No tempo em que os animais falavam

17 de fevereiro de 2018

O sonho que acaba de me acordar se passa no tempo em que os animais falavam. Foi um sonho bom. As vezes a gente nem se lembra mais do sonho: nem do enredo; nem do cenário; nem da música; nem dos personagens. Mas, pelo humor com que acorda, sabe se o sonho foi bom ou ruim.

O pior de todos é pesadelo. Deus e a Virgem Maria me defendam dos pesadelos. E vão me guardando porque nessa vida, que já vai longe, não tive mais que dois ou três.

O sonho dessa noite, como estava dizendo, se passou no tempo em que os bichos falavam. E eu escrevia no caderno novo. Caderno novo para mim é como sapato novo de quando era pequena. Meu pai, um homem de posses. Em 1951 comprou um Ford 51. Não entendo porque na minha casa se fazia economia de sapato. Em todo roçado brasileiro, calçado novo, só na noite de festa, uma vez por ano.

Na minha casa nem precisava ser Natal e Ano Novo. Era quando os sapatos velhos ameaçavam ficar apertados. Menino tem essa mania de crescer os pés. Então só existiam dois pares de sapato para cada filho: o sapato novo e o sapato velho. Este não era para ser jogado fora quando chegasse o outro. Ficava guardado de parelha com o novo, na mesma prateleira ou embaixo da cama. Os novos eram reservados para os dias e ocasiões especiais: dia de domingo, a missa, festa no colégio, visita. Os velhos continuavam no batente enquanto os pés aguentassem. Quando começavam a apertar, os novos já estavam amaciados pelos dias festivos, embora ainda um pouco grandes.

Sim, ia esquecendo esse detalhe importantíssimo: os sapatos eram comprados um número maior do que os pés, antevendo que esses cresceriam durante o ano.

Como disse, menino possui o mau costume de crescer os pés. E eu, o de sair da rodagem por onde principio a narrativa e me desviar por atalhos. Volto ao sonho bom, do tempo em que os animais ditos irracionais falavam. No sonho eu escrevo. Estou sentada numa cadeira rústica e dura de madeira, escrevendo em uma mesinha escolar. O tempo está nublado. Uma brisa chega a meu corpo de algum mar distante. O lugar onde estou sentada é uma clareira, o terreiro da frente de uma casa de fazenda. Como está nublado e fresquinho, estou totalmente descoberta. Nem sombra de árvore no lugar onde permaneço sentada à escrivaninha, percorrendo a caneta na folha com prazer.

Nisso, sou interrompida pelo primeiro animal. Um burro.

Tem bicho mais simpático do que burro? Luiz Gonzaga sabia disso. No sonho, os animais são minhas personagens. Eles estão ali para conversar comigo e me dizer como querem aparecer no livro. Uns mais, outros menos, sabem que estou escrevendo um romance.

No tempo em que os animais falavam, e liam, os burros eram os maiores apreciadores de romance.

Abro um sorriso, o meu melhor. Ele não sabe sorrir como os humanos. Mas, pelo brilho de seus olhos, percebo que está rindo em retribuição. Recita uma poesia. Bato palmas. E ele se retira, como quem sai de cena para dar vez aos que esperam na fila que, dei fé, estava enorme, quase chegando à cerca do curral.

A galinha nada disse. Chegou com uma cesta de ovos fresquinhos e brancos. Colocou em cima da mesa. Galinha é cópia fiel de dona de casa, atarefada o dia inteiro. Só descansa na hora de dormir no poleiro. Ou quando o galo lhe pede favores de prazer, que ela nunca nega porque não tem nada de menos no seu coração.

A fila de animais já estava quase do tamanho da que enfrentei outro dia no posto de saúde onde consegui, depois de quatro tentativas em outros, vacinar-me contra Febre Amarela, requisito para entrar no Cabo Verde. Não havia reparado no tamanho dela porque prestava atenção a cada um à minha frente. E sabe quem, atrás da galinha? Uma sabiá! De todos, meu passarinho preferido.

Sei que há os machos e as fêmeas. Porém, para mim, pelo nome, Sabiá, é sempre fêmea. Diferente da galinha, que nada falou, a sabiá pousou no outro lado da mesa, contrário à cesta de ovos.

Gosto muito dos pássaros. Longe, soltos. Tenho um quase pânico se algum bicho voador chegar perto de mim. Faz tempo: estava deitada na cama conversando ao telefone com uma amiga. O janelão do quarto aberto de par em par. Um bem-te-vi entrou. Gritei, larguei o telefone fora do gancho e saí correndo. Fechei a porta por fora e fui chamar Zuleide que preparava o almoço na cozinha. Rimos depois. E só então me lembrei da amiga pendurada no telefone, pensando sei lá o quê. Continuava na linha, coitada, e suspirou aliviada com o ocorrido.

A sabiá do sonho, tão perto de mim, sem nenhum vidro de janela a nos separar, não me fez sair correndo. Parecia um desenho de livro infantil. Vi seu bico se abrindo. Cantou para mim a melodia única de seu repertório e também bati palmas.

Acordei com o bafo da vaquinha ainda quente no meu pescoço. Ao contrário das personagens que lhe sucederam, a vaquinha não ficou na minha frente. Arrodeou a mesa e postou-se atrás de mim. Senti um calorzinho gostoso, que contrastava com a brisa que esfriara, ameaçando chuva. E vim correndo escrever o sonho antes que a vigília o expulsasse, como costuma fazer o dia com a noite.

E pensei: Há muitos e muitos anos, os bichos já falavam, com esse mesmo bafo uma vaquinha aqueceu um menino novo. O lugar era quente durante o dia, mas pela madrugada esfriava. O enxoval daquela criança, pobre, não tinha cobertor. E o menino ficou confortável embaixo da respiração da vaquinha. Aqueceu seu ori. Quando cresceu, saía de sua boca palavras de sabedoria e distribuiu sonhos por onde andou.

Um comentário em “No tempo em que os animais falavam

  1. Engraçado, estava lendo a crônica e pensando no quanto gosto dessa sua característica de arrodear, tergiversar por entre os parágrafos e ideias de seu texto, quando chego ao ponto em que você comenta exatamente isso! Para alguns, isso é ser prolixo… Para mim, é ter muito a contar – e você conta lindamente!
    P.s.: Sobre os pesadelos, diferentemente de você, tive e tenho muitos! Os sonhos, geralmente intrigantes, complexos…

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