06 de março de 2018
Em um devanear de outro dia, gabava-me de na vida só ter tido dois ou três pesadelos. Devo ter exagerado para menos. Terão sido pelo menos dez a doze. De qualquer forma, numa vida que já vai longe, é pouco. No sossego da velhice não os tive mais.
Porém, nessa madrugada lisboeta (falo madrugada para o dia já avançado, oito da manhã. Como se fosse cinco no Recife), nessa madrugada, dizia, acordei de um pesadelo. Freud associava alguns sonhos a fragmentos do dia.
O que conto primeiro? O sonho? Ou o fragmento do dia?
Vamos ao pesadelo, que assim tiro-o de meu colchão, jogo pela porta do meu miradouro particular às primeiras e únicas baforadas do dia. Depois de um limão galego (que aqui custa menos que o outro, nosso, de qualquer quintal vagabundo) espremido em um copo de água tépida.
A cena tem início na casa de muro de pedras na Vila Mariana, sede do Cebrap. Estamos saindo de algo como uma palestra no auditório. Junto de mim, uma moça que acabo de conhecer, guiando um carrinho de criança, com dificuldade para atravessar escadas e cimentados intercalados com gramas e outras plantas. É rosadinha, a menina, a cor do rosto de criança em clima frio. Ora dorme, ora ri. Observo como sua filhinha é encantadora. Por todo aquele tempo, não a ouvi chorar nenhuma vez. A mãe fica satisfeita. Qual melhor elogio para uma mãe do que alguém falar bem de seus filhos?
Paramos aos degraus do portão de saída. Há muitos mais, além dessa moça. Não tenho lembrança de a nenhum conhecer. Alguém sugere irmos ao fundo da casa, no quintal, onde tem um restaurante. Porém nos deparamos com uma obra em andamento. Perguntamos ao pedreiro se tem previsão de abrir e ele não sabe informar.
Aqui não posso resistir a um fragmento de ontem. Procurava uma lavanderia na rua da Graça, quando passo em frente ao Pingo Doce, o melhor supermercado do bairro. Em obras. Pergunto ao pedreiro quando voltará a funcionar e ele não sabe me informar. A empregada da farmácia me havia dito que talvez na próxima semana. Fiquei contente com a possibilidade de rever, antes de voltar ao Brasil, um supermercado que tem entrada cerimoniosa de casa antiga. Em outros tempos, foi um cinema.
Voltamos ao portão de entrada e ali nos dispersamos. Alguns vão pegar seus automóveis, outros vão a pontos de ônibus. Eu caminho em direção oposta aos demais, em busca de um taxi. Começa aqui o pesadelo. Vejo um taxi adiante, dou com a mão e ele parece ter parado. Dirijo-me com pressa a um local cheio de escadarias, com um único beco por onde o taxi foi embora sem me esperar. Ao me voltar para continuar a busca, deparo-me com um rapaz que está parado no trânsito inexistente conduzindo uma espécie de trator.
Daí em diante, ruas e ruas, ladeiras, escadas que conectam ruas, nenhuma pessoa, nenhum automóvel, nenhum meio de transporte. A única coisa que quero é encontrar um taxi e voltar para casa. Penso no meu pai, que a essa hora já deve estar preocupado com minha demora para chegar em casa. Quanto mais ando, mais me perco. Daqui a pouco chegará a noite e tudo será pior. Penso na rua Minas Gerais, na Ilha do Leite. Algo me diz que está ali perto e lá encontrarei a casa de uma tia. Acordo encolhida, gemendo baixinho.
O fragmento do dia nem vou ter o trabalho de escrever. É só copiar a mensagem de whatsapp recebida ontem e a minha resposta.
“Ontem ao entardecer, recebi uma ligação a cobrar. A pessoa identificou-se como sendo da telefônica, dizendo que meu telefone estava com linha cruzada e ela iria consertar. Estranhei a ligação e disse-lhe que aquela companhia não liga a cobrar. Ela insistiu para que eu discasse: 21*0211581172839#. Não disquei e falei pelo 190 com a Polícia.
O policial disse-me que esta é uma ligação do Comando Vermelho, das penitenciárias do Rio de Janeiro. Esse número, se acionado, é mais que um clone, é uma extensão de seu telefone. A partir daí, ouvem tudo o que você fala e, se for do interesse deles, começam a lhe ameaçar. Isto é sério e extremamente perigoso.
Avisem a todos os seus familiares, amigos, principalmente os mais idosos, empregadas, adolescentes, enfim, aqueles que, sem maiores preocupações, possam cair nessa conversa.
O próprio policial pediu-me para divulgar. Inclusive, se conhecesse alguém da imprensa, pedir também para eles divulgarem, pois, infelizmente, o golpe já está fazendo vítimas em várias localidades.
Não deixe de repassar esta mensagem.
URGENTE!!!”
As únicas palavras do amigo remetente: “Mensagem útil. Repassando”.
Ao que respondi, Meu deus, estamos em guerra civil, amigo. Aqui em Lisboa até a doida que frequenta o fado na Tasca do Jaime sabe disso. Pois, dessa vez, são os brasileiros ricos que fogem desesperados do país. Os que não fogem, a maioria, escondem-se em fortalezas gradeadas, em carros com janelas trancadas com medo de meninos de rua. E repassam centenas dessas mensagens. A doida do fado aparece na crônica dessa sexta na Será.
Mais uma crônica saborosa! A leitura é um prazer. Congratulações, Teresa!
CurtirCurtir