcellos em 1851, portanto, com 15 anos. Porém, em duas outras passagens do mesmo livro, Frei Milton se refere ao fato dela ter casado com 12 anos, ainda menina. Ouvi essa história pela boca de meu pai, grande contador de histórias, em almoços festivos na casa de Garanhuns. Ele se referia a ela ter casado menina de 12 anos, como castigo do pai por ser muito desobediente. E que teria levado, junto ao enxoval, a coleção de bonecas.

A semana passada, estive finalmente na “Casa da Cultura” (antiga Estação Ferroviária) de Bezerros, para ver os dois vestidos de noiva dessa minha bisavó Emília. Infelizmente, pela inaptidão da fotógrafa, e pelo empecilho da vitrine onde estão expostos os vestidos naquele museu, a foto que segue com esta crônica não é fidedigna às cores e à beleza dos vestidos branco e verde.

O primeiro marido de Emília, era um rico fazendeiro em municípios agrestinos ao redor de São Joaquim do Monte, Camocim de São Félix, Bezerros… Não encontrei a data do nascimento nem da morte desse primeiro marido de Emília. O que se sabe é que ela só veio a se casar de novo aos 36 anos, em 1872, com um comerciante remediado de Bezerros, José Antônio de Mello. Pela foto da casa de meus avós, recordo que a Mãe de Casa não era uma mulher especialmente bonita. Porém, certamente seria cobiçada por muitos: uma viúva virgem e rica, dona de latifúndios e escravaria. “Ela dizia que podia casar de véu e capela. Mas casou de verde”, segundo o autor do citado livro. Mesmo sendo virgem, a igreja católica, à época, não permitia que as viúvas se casassem de branco.

Possivelmente pela idade avançada (36 anos), Emília Guilhermina de Azevedo teve apenas 5 filhos: Maria José de Azevedo Mello (Lilia), nascida em 1874 (morreu em Bezerros aos 107 anos de idade); José Antônio de Azevedo Mello (Zuzinha Guilherme), nascido em 1876; Inês Guilhermina de Azevedo Mello; Silvério de Azevedo Mello; e o caçula, Francisco de Sales de Azevedo Mello (Yoyô Guilherme).

O meu avô se chamava Francisco de Sales em homenagem ao santo italiano, sendo Emília uma mulher devota e conhecedora das histórias de santos. (Aqui no Brasil é mais comum os Franciscos de Assis, outro santo italiano). Porém, no cartório de Bezerros, o registro do sobrenome dos descendentes de meu avô, passou a incluir o Sales no sobrenome.

Uma coisa que sempre me pareceu estranha: os apelidos Zuzinha Guilherme e Yoyô Guilherme. Fui pesquisar no livro do frade. E foi mais um dado a me indicar que, ao contrário de toda reverência, patriarcalmente prestada através dos José Antônios e Franciscos, que se multiplicam por dezenas entre meus parentes, a grande matriarca da família foi na verdade Emília. Seu pai, o “Coronel” João Guilherme de Azevedo, homem importante naqueles Agrestes,  colocou o sobrenome Guilherme nos filhos e Guilhermina nas filhas. Permaneceu na descendência, porém, apenas o sobrenome Azevedo.

Pois não foi em deferência ao pai de Emília, os codinomes Zuzinha Guilherme e Yoyô Guilherme? De pouca serventia foi o Mello herdado de José Antônio.

A história dessa “Mãe de Casa” sempre me encantou. Há anos, tomei-a como inspiração para um romance inédito, que dá corpo e desejo aos personagens, e um rumo diferente à descendência de Emília. Hoje, aos 188 anos de seu nascimento (em 15 de agosto de 1836), publico nesta crônica um fragmento daquele romance. Os mais afeitos à literatura, verão nesse fragmento a influência de Nabokov (Lolita) e Kawabata (A casa das belas adormecidas). É isso mesmo.

***

“Era uma vez uma menina que vivia com o pai, a mãe e sete irmãos. O pai, dono de terras e escravos, criava gado. Por ser a única filha, Emília foi sempre a preferida do pai. Porém era traquina. Teimava em contrariá-lo. Com os irmãos e filhos de moradores e escravos, saía de casa a armar arapucas para caçar passarinho ou matar lagartixa com estilingue. Era proibida de entrar na mata, lugar de homem. Quando desobedecia, e desobedecia muito, recebia como castigo não tomar banho de rio. Entre a floresta e o rio, Emília floresceu em prazeres proibidos e punições. Que não a impediram de ser amada, quase venerada, pelo pai.

Vizinho deles morava o fazendeiro mais rico da região. Velho, mais de setenta anos, viúvo. Todo dia, depois do almoço, vinha tomar um cafezinho e ter um dedo de prosa com o pai de Emília. Da última travessura, sorriu olhando nos olhos da menina e disse sério, como a completar o castigo do pai:

– Da próxima vez, venho te buscar para casar comigo.

Emília tinha acabado de completar doze anos. Seios de umbu maduro, os primeiros pelos pubianos. Ainda não menstruara. Casou-se como uma princesa de contos orientais.

Foi no ano da graça de 1848. Levou, com o enxoval, as bonecas. O marido mandava buscar no Rio de Janeiro mais bonecas, as mais bonitas. E Emília criou caprichos: até costureira à disposição dela e das bonecas. O véu e a grinalda do vestido de noiva faziam parte de seu tardio brincar de menina.

A mucama recebeu ordens para não deixá-la ir à mata. Mas Emília desobedecia. Sem castigo, tomava banho de rio todo dia, num sítio com cachoeira.

Um dia o marido soube. À noite, à hora da ceia, olhou a menina de tranças amarradas com laços de fita, um vestidinho de algodão enfeitado de rendas. Sentou-a no colo. Beijou-lhe a face assustada. Emília sentiu embaixo da coxa esquerda algo se avolumando. Com graça, assentou-se mais à vontade; o velho a lhe dar na boca doce de goiaba em calda feito pela negra cozinheira, com queijo de manteiga mandado da casa do pai dela. Sentiu um calor que subia pelo corpo como o vento da mata e descia como a cachoeira.

Enquanto o marido lhe implorava, como a uma rainha, um bom comportamento, ela, sem olhar para ele, mexia de leve a bundinha.

Nessa noite, a mucama foi dispensada dos serviços de quarto. Emília deixou-se despir de costas, olhando para a janela de onde ouvia, no escuro de uma noite sem lua, o farfalhar das folhas do cedro. Levantou os braços, como fazia para a mucama, para fazer deslizar pelo seu corpo magrinho a camisolinha branca bordada de bicos e rendas de bilro.

O velho vigiou o sono da menina. Imaginou o sonho que abria ligeiramente os lábios dela num sorriso e num murmúrio que ele não escutou. Esperava novos sonhos de Emília.

Passaram-se três noites de vigília. O rico senhor de terras cumpria preceito de caboclo pelo desabrochar da menina. Só se permitia espiar o sono dela. Para sufocar um desejo que se tornara insuportável, de dia trabalhava mais do que nunca, numa espera desesperada. Nem precisava. Para isso possuía escravos e moradores. Depois da terceira noite de vigília, saiu cedo de casa com uma dor no peito que já conhecia: gases de comidas mal digeridas. Precisava se alimentar com mais parcimônia. Nesse dia, voltou para casa só a tempo de fechar os olhos para sempre.

Emília, vestida de negro, assustada com a morte, menstruou pela primeira vez. Seu choro não era de viúva, mas de uma dorzinha no baixo ventre que desconhecia.

O pai quis levá-la de volta para casa. Mas a rebeldia de Emília dispunha agora do sustento da posse de terras, gados e escravaria. Viúva, guardava uma virgindade que atiçava os homens. Passou a se vestir de calças compridas, que mulheres não usavam naquele tempo, cabelos presos, chapéu, botas. Contratou professor. Aprendeu a ler, escrever, fazer contas e alguma coisa do mundo em histórias e geografias. Josué, filho da mucama, com quem penetrara em matas maiores que as da fazenda do pai, foi seu único colega de classe.

Não houve adolescência para Emília. Sua têmpera altiva resultou numa moça forte, de vontade própria. Alforriou sua mucama (a quem deixou que usasse o nome africano, Dallá) e o filho, Josué. Mandou que construíssem para eles uma casa próxima à Casa Grande, distante da Serra onde viviam os escravos.

Dona de seu destino, Emília passou a guiá-lo segundo a sua vontade. Fez prosperar as terras do finado marido, agora suas. Aprendeu por conta própria artes de mandar e ser servida, o que a acompanhou, mesmo depois de se casar, aos 36 anos, com um tal José, quatro anos mais velho que ela.

José era um homem alto, cabelos louros e ondulados, barba e bigode levemente ruivos de um antepassado holandês. Aparentava astúcia e fineza ancestral nobre, mas sem terras nem heranças.

Emília deixava para o marido todas as poses de mando. Da casa para fora. Da soleira da porta para dentro, continuou no comando do lar e dos negócios. Josué cuidando da contabilidade das fazendas.

Sete meses depois de casada, deu à luz uma menina que recebeu o nome de Maria Emília. Ninguém, nem o marido, ousou comentários à sua vista. A filha tinha os olhos verdes em pele escura, quase negra, única entre os irmãos que vieram depois, todos branquinhos.”

Chico Buarque 80

19 de junho de 2024. Hoje Francisco Buarque de Holanda completa 80 anos. A Rádio Cultura da Fundação Padre Anchieta dedica todo dia a homenagear o nosso compositor, cantor, poeta entre os grandes. Não consigo fazer mais nada além de ouvi-lo cantar suas canções, até dos outros, poucos, Cartola, Noel e Vadico, Ary Barroso, Dorival Caymmi. E fazer alguns passeios pela minha pretérita vida. Sou de uma geração que teve um grande privilégio: houve canções de Chico Buarque para cada pedaço de nossa vida.

Até quando nossos filhos eram pequenos, os de Chico e Marieta também eram, e houve a peça de teatro com aquelas músicas maravilhosas, pr’agente juntar às outras de cantar para os filhos. E sobrevivemos aos duros anos da ditadura militar ouvindo Chico Buarque. O exílio na Itália. O exílio de tantos. Caetano e Gil na Inglaterra.

Volta Chico Buarque ao Brasil. Censura prévia. A burrice dos milicos, deixam passar Vai Passar, até a ovação no Canecão, quando se deram conta e censuraram. Aí que a música virou o hino de protesto mesmo. E foi incorporada à campanha de Fernando Henrique Cardoso à prefeitura de São Paulo. Começo da abertura política. Minha vida era em São Paulo. O Movimento dos Profissionais por um Governo Democrático. Naquele tempo, congraçamento de todas as esquerdas. O amor era livre. Céus, quanta festa! A casa de outro Chico, o de Oliveira, no bairro da Pompéia, era um dos comitês da campanha de Fernando Henrique.

Isso foi antes do PT, que nasceu trazendo um verdadeiro partido, porém, ai porém. Com a contradição que é a vida, trouxe também a divisão, uma divisão estreita que só se aprofundou depois que voltou a democracia a nosso país. Um dos grandes comícios pelas Diretas Já, na Praça da Sé, calhou eu e Flora estarmos no meio de uns jovens que vaiavam todos os discursos: Franco Montoro, Ulisses Guimarães… E nós duas, com espírito de professora, Gente, estamos todos juntos por uma mesma causa. Mas de nada adiantava. Até que deliram quando chega Lula ao microfone. E eu, junto com eles, também: Aí conterrâneo! Nada entendiam. Parece que continuam sem entender.

E Chico continua cantando a sociedade brasileira, cantando o amor, a tristeza, a alegria, a vida. Sem trégua, compõe, canta. A mostrar que a arte não obedece ao descair do corpo. Que tenhas vida longa, Chico. Ver-te no vídeo hoje em dia mostra nossa idade, os de tua geração. Permanece teu sorriso, tua fina ironia, e teus olhos azuis, a me lembrar outros, verdes, que me acompanharam até o suspiro derradeiro.

Como se cada música de Chico Buarque nos levasse a um lugar, a um tempo. 1970. O apartamento 603B na avenida Conselheiro Aguiar. Eu atravessava a cidade, de Boa Viagem para a Cidade Universitária, carregando na alma e no corpo uma das mais belas canções de Chico, Samba e Amor.

E fico por aqui porque a vida segue. E essa breve crônica segue sem revisão, crua como nasceu, na emoção de ouvir nosso grande poeta.

Casinha de boneca

A Mulher do Sétimo Andar gosta de viajar. Principalmente porque tem chance de brincar de casinha. Por isso, em vez de hotel, ela escolhe sempre para se hospedar, flat. Os cenários mudam a cada novo local em que se hospeda. Em Lisboa, chegou a passar três semanas num desses apartamentos de aluguel por curtas temporadas. Que lembre, foi a mais longa experiência. Foi ali, em dias frios e chuvosos de um outono, que ela mais escreveu, alimentando o blocomomentear recém-criado.  

Mas suas experiências frequentes são mesmo em São Paulo, sua segunda casa, primeira por tanto tempo. É aqui que ela está agora. Veio comemorar o aniversário da entrada nos 80 anos. Nossa, nem parece…Pois é, meus queridos leitores, a Mulher do Sétimo Andar entra para nova década de vida nesse maio de gêmeos.

Afinal, o ano é esse. Foi nesse ano que ela despertou de um pesadelo, que incluiu até uma semana de hospital para tomar antibiótico. Sarou da bronquite, da diverticulite, e tomou-se de ânimo de comemorar a vida. Mas aí pensou: qual o charme de comemorar 79 anos? Se fosse 69, sim, um número cheio de significado sem vergonha… Aí que se lembrou de sua infância em Garanhuns.

Sua infância foi numa casa cheia de quartos e de empregadas e agregados na mesa da sala e na mesa da cozinha. Maria era irmã da cozinheira e às vezes aparecia na hora do almoço com os caçulas, Carma e Júlio. Ambos tinham a mesma idade dela. Só que, enquanto ela tinha 13 anos, por exemplo, Maria dizia que Carma e Júlio tinham entrado para os 14. Muda o verbo, muda o sentido: “entrou” e não “completou”.

Assim, para ter um número redondo que justificasse a festa, a Mulher do Sétimo Andar decretou: esse maio, entro para os 80. Mobilizou o filho de São Paulo, os amigos, marcou passagem, encomendou um bolo de noiva para levar, e foi. Está aqui. Já houve a primeira comemoração, com amigos de décadas, de desde quando viera morar em São Paulo. Aqueles com quem viveu o período festivo da redemocratização em nosso país.

Ah, foi uma noitada memorável. Calhou de ter sido uma noite de temperatura perfeita: nem frio nem calor. Seis em volta de uma mesa redonda, no aprazível jardim de um bistrô francês. Faltaram dois, que estavam fora de São Paulo. Principiaram com um pró-seco para acompanhar as entradas. Brindes. Presentes. Mais abraços. Ao ritmo da boa prosa de velhos amigos, chega-se à sobremesa. Mais champanhe. Agora, para acompanhar o bolo de noiva, com direito a velinha de luzes e parabéns. Novos brindes. Parecia até festa de russo, com tanto brinde.

Vocês, que já conhecem essa Mulher do Sétimo Andar, sabem muito bem que ela escreve assim, por caminhos tortuosos. Entra por uma perna de pinto e sai por uma de pato.

Casinha de boneca! Esse é o tema, mulher.

Dessa vez, a Mulher do Sétimo Andar tomou um susto danado quando, já na véspera da viagem, recebeu um comunicado da responsável pelo aluguel, com as orientações de como entrar no apartamento. Tudo informatizado. Um código para a primeira porta, outro para a segunda porta, de vidro, que dá acesso a uma escada de 21 degraus, o equivalente a dois pavimentos, para finalmente chegar ao quarto de número 3, nomeado Beija Flor, com mais um código para entrar. Gostou de saber que ficaria num espaço nomeado por um pássaro.  Contudo, no detalhamento das instruções, referia-se ainda a que, na porta de vidro e na porta do quarto, antes de digitar o código de sete números, teria que passar a palma da mão no visor.

Deus do Céu! Era muita tecnologia para uma mulher que estava sempre correndo atrás dos jovens para sobreviver nesse século XXI. O filho estaria trabalhando na hora do desembarque, mas não teve outra alternativa. Lá estava ele no aeroporto, todo satisfeito, como ficam os filhos quando sentem a sua valia para pais que eram tão sabidos. Ele transferiu uma reunião da hora do almoço para as 4 da tarde, e o que seria um tormento enfrentar sozinha, transformou-se num dia de boas prosas com o filho. Começava ali a comemoração da entrada nos 80.

Adorou o apartamento. Com o passar dos dias, acostumou-se às senhas, embora andando sempre com o celular e mais um papelzinho com as três senhas. Logo no primeiro dia, antes até de desarrumar as malas, foi às compras num hortifruti próximo, na rua Tabapuã. Minha senhora, que frutas! Que queijos! Poucos fregueses, sim, senhora, o rapaz pode acompanhá-la e nessa distância não cobra frete. Veio conversando com o rapazinho simpático, Carlos. “Moro no Morumbi”. Deve ter percebido um olhar admirado e completou: “Em Paraisópolis”. O Morumbi comporta todas as classes sociais.

De onde vem essa necessidade premente de fartura na mesa? Nunca passou fome. A imagem dos flagelados da seca que chegavam em Garanhuns em anos de estiagem? a vizinhança da fome? será daí?

Aos poucos, o pequeno flat foi sendo arrumado. Frutas em fruteiras improvisadas na mesa. É ver uma natureza morta: mexerica, banana, limão, abacate, mamão papaia. A mesa redonda de tampo de vidro não lhe agradou. Em vez dos joguinhos americanos de plástico, improvisou, com duas toalhas de banho, uma toalha branca na mesa. Ficou mais aquecida. Brincou de casinha o resto do dia. Nem saiu para jantar. O almoço tinha sido farto de comida e de prosa boa com o filho. Na ceia, ouvindo o piano de Tia Amélia, inaugurou a nova casinha, já toda arrumada, servindo-se de frutas sensuais, dignas de completar um dos poemas eróticos de João Cabral de Melo Neto. Sim, aquele mesmo, que fala das frutas nordestinas, que melhor comê-las na cama que na mesa, e que inspirou Alceu Valença a compor uma de suas canções de maior sucesso, Morena Tropicana.  Caquis vermelhos por fora e por dentro. Os misteriosos figos com suas doces reentrâncias molhadas.

Na primeira madrugada, acordou com o relógio biológico, que no Recife lhe desperta a tempo de saudar a Aurora. Aqui em São Paulo, a essa hora, o sol ainda dorme. Só entrará nesse pequeno apartamento pelas 10 horas da manhã. Os bem-te-vis anunciam os primeiros clarões. E ela cumpre a rotina. Principia com um copo d’água, limão, cúrcuma e própolis. Coloca primeiro os ingredientes e, ao ouvir o ruído do fio de água da torneira do filtro caindo no copo, transportou-se ao curral da fazenda. Todos ainda de pijamas e chinelos, na madrugada fria do Agreste, com um copo na mão, esperando a vez de chegar bem perto e ver o vaqueiro tirando o leite da vaca direto no copo, misturando o açúcar do fundo. O segundo copo já não seria açucarado. E voltavam para o aconchego dos cobertores, para mais um cochilo antes do farto café da manhã sertanejo.

Escova os dentes, lava o rosto com água fria, e arma um altar possível na mesa coberta com a toalha branca. A casca grossa da mexerica vira porta-incenso. Flores do campo dentro de um copo d’água, enfeitam a mesa de coloridos que conversam com as frutas. Improvisa uma meia luz de templo. Forra uma toalha de banho no chão. Duas de rosto farão as vezes de uma almofada de meditação. São 5:15 de uma madrugada sem sol. Coloca no JBL o som de Yoga & Meditação.

Tudo o mais que acontece na vida dessa Mulher do Sétimo Andar, durante as duas semanas em conhecidas terras paulistanas, teatros, museus, jantares, almoços, abraços, tudo o mais é lucro.

De cães e pets

A Mulher do Sétimo Andar espia pela janela do sétimo andar. São 7 horas da noite de segunda feira, 8 de abril de 2024. As luzes potentes dos postes do calçadão estão acesas e dá para ver os ciclistas da noite. Uma noite enfim fresquinha, com a brisa do mar. Os dias têm sido tão absurdamente quentes, que nem à noite refresca. Mas hoje sim, está agradável, como costumam ser as noites recifenses.

Um cachorrinho vira-lata caminha faceiro pelo calçadão. Chega a um recando da pista de ciclismo onde se juntou água das chuvas da madrugada, e bebe água com o focinho para baixo, à maneira dos cães. Daqui de cima não dá pra ver sua língua espichada. Assusta-se com um ciclista que passa quase o atropelando, e se safa com a agilidade aprendida pelos cachorros de rua, pulando de volta à calçada. Volta para beber água na mesma poça e, dessa vez, a outra bicicleta que se aproxima, vem na mão oposta, e ele consegue matar a sede. Espio quando caminha por onde veio, pelo calçadão. Pelo andar, deve ser um cão jovem.

E pelo tamanho e cor dos pelos, faz-me lembrar o vira-lata de meu filho Miguel. Jota chegou novinho lá em casa, ainda em São Paulo, juntamente com sua mãe, Priscila, presente de minha sobrinha Joanna. Quando nos mudamos para o Recife, trouxemos os dois. Antes da viagem, Miguel havia ido comigo à rua Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, para comprar vários transformadores para adaptar os eletrodomésticos de 110w à energia de 220w do Recife. Mas não é assim tão simples.

A geladeira pifou. Chamamos um técnico da redondeza de Pau Amarelo, onde Miguel ficou morando comigo, enquanto se fazia a reforma de meu apartamento do Pina, e enquanto escolhíamos a casa dele em Aldeia. Aí que se deu um diálogo interessante com esse precário técnico. Quando soube que os dois vira-latas haviam viajado conosco de avião, ele não se conformou. Na certa pensou, lá com seus botões: eu nunca viajei de avião, como pode, trazer de tão longe, esses dois vagabundos de rua? Perguntou mais de uma vez: mas eles vieram de avião? Pagando passagem e tudo? Não se conformava. Ainda por cima, que Jota não havia simpatizado com ele, e precisamos trancá-lo para não agredir o homem. Chegou a nos oferecer um cachorro de raça que o vizinho dele queria vender.

Jota adaptou-se bem à casa da praia de Pau Amarelo, à casa de Aldeia, desde que estivesse junto ao dono. Como todo cão. Anos depois, a mãe adoeceu e teve de ser sacrificada. Quando Miguel saiu com ela de casa, sangrando, Jota percebeu a situação e ficou chorando, como choram os cães. Quando viu que o dono voltou sem ela, chorou mais ainda. Mas logo meu filho mostrou a coleira, ele balançou o rabo de alegria, e, depois de um bom passeio pela redondeza, já nem se lembrava mais da tristeza. E Miguel comentava: como é rápido o luto dos cachorros.

Pensa tudo isso a Mulher do Sétimo Andar, espiando o cachorrinho sem dono caminhando pelo calçadão. Observa ele entrar no terreno entre o calçadão e a praia. Terá ali encontrado algum resto de comida? A liberdade de não ter coleira costuma ter um preço alto para o estômago. Naquele terreno, certamente terá o cheiro de muitos cocôs de seus colegas de coleira, os pets. Ele é apenas um cachorro.

A Mulher do Sétimo Andar perdeu o gosto de caminhar pelo calçadão, por causa do cheiro de cocô de cachorro desse terreno tão aprazível. Aqui no Pina, essa parte arborizada é mais larga. (Quando o mar começar a invadir a avenida Boa Viagem, o Pina será o último bairro a ser atingido, pela distância entre o mar e a avenida). A regra de quem passeia com seu pet, é levá-lo a essa área bonita e arborizada com coqueiros e castanholas, para fazer cocô. Recolher o cocô em um saquinho de plástico? É coisa para poucos. Para ir até o mar, a pessoa terá que olhar com cuidado onde pisa. Às vezes, até no próprio calçadão. A incivilidade campeia na avenida mais rica e mais policiada da cidade.

Nas madrugadas em que escreveu os capítulos finais do livro sobre Canhoto da Paraíba e João Pernambuco, a Mulher do Sétimo Andar vem observando o movimento da rua. Há uma sutil mudança na relação de classes sociais. Como se a periferia tivesse iniciado uma ocupação, quase imperceptível a olho nu. O bairro do Pina está imprensado entre a comunidade do Bode e Brasília Teimosa. Às três da madrugada, enquanto o forte esquema de policiamento não chega, uma afronta juvenil, palavrões, risadas altas, sobe do calçadão para os prédios encastelados da avenida. O calçadão é deles. Arreganham os dentes à riqueza encastelada.

Para manter a beleza dos equipamentos urbanos, dos novos banheiros públicos do calçadão, há que mantê-los vigiados durante o dia por um guarda homem e uma mulher. (Ah, os banheiros públicos de Tóquio!). Enquanto os policiais não chegam, permanecem fechados e com grades nas portas. Como a cidade toda não pode ser vigiada, ou o governo teria que gastar um bom pedaço da verba pública para pagar policiais armados, as grades de proteção da linda Via Mangue foram roubadas. O lixo e a violência se acumulam nas calçadas da rua, nas beiras dos rios cantados pelo poeta João Cabral, pela cidade inteira. Uma cidade deserta.  Nos restaurantes de luxo da rua Capitão Rebelinho, no Pina, os frequentadores terão que descer em frente à porta de entrada, deixando o carro com o manobrista. A conexão de informática às vezes falha, porque foram roubados os fios das gambiarras deixadas na fiação de rua. Prato cheio para propostas truculentas de governo no vindouro 2026: protejamos os homens de bem contra os bandidos. Ou vocês pensam que é a ideologia que está por trás das plataformas eleitorais?

O mesmo massapê da cana que produziu o maior pensador social brasileiro, Gilberto Freyre, um dos grandes poetas do país, João Cabral de Melo Neto, esse massapê da cana, que se espraiou nos estados vizinhos, produziu desse lado de cá uma cultura escravocrata que deitou raízes profundas nos mangues, depois transformados na periferia da cidade. Que invade o Recife inteiro com sua pobreza, sua falta de cidadania, a violência do tráfico de drogas, os altos índices de mortes juvenis, as prisões superlotadas.

E la nave va. Olhando pelo outro lado, quem sabe, o Recife não será o líder de uma nova revolta, que contraria todas as velhas teorias ainda acalentadas por uma esquerda míope? Temos a mania de ser o primeiro em tudo. Afinal, o Recife foi pioneiro numa revolução de verdade, a de 1817. E nosso herói nacional, por justiça, deveria ser Frei Caneca e não Tiradentes. Os sinais indicam que também aqui pode despontar algo que não está na cartilha das teorizações dos partidos políticos e dos movimentos sociais. Mas isso são apenas devaneios e elocubrações de uma mulher, que tem na janela do sétimo andar, o seu laboratório de observação social.

Feliz Páscoa

São três horas da madrugada desse domingo de Páscoa. Para a molecada que “curte” um resto de noite no calçadão, falando alto, quase gritando, apenas o último dia de um feriadão. O tempo parado, sem vento. Janela aberta de par em par. Para abafar o som da periferia no outro lado da rua, ouço o programa Cultura Madrugada, na Rádio Cultura da Fundação Padre Anchieta. Fez milagre essa música de orquestra: foi como se houvesse descido do sétimo andar, para incomodar de volta os jovens farristas, que foram para outra freguesia. Agora posso sair do concerto e voltar a ouvir as ondas do mar.

É uma pena que não possa escrever no escuro. Pena que há tanta luz potente nos postes altos da avenida. E eu ficaria sozinha no meu camarote do sétimo andar, vendo somente o rendado das águas, escutando somente o murmúrio do mar. E ficariam mais iluminados do que já estão, os dois navios que vieram comemorar os feriados da Páscoa aqui na minha vizinhança. Durante toda pandemia, quando escrever crônicas foi o que me manteve viva, outros navios também estavam lá, de quarentena, à vista da minha janela.

Desde que comecei a escrever um livro, uma quase biografia de Canhoto da Paraíba e João Pernambuco, fiquei nesse costume de acordar de madrugada. Minto. A bem dizer, esse costume é antigo. Apenas ele passou a ter hora marcada na Serra Negra de Bezerros: às três, como se fosse um despertador programado. Fiquei lá uma semana, para começar a escrever pra valer. Uma pousada afastada, cheia de flores, mas também com horta, pomar e galinheiro.

Ah, meus amigos… Vocês não sabem o que é acordar com o galo da madrugada. Às três em ponto. Todo dia. Só então, percebi de verdade o poema de João Cabral de Melo Neto, Tecendo a manhã.

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

O grito do galo que ficava bem na frente de meu quarto, era o primeiro. Aos poucos, de outras serras, os outros vinham tecendo o que não é uma manhã, viu João Cabral? É uma madrugada. Desperto, sem sono, pois havia ido para a cama no horário das galinhas. E começo a trabalhar, até o corpo pedir para fazer algum alongamento, comer alguma coisa.

Voltei para o meu sétimo andar, nesse lado da cidade onde não existe galo. Mas já era tarde para mudar o hábito. O de Serra Negra programara o horário dele na minha memória. Então, dona moça, vamos ao trabalho, que estou correndo contra o tempo, nos capítulos finais.

A crônica de hoje é apenas para desejar a vocês um feliz domingo de Páscoa.

Hirayama, mon amour

O olhar de Hirayama. É o próprio Wim Wenders quem me fala, em entrevista para outros, desses olhos do protagonista do filme “Dias Perfeitos”. Na fila de ingresso dos idosos, que não andava, e o velho atrás de mim reclamava que a culpa era do senhor de cabelos brancos, que estava a comprar ingressos para um batalhão de velhinhas em volta dele, foi nessa fila que encontrei Emília. Com os mesmos vestidos longos, soltos, cabelos estilo Janice Japiassu e Maria Betânia. O rosto redondo de Dona Benta. Que alegria! Há quanto tempo não via Emília!

Ingressos para Dias Perfeitos só na primeira fileira, em cima da tela, para sair do filme com torcicolo. A essas alturas, já comprávamos ingressos juntas, e também tomamos algum tempo (não tanto…) da bilheteira para decidir, e rapidamente soubemos que o outro filme imperdível, Zona de Interesse, tinha sessão naquele horário. E ainda compramos antecipadamente os ingressos para a sessão seguinte de Dias Perfeitos. Dois coelhos numa paulada só. Tempo de tomar um capuchino, um copo d’água e botar os assuntos em dia, antes de enfrentar a maratona.

E vamos aos filmes. Ainda bem que o destino das agruras de uma fila de velhinhos, decidiu por nós que veríamos primeiro Zona de Interesse. Filme belo, uma obra de arte, porém sobre o horror, com uma música que afunda a gente na poltrona. Mas deixo esse para outro dia. Hoje é dia do luminoso Dias Perfeitos.

Depois da maratona de filmes, saímos eu e Emília, a ver, na fila de pagar estacionamento, se encontrávamos algum conhecido. Sim, sim, como não. Vi que ele não lembrava meu nome, mas nesse ponto estávamos empate, pois eu também não lembrava o dele. O restaurante japonês era ali, a menos de 300 metros. Só que nossas ruas continuam em guerra não declarada e não é seguro andar à noite duas velhinhas de cabelos brancos.

No dia seguinte, trocamos mensagens de whatsapp sobre o filme. A primeira delas foi de João Rego, que eu também havia encontrado no cinema:

“Dias Perfeitos, dirigido por Wim Wenders e Takuma Takasaki, é um filme que explora profundamente a psique de seu personagem principal, mergulhando no seu comportamento compulsivo por organização e limpeza. Através de uma abordagem psicanalítica, o filme revela como essas compulsões refletem os conflitos internos do personagem, seus desejos reprimidos e sua busca por controle em um mundo percebido como caótico e imprevisível.

O personagem principal, cuja vida é meticulosamente organizada e limpa, simboliza uma tentativa de estabelecer ordem em meio ao caos emocional e existencial. Psicanaliticamente, essa obsessão por limpeza pode ser interpretada como um mecanismo de defesa contra a ansiedade e os sentimentos de impotência. O filme habilmente explora essa dinâmica, sugerindo que a compulsão do personagem é uma manifestação de seus conflitos internos, uma forma de lidar com traumas passados e um medo profundo da desordem e da perda de controle.

Do ponto de vista do roteiro, Dias Perfeitos é uma obra que equilibra com maestria a narrativa psicológica com a progressão dramática. O roteiro desdobra-se de maneira que cada elemento da organização e limpeza do personagem é carregado de significado, revelando camadas de sua psique. A narrativa é construída de forma a permitir que o espectador se aprofunde progressivamente na mente do personagem, descobrindo junto com ele os motivos e as consequências de suas compulsões. (…)

Em conclusão, Dias Perfeitos é uma obra cinematográfica que desafia e envolve o espectador, oferecendo uma profunda exploração psicanalítica de temas como controle, trauma e compulsão. O roteiro e a fotografia trabalham em conjunto para criar uma experiência imersiva que não apenas entretém, mas também provoca reflexão sobre a natureza da mente humana e o desejo de ordem em um mundo intrinsecamente desordenado. (Texto do ChatGPT)”

João sabe as mágicas todas da tecnologia, quanto mais transportar para a telinha um texto tão grande que, às tantas, tive que pular, senão o espaço de minha crônica iria ficar só para ele. À mensagem dele, eu respondi:

“Excelente análise, João, embora eu discorde de tua interpretação. Pensei em escrever uma crônica sobre o filme, que me arrebatou, mas dentro de outra ótica: uma concretização, no personagem, que se expressa sobretudo pelo olhar e quase nada pela linguagem, uma concretização da visão budista da vida. Assim como o personagem Meursault é uma concretização, no livro O Estrangeiro, da teoria de Albert Camus sobre O Absurdo. A entrega à rotina como busca de felicidade. A concentração no presente, em cada atividade do dia. Uma ocupação simples que permite ao personagem poder viver o belo na natureza, na mesma árvore que a cada dia terá uma beleza nova. A entrega ao belo na música das fitas cassetes. A música que se ouve no Japão, uma conexão com o Ocidente. A vida minimalista, que carece de muito pouco para ser feliz e inspirar os outros em volta, não com discursos, mas com ações. Adorei o filme”.

E João responde: “Perfeito, Teresa. Um outro olhar, mais belo e humano.”

E eu revido: “A obra de arte é rica exatamente por isso: permite vários olhares. Apenas diferentes, segundo quem vê, ou até para a mesma pessoa, em momentos diferentes da vida”. E a prosa acaba com um “Isso” de João.

Encantou-me no filme as cenas urbanas e de interiores em Tokio. A arquitetura diversa, linda, dos banheiros públicos. Aquela casa de banho, também pública. Na vida minimalista de um solteirão, o espaço de moradia não comporta cozinha, banheiro ou lavanderia. Talvez a maior expressão de felicidade de Hirayama tenha sido na hora do banho, quando, o corpo já limpo, ele mergulha naquela banheirona que deve ser um ofurô coletivo, onde cada homem fica no seu espaço. Afunda naquela água borbulhante, com uma expressão de alegria de meninos pulando na chuva, deixando só os olhos de fora em uma bela tomada da fotografia. 

Numa hora em que Hirayama guarda os instrumentos de trabalho dentro do carro, não pude me furtar a mais um cochicho no ouvido de Emília: as faxineiras brasileiras em Boston. Personagens importantes no meu livro “Brasileiros longe de casa” (Cortez Editora, 1999), elas revolucionaram os costumes de limpeza de casa americana, levando do Brasil nossa herança indígena de limpeza, de que as mineiras são mestras. Abriram negócios, ganharam muito dinheiro. Das ocupações para imigrantes, a mais bem remunerada. Com seus potentes automóveis do ano, lá vão elas, mala do carro carregada dos igualmente potentes produtos de limpeza, lá vão elas para uma schedulle detalhada das casas onde fazer faxina naquele dia. Para se distanciar do significado de faxineiras no Brasil, lá se dizem trabalhando em seu próprio business. Uma psicóloga gaúcha se estabeleceu em Boston com uma clientela dessas mulheres, que precisavam acertar com elas mesmas o contraste de ganhar bem com uma profissão manual, da qual se envergonhariam no Brasil, professoras, bancárias, estudantes que eram.

Voltemos a Hirayama. A delicadeza com que ele colheu uma mudinha de planta no parque onde se sentava num banco para comer o modesto sanduíche, enquanto se deliciava olhando a sua árvore, colhendo na lente de sua câmera aquele momento. Troca olhares com uma moça feia. Os japoneses com quem tive o privilégio de conviver em algum momento de minha vida profissional, me propiciaram ver de perto essa delicadeza. Elisa Massae Sasaki, orientanda da Unicamp. Na defesa da tese, comparei-a a uma flor do nosso Sertão.

(…)

Ao reler teu texto, João, após saber que foi escrito por inteligência artificial, compreendi meu mal-estar ao ler o que até então imaginava ser teu comentário. Meu desconforto na leitura advinha exatamente por não sentir alma naquelas palavras. Agora, ao saber dessa informação, não me furtei à lembrança de um dos contos surrealistas de Hoffmann, da boneca criada pelo protagonista – esse eterno desejo do homem de criar outro à sua imagem e semelhança.

Será que a inteligência artificial vai roubar a alma da literatura?

Yoga

Hoje, terça feira, 27 de fevereiro de 2024. São cinco e quinze da madrugada. Ouço o motor da primeira jangada que sai para pesca. O tempo parado. Não mexe uma folha de coqueiro. Com a janela aberta de par em par, é como se eu estivesse num camarote para apreciar o grande espetáculo da Aurora. Só que perdi meu ingresso. O sol ainda está encoberto em nuvens pesadas, antecipando março.

Atraída pelo barulho do motor da jangada, tiro a atenção da tela do computador e desvio o olhar para a esquerda. Espio o oceano cinzento. O barulho da jangada já está loonge. Volta o murmúrio do mar. Cada vez mais interrompido, pelos trabalhadores de terra com seus motores barulhentos na avenida Boa Viagem. Entra no mar a segunda jangada.

Penso na crônica. É a primeira vez que escrevo uma crônica por encomenda. Até então, escrevi apenas pelo prazer. E elas foram borbulhando feito mina d’água, derramaram-se da “Revista Será” para o meu blog Momentear, e foram minhas companheiras na Pandemia. Naquele tempo, impus-me uma disciplina monástica de publicá-las uma vez por semana, religiosamente aos domingos.

O tema da encomenda agora é Yoga. A bem da verdade, eu mesma havia sugerido esse assunto à revista, tal meu entusiasmo pela descoberta. Mas, como naquelas reuniões de departamento em que, quem sugere uma ideia, paga a conta, caiu para mim a redação da matéria.

Mas como? Sou apenas uma principiante. Descobri a Yoga em julho do ano passado, aos 78 anos. Foi durante um retiro de meditação silenciosa, em que o dia principiava com a prática de Yoga. E foi para mim, como um despertar de possibilidades inimagináveis de consciência corporal. Gostei de cara de um tal músculo chamado psoas, que não conhecia. Quando voltei do retiro, iniciei a prática de Yoga em aulas individuais em casa, pois as turmas já estavam formadas há mais tempo, e eu teria dificuldade em entrar no ritmo. Logo depois, minha irmã veio fazer as aulas comigo em casa. Aí surgiu a ideia de uma turma de 60 e +, que só veio a se concretizar em fevereiro deste ano.

Depois de seis meses de prática, sob a competente batuta de Bruna, sinto que, experimentar posturas desafiadoras para o corpo, meditar, aprender a respirar bem, é um poderoso antídoto, quase uma vacina, para enfrentar o melhor possível os desafios do envelhecimento do corpo.

Envelhecer. A terceira idade. Pus-me a pensar quais foram até agora as minhas idades. A primeira idade, vivi na casa de meus pais, em Garanhuns e depois no Recife. Aos vinte e quatro anos me casei. Entrei na segunda idade. Essa foi, até agora, a mais longa delas. Com uma rápida passagem pelo Recife, vivi a segunda idade em São Paulo. Lá construímos nossa família. Lá eu fiz minha vida profissional.

Em 2001 morre Hamilton. Um tsunami na família. Mudança para o Recife. O tempo da aposentadoria e da viuvez.  Os filhos, cada um na sua casa. Tempo de construir a solitude, tijolo por tijolo. Estou vivendo minha terceira idade.

Espiando em volta, vejo que estou até bem acompanhada nessa idade; minha turma vem crescendo rapidamente nos últimos 30 anos. Os dados do Censo Demográfico da Fundação IBGE, mostram que, em 1991, a população de 60 anos e mais representava 7,30% do total da população brasileira. No último Censo, de 2022, representa 15,81%. No último intervalo inter-censitário (de 2010 a 2022), observa-se um crescimento geográfico ao ano de 3,77 dessa população de idosos, enquanto a população total cresceu apenas 0,52%. E nessa população da chamada terceira idade, predominam as mulheres: representavam 7,79% há 30 anos, e hoje somos 17,11%.

Onde já se viu tabelas de censo numa crônica? Pois é, queridos leitores. A cronista é socióloga. Mas voltemos o fio à meada.

Há dois anos venho me despedindo aos poucos desse meu lar de viúva. Sou de uma geração que sonhou utopias sociais na juventude. Hoje sonho utopias de velho. Minha quarta idade será um convescote de velhinhos independentes, participantes e não pacientes, sujeitos de nossas vidas e não objetos das decisões de nossos “filhos ou responsáveis”, podendo optar por uma passagem suave, sem UTIs, sem reanimações, com o conforto possível dos cuidados paliativos. Morando num lugar que fosse a nossa montanha dos elefantes, para onde se dirigem quando sentem que a morte se aproxima. Para minha morada da quarta idade preciso levar muito pouco; apenas o que me faz viva: a literatura, a música, e meu instrumento de trabalho, o computador.

E a Yoga, dona moça? Cadê a Yoga? Não é o título da crônica?

Ela esteve aqui o tempo todo.